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foram tomadas várias decisões quanto à
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Rita
Farinha (Jan. 2008)
OBRAS
DE
J. B. DE A. GARRETT.
VIII.
(primeiro das viagens)
VIAGENS
NA MINHA TERRA
POR J. B. DE ALMEIDA-GARRETT.
I
LISBOA
NA TYPOGRAPHIA DA GAZETA DOS TRIBUNAIS.
1846.
Os editores d'esta obra, vendo a
popularidade
extraordinaria que ella tinha publicada em
fragmentos na
Revista, intenderam
fazer um serviço ás
lettras e á gloria do seu paiz, imprimindo-a agora reunida
em um livro, para melhor se podêr avaliar a variedade,
a riqueza e a originalidade de seu stylo inimitavel, da
philosophia profunda que incerra, e
sôbre tudo o grande
e transcendente pensamento moral a que sempre
tende, ja quando folga e ri com as mais graves coisas
da vida, ja quando seriamente discute por suas
leviandades e pequenezas.
As
Viagens na minha terra,
são um d'aquelles livros
raros que so podiam ser escriptos por quem, como
o auctor de
Camões e de
Catão, de
D. Branca e
do
Portugal na Balança da
Europa, do
Auto de
Gil-Vicente
e do
Tractado de
Educação, do
Alfageme e
de
Fr. Luiz de Souza, do
Arco de Sanct'Anna e da
Historia Litteraria de Portugal, de
Adozinda e das
Leituras Historicas e de tantas
producções de tam variado
genero, possue todos os stylos e, dominando
uma lingua de immenso podêr, a costumou a servir-lhe
e obedecer-lhe;―por quem com a mesma facilidade
sobe a orar na tribuna, entra no gabinete nas graves
discussões e demonstrações da
sciencia―voa ás mais
altas regiões da lyrica, da epopeia e da tragedia,
[VI.]
lida com as fortes paixões do drama, e baixa ás
não
menos difficeis trivialidades da comedia;―por quem
ao mesmo tempo, e como que mudando de natureza,
póde dar-se todo ás mais aridas e materiaes
ponderações
da administração e da politica, e redigir com
admiravel precisão, com uma exacção
ideologica que
talvez ninguem mais tenha entre nós, uma lei administrativa
ou de instrucção pública, uma
constituição politica,
ou um tractado de commercio.
Orador e poeta, historiador e philosopho, crítico
e artista, jurisconsulto e administrador, erudito e
homem d'Estado, religioso cultor da sua lingua e falando
correctamente as extranhas―educado na pureza
classica da antiguidade, e versado depois em todas
as outras litteraturas―da meia-edade, da renascença
e contemporanea―o auctor das
viagens
na minha terra é egualmente familiar com
Homero e com
o Dante, com Platão e com Rousseau, com Thucidides
e com Thiers, com Guizot e com Xenophonte,
com Horacio e com Lamartine, com Machiavel
e com Chateaubriand, com Shakspeare e Euripedes,
com Camões e Calderon, com Goethe e Virgilio,
Schiller e Sá-de-Miranda, Sterne e Cervantes,
Fenelon e Vieira, Rabelais e Gil-Vicente, Addison
e Bayle, Kant e Voltaire, Herder e Smith, Bentham
e Cormenin, com os Encyclopedistas e com os Sanctos-Padres,
com a Biblia e com as tradicções sanscritas,
com tudo o que a arte e a sciencia antiga, com
tudo o que a arte emfim e a sciencia moderna teem
produzido. Ve-se isto dos seus escriptos, e especialmente
se ve d'este que agora publicâmos apezar de composto
bem claramente ao correr da penna.
[VII.]
Mas ainda assim, e com isto somente, elle não faria
o que faz se não junctasse a tudo isso o profundo
conhecimento dos homens e das coisas, do coração
humano e da razão humana; se não fosse,
além de
tudo o mais, um verdadeiro homem do mundo, que
tem vivido nas côrtes com os principes, no campo
com os homens de guerra, no gabinete com os diplomaticos
e homens d'Estado, no parlamento, nos tribunaes,
nas academias, com todas as notabilidades
de muitos paizes―e nos salões emfim com as mulheres
e com os frivolos do mundo, com as elegancias
e com as falsidades do seculo.
De tantas obras de tam variado genero com que,
em sua vida ainda tam curta, este fecundo escriptor
tem inriquecido a nossa lingua, é ésta talvez,
tornâmos
a dizer, a que elle mais descuidadamente escreveu:
mas é tambem a que, em nossa opinião, mais
mostra os seus immensos podêres intellectuaes, a sua
erudição vastíssima, a sua
flexibilidade de stylo espantosa,
uma philosophia transcendente, e por fim de
tudo, o natural indulgente e bom de um coração
recto,
puro, amigo da justiça, adorador da verdade, e
inimigo declarado de todo o sophisma.
Tem sido accusado de sceptico: é a
accusação mais
absurda e que so denuncia, em quem a faz, ou
grande ignorancia ou grande má fe. Quando o nosso
auctor lança mão da cortante e destruidora arma
do
sarcasmo, que elle maneja com tanta fôrça e
dexteridade,
e que talvez por isso mesmo, conscio de seu
podêr, elle rara vez toma nas mãos―veja-se que
é
sempre contra a hypocrisia, contra os sophismas, e
contra os hypocritas e shopistas de
todas as
côres, que
[VIII.]
elle o faz. Crenças, opiniões, sentimentos,
respeita-os
sempre. As mesmas suas ironias que tanto ferem,
não as dirige nunca sôbre individuos; ve-se que
despreza
a facil vingança que, com tam poderosas armas,
podia tomar de inimigos que o não poupam, de invejosos
que o calumniam, e a quem, por cada dicterio
insulso e ephemero com que o teem pretendido injuriar,
elle podia condemnar ao eterno oppróbrio de
um pelourinho immortal como as suas obras. Ainda
bem que o não faz! mais immortaes são as suas
obras,
e quanto a nós, mais punidas ficam os seus emulos
com esse desprêzo do homem superior que se não
appercebe
de sua malignidade insulsa e insignificante.
Voltando á accusação de septicismo,
ainda dizemos
que não póde ser septico o espirito
que concebeu, e
em si achou côres com que pintar tam vivos, characteres
de crenças tam fortes como o de Catão, de
Camões,
de Fr. Luiz de Sousa,―e aqui n'esta nossa
obra, os de Fr. Diniz, de Joanninha, da Irman Francisca.
Não analysâmos agora as
viagens
na minha terra:
a obra não está ainda completa e não
podia completar-se
portanto o juizo; dizemos somente o que todos
dizem e o que todos podem julgar ja.
A nosso rôgo, e por fazer mais digna da sua
reputação
ésta segunda publicação da obra, o
auctor
prestou-se a dirigi-la elle mesmo, corrigiu-a, additou-a,
alterou-a em muitas partes, e a illustrou com
as notas mais indispensaveis para a geral intelligencia
do texto: de modo que sahirá muito melhorada
agora do que primeiro se imprimiu.
VIAGENS NA MINHA TERRA.
Qu' il est glorieux d'ouvrir une nouvelle
carrière,
et de paraitre tout-à-coup dans le monde
savant un livre de découvertes à
la main, comme
une cométe inattendue étincelle dans l'espace!
x.
de maistre.
CAPITULO I.
De como o auctor d'este erudito livro
se resolveu a viajar na
sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como resolveu
immortalizar-se escrevendo éstas suas viagens. Parte
para Santarem. Chega ao Terreiro-do-Paço, imbarca no vapor
de Villa-Nova; e o que ahi lhe succede. A
Deducção-Chronologica e a Baixa de Lisboa. Lord
Byron e um bom
charuto. Travam-se de razões os Ilhavos e os Bordas-d'agua:
os da calça larga levam a melhor.
Que viage á roda do seu
quarto quem está
á
beira dos Alpes, de hynverno, em Turim, que é
quasi tam frio como San'Petersburgo―intende-se.
Mas com este clima, com este ar que Deus
[2]
nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o
mato é de murta, o proprio
Xavier de
Maistre,
que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, n'estas suffocadas noites d'estio,
viajo até á minha janella para ver uma nesguita
de Tejo que está no fim da rua, e me inganar
com uns verdes de árvores que alli vegetam
sua laboriosa infancia nos intulhos do Caes-do-Sodré.
E nunca escrevi éstas minhas
viagens
nem as suas impressões: pois tinham muito que
ver! Foi sempre ambiciosa a minha penna: pobre
e suberba, quer assumpto mais largo. Pois
hei de dar-lh'o. Vou nada menos que a Santarem:
e protesto que de quanto vir e ouvir, de
quanto eu pensar e sentir se hade fazer chronica.
Era uma idea vaga, mais desejo que tenção,
que eu tinha ha muito de ir conhecer as riccas
varzeas d'esse Ribatejo, e saudar em seu alto cume
a mais historica e monumental das nossas villas.
Aballam-me as instancias de um amigo, decidem-se
as tonterias de um jornal, que por mexeriquice
quiz incabeçar em
designio
politico determinado
a minha visita.
[3]
Pois por isso mesmo
vou:―
pronunciei-me.
São 17 d'este mez de julho, anno de graça
de 1843, uma segunda-feira, dia sem nota e de
boa estrea. Seis horas da manham a dar em San'Paulo,
e eu a caminhar para o Terreiro-do-Paço.
Chego muito a horas, invergonhei os meus
madrugadores dos meus companheiros de viagem,
que todos se prezam de mais matutinos homens
que eu. Ja vou quasi no fim da praça, quando
oiço o rodar grave mas pressuroso de uma
carroça
d'ancien
règime: é o nosso chefe e
commandante,
o capitão da impreza, o Sr. C. da
T. que chega em estado.
Tambem são chegados os outros companheiros:
o sino dá o último rebate. Partimos.
N'uma
regata
de vapores o nosso
barco não
ganhava decerto o premio. E se, no andar do
progresso, se chegarem a instituir alguns isthmicos
ou olympicos para este genero de carreiras―e
se para ellas houver algum Pindaro ancioso
de correr, em strophes e antistrophes, atraz
do
vencedor que vai coroar de
seus hymnos immortaes―não
cabe nem um triste minguado
[4]
epodo a este cançado corredor de Villa-nova.
É um barco serio e sizudo que se não mette
n'essas andanças.
Assim vamos de todo o nosso vagar contemplando
este majestoso e pittoresco amphitheatro
de Lisboa oriental, que é, vista de fóra, a mais
bella e grandiosa parte da cidade, a mais characteristica,
e onde, aqui e alli, algumas raras feições
se percebem, ou mais exactamente se adivinham,
da nossa velha e boa Lisboa das chronicas.
Da Fundição para baixo tudo é prosaico
e
burguez, chato, vulgar e semsabor como um periodo
da
Deducção
Chronologica, aqui e alli assoprado
n'uma tentativa ao grandioso do mau gôsto,
como alguma oitava menos rasteira do
Oriente.
Assim o povo, que tem sempre melhor gôsto
e mais puro do que essa escuma descórada que
anda ao decima das populações, e que se chama
a si mesma por excellencia a
Sociedade, os seus
passeios favoritos são a Madre-de-Deus e o Beato
e Xabregas e Marvilla e as hortas de Chellas.
A um lado a immensa majestade do Tejo em
sua maior extensão e podêr, que alli mais parece
um pequeno mar mediterraneo; do outro a
[5]
frescura das hortas e a sombra das árvores, palacios,
mosteiros, sitios consagrados todos a recordações
grandes ou queridas. Que outra sahida
tem Lisboa que se compare em belleza com ésta?
Tirado Bellem, nenhuma. E ainda assim,
Bellem é mais arido.
Já saudámos Alhandra, a toireira; Villa-franca,
a que foi de Xira, e depois da Restauração,
e depois outra vez de Xira, quando a tal
restauração
cahiu, como a todas as restaurações
sempre succede e hade succeder, em odio e
execração tal que nem uma pobre villa a quiz
para sobrenome.
―'A questão não era de restaurar nem de
não restaurar, mas de se livrar a gente de um
govérno de patuscos, que é o mais odioso e
ingulhoso
dos governos possiveis.'
É a reflexão com que um dos nossos companheiros
de viajem accudiu ao princípio de
ponderação
que eu ia involuntariamente fazendo a
respeito de Villa-franca.
Mas eu não tenho odio nenhum a Villa-franca,
[6]
nem a esse famoso cirio que lá foi fazer à
velha monarchia. Era uma coisa que estava na
ordem das coisas, e que por fôrça havia de
succeder.
Este necessario e inevitavel reviramento
por que vai passando o mundo, hade levar muito
tempo, hade ser contrastado por muita reacção
antes de completar-se...
No entretanto vamos accender os nossos
charutos, e deixemos os precintos aristocraticos
da ré: á proa, que é paiz de cigarro
livre!
Não me lembra que lord Byron celebrasse
nunca o prazer de fummar a bórdo. È notavel
esquecimento
no poeta mais imbarcadiço, mais
marujo que ainda houve, e que até cantou o injôo,
a mais prosaica e nauseante das miserias
da vida! Pois n'um dia d'estes, sentir na face e
nos cabellos a brisa refrigerante que passou por
cima da agua, em quanto se aspiram mollemente
as narcoticas exhalações de um bom cigarro da
Havana,
é uma das poucas coisas sinceramente boas
que ha n'este mundo.
Fummemos!
[7]
Aqui está um campino fummando gravemente
o seu cigarro de papel, que me vai imprestar
lume.
'Dou-lh'o eu, senhor...' accode cortezmente
outra figura mui diversa, cujas feições,
trajo e
modos singularmente contrastam com os do
musarabe
ribatejano.
Accenderam-se os charutos, e attentámos mais
de vagar na companhia em que estavamos.
Era com effeito notavel e interessante o grupo
a que nos tinhamos chegado, e destacava
pittorescamente do resto dos passageiros, mistura
hybrida de trajos e feições descharacterizadas
e vulgares―que abunda nos arredores de
uma grande cidade maritima e commercial.―Não
assim este grupo mais separado com que
fomos topar. Constava elle de uns dôze homens;
cinco eram d'esses famosos athletas da Alhandra
que vão todos os domingos colher o
pulverem
olympicum da praça de Sanct'Anna, e que,
á
voz soberana e irresistivel de:
á unha,
á unha,
á cernelha!.... correm a arcar com mais
generosos,
não mais possantes, animaes que elles,
[8]
ao som das immensas palmas, e a trôco dos raros
pintos por que se manifesta o sempre clamoroso
e sempre vazio enthusiasmo das multidões.
Voltavam á sua terra os meus cinco luctadores
ainda em trajo de praça, ainda esmurrados e
cheios de glória da contenda da vespera. Mas
aopé d'estes cinco e de altercação com
elles―ja
direi porquê―estavam seis ou sette homens
que em tudo pareciam os seus antipodas.
Emvez do calção amarello e da jaqueta de
ramagem que caracterizam o homem do forcado,
estes vestiam o amplo saiote grego dos varinos,
e o tabardo arrequifado siciliano de panno de
varas. O campino, assim como o saloio, tem o
cunho da raça africana; estes são da familia
pelasga:
feições regulares e moveis, a fórma
agil.
Ora os homens do norte estavam disputando
com os homens do sul: a questão fôra interrompida
com a nossa chegada á proa do barco. Mas
um dos Ilhavos―bella e poetica figura de homem―voltando-se
para nós, disse n'aquelle seu
tom accentuado:―'Ora aqui está quem hade
decidir: vejam-n'os senhores. Elles, por agarrar
um toiro, cuidam que são mais que ninguem,
[9]
que não ha quem lhes chegue. E os senhores, a
serem ca de Lisboa, hãode dizer que sim. Mas
nós...'
―Nenhum de nós é de Lisboa: so este senhor
que aqui vem agora.
Era o C. da T. que chegava.
―'Este conheço eu; este é dos nossos (bradou
um homem de forcado, assim que o viu).
Isto é um fidalgo como se quer. Nunca o vi
n'uma ferra, isso é verdade; mas aqui de Vallada
a Almeirim ninguem corre mais do que elle
por sol e por chuva, e hade saber o que é um
boi de lei, e o que é lidar com gado.'
―'Pois oiçamos lá a questão.'
―'Não é questão'―tornou o Ilhavo:
'mas
se este senhor fidalgo anda por Almeirim, para
Almeirim vamos nós, que era uma charneca o
outro dia, e hoje é um jardim, benza-o Deus!―mas
não foram os campinos que o fizeram, foi
a nossa gente que o sachou e plantou, e o fez
o que é, e fez terra das areas da charneca.'
[10] ―'Lá isso é verdade'.
―'Não, não é! Que está
forte habilidade
fazer dar trigo aqui aos nateiros do Tejo, que é
como quem semeia em manteiga. É uma lavoira
que a faz Deus por sua mão, regar e adubar
e tudo: e o que Deus não faz, não fazem elles,
que nem sabem ter mão n'esses monchões c'o
plantio das arvores: so lá por cima é que algumas
teem mettido, e é bem pouco para o rio
que é, e as riccas terras que lhes levam as inchentes.―Mas
nós, pe no barco pe na terra,
tam depressa estamos a sachar o milho na charneca,
como vimos por ahi abaixo com a vara no
peito, e o saveiro a pegar n'area por não haver
agua... mas sempre labutando pela vida'.
―'A fôrça é que se falla'―tornou o
campino
para estabelecer a questão em terreno que
lhe convinha.―'A fôrça é que se
falla: um
homem do campo que se deita alli á cernelha de
um toiro que uma companha inteira de varinos
lhe não pegava, com perdão dos senhores pelo
rabo!..'
E reforçou o argumento com uma gargalhada
[11]
triumphante, que achou echo nos interessados circumstantes
que ja se tinham apinhado a ouvir os
debates.
Os Ilhavos ficaram um tanto abatidos; sem
perderem a consciencia da sua superioridade, mas
acanhados pela algazarra.
Parecia a esquerda de um parlamento quando
ve sumir-se, no borburinho acintoso das turbas ministeriaes,
as melhores phrases e as mais fortes
razões dos seus oradores.
Mas o orador ilhavo não era homem de se dar
assim por derrotado. Olhou para os seus, como
quem os consultava e animava, com um gesto
expressivo, e voltando-se a nós, com a direita
estendida aos seus antagonistas:
―'Então agora como é de
fôrça, quero eu
saber, e estes senhores que digam, qual é que tem
mais fôrça, se é um toiro ou se
é o mar'.
―'Essa agora!..'
―'Queriamos saber'.
[12] ―'É o mar'.
―'Pois nós que brigâmos com o mar, oito
e dez dias a fio n'uma tormenta, de Aveiro a Lisboa,
e estes que brigam uma tarde com um toiro,
qual é que tem mais fôrça?'
Os campinos ficaram cabisbaixos; o publico
imparcial applaudiu por ésta vez a
opposição, e
o Vouga triumphou do Tejo.
CAPITULO II.
Declaram-se typicas, symbolicas e mythicas éstas viagens.
Faz o A. modestamente o seu proprio elogio. Da marcha da
civilização; e mostra-se como ella é
dirigida pelo cavalleiro
da Mancha D. Quixote, e por seu escudeiro Sancho
Pança.―Chegada
a Villa-Nova-da-Rainha, Supplicio de Tantalo.―A
virtude galardão de si mesma; e sophisma de Jeremias
Bentham.―Azambuja.
Éstas minhas interessantes viagens hãode ser uma
obra prima, erudita, brilhante de pensamentos
novos, uma coisa digna do seculo. Preciso
de o dizer ao leitor, paraque elle esteja previnido;
[14]
não cuide que são quaesquer d'essas
rabiscaduras
da moda que, com o titulo de
Impressões
de Viagem, ou outro que tal, fatigam as imprensas
da Europa sem nenhum proveito da sciencia
e do adiantamento da especie.
Primeiro que tudo, a minha obra é um symbolo...
é um mytho, palavra grega, e de moda
germanica, que se mette hoje em tudo e com
que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.
É um mytho porque―porque... Ja agora
rasgo o veo, e declaro abertamente ao benevolo
leitor a profunda idea que está occulta debaixo
d'esta ligeira apparencia de uma viagemzita que
parece feita a brincar, e no fim de contas é uma
coisa séria, grave, pensada com um livro novo
da feira de Leipsick, não das taes brochurinhas
dos
boulevards de Paris.
Houve aqui ha annos um profundo e cavo philosopho
d'alêm Rheno, que escreveu uma obra
sôbre a marcha da civilização, do
intellecto―o
que diriamos, para nos intenderem todos melhor,
o Progresso. Descobriu elle que ha
dois
principios no mundo: o
espiritualista, que marcha
[15]
sem attender á parte material e terrena d'esta
vida, com os olhos fittos em suas grandes e abstractas
theorias, hirto, sêcco, duro, inflexivel,
e que póde bem personalizar-se, symbolizar-se
pelo famoso mytho do cavalleiro da Mancha,
D. Quixote;―o
materialista, que,
sem
fazer caso nem cabedal d'essas theorias, em
que não crè, e cujas impossiveis
applicações declara
todas utopias, póde bem representar-se
pela rotunda e anafada presença do nosso amigo
velho, Sancho Pança.
Mas, como na historia do malicioso
Cervantes,
estes dois principios tam avessos, tam desincontrados,
andam comtudo junctos sempre; ora
um mais atraz, ora outro mais adiante, impecendo-se
muitas vezes, coadjuvando-se poucas,
mas
progredindo sempre.
E aqui está o que é possivel ao progresso humano.
E eisaqui a chronica do passado, a historia
do presente, o programma do futuro.
Hoje o mundo é uma vasta Barataria, em que
domina elrei Sancho.
[16]
Depois hade vir D. Quixote.
O senso commum virá para o millenio: reinado
dos filhos de Deus! Está promettido nas divinas
promessas... como elrei de Prussia prometteu
uma constituição; e não faltou ainda,
porque―porque
o contracto não tem dia; prometteu
mas não disse para quando.
Ora n'esta minha viagem Tejo-a-riba está symbolizada
a marcha do nosso progresso social: espero
que o leitor intendesse agora. Tomarei cuidado
de lh'o lembrar de vez em quando, porque
receio muito que se esqueça.
Somos chegados ao triste desimbarcadoiro de
Villa-Nova-da-Rainha, que é o mais feio pedaço
de terra alluvial em que ainda poisei os meus
pés. O sol arde como ainda não ardeu este
anno.
Um immenso arraial de caleças, de machinhos,
de burros e arrieiros, nos espera n'aquelle
descampado africano. É forçoso optar entre
os dois martyrios da caleça ou do macho. Do
mal o menos... seja este.
[17]
E acolá―oh supplício de Tantalo!―vejo
duas possantes e nedeas mulas castelhanas jungidas
a um vehiculo que, n'estas paragens e ao
pé d'aquell'outros, me parece mais esplendido
do que um landaw de Hyde-Park, mais elegante
que um caleche de Long-champs, mais commodo
e elastico do que o mais acrio briska da
princeza Hellena. E com tudo―oh magico podêr
das situações!―elle não é
senão, uma
substancial e bem apessoada traquitana de cortinas.
Togados manes dos antigos desimbargadores,
venerandas cabelleiras de anneis e castanhola, que
direis, ó respeitadas sombras, se d'esse limbo
onde estais esperando pela resurreição do
Pêgas...
e do livro quinto―vêdes este degenerado
e espurio successor vosso, em calças largas, frak
verde, chapeu branco, gravata de côr, chicotinho
de caoutchouc na mão, prompto a cavalgar
em mulinha de Palito-Metrico como um garraio
estudantinho do segundo anno, e deitando
olhos invejosos para esse natural, proprio e adscripticio
modo de conducção desimbargatoria?
Oh que direis vós! Com que justo desprêzo
não
olhareis para tanta degradação e
derogação!
[18]
Eu commungava silenciosamente commigo n'estas
graves meditações, e revolvia incertamente
no ânimo a ponderosa dúvida:―se o administrar
justiça direita aos povos valia a pena de andar
um desimbargador a pé!... Luctava no meu
ser o Sancho Pança da carne com o D. Quixote
do espirito―quando a Providencia, que nos
maiores apertos e tentações nos não
abandona
nunca, me trouxe a generosa offerta de um amigo
e companheiro do vapor, o Sr. L. S.: era sua
a invejada carroça, e n'ella me deu logar até
á
Azambuja.
A virtude é o galardão de si mesma, disse
um philosopho antigo; e eu não creio no
famoso ditto de Bentham, que sabedoria antiga
seja um sophisma. O mais moderno é o
mais velho, não ha dúvida; mas o antigo que
dura ainda, é porque tem achado na experiencia
a confirmação que o moderno não tem.
Jeremias
Bentham tambem fazia o seu sophisma como qualquer
outro.
Vamos percorrendo lentamente aquelle mal-composto
marachão que poucos
palmos se eleva do nivel
baixo e salgadiço do solo: de hynverno não se
passará
[19]sem
perigo; ainda agora se não anda sem
incómmodo e receio. Estamos em Villa-Nova e
ás portas do nojento caravanseray, unico asylo do
viajante n'esta, hoje, a mais frequentada das estradas
do reino.
Parece-me estar mais deserto e sujo, mais
abandonado e em ruinas este asqueroso logarejo,
desde que alli aopé tem a estação dos
vapôres,
que são a commodidade, a vida, a alma do
Ribatéjo.
Imagino que uma aldeia de Alarves nas
faldas do Atlas deve ser mais
limpa e commoda.
Oh! Sancho, Sancho, nem siquer tu reinarás
entre nós! Cahiu o carunchoso throno de teu predecessor,
antagonista e ás vezes amo; açoitaram-te
essas nadegas para desincantar a formosa
del
Toboso, proclamaram-te depois rei em
Barataria,
e n'esta tua provincia lusitana nem o paternal
govêrno de teu estupido materialismo póde
estabelecer-se
para commodo e salvação do corpo;
ja que a alma... oh! a alma...
Fallemos n'outra coisa.
Fujamos depressa d'este monturo.―É monótona,
[20]arida e sem
frescura de árvores a estrada:
apenas alguma rara oliveira mal-medrada, a longos
e desiguaes espaços, mostra o seu tronco rachitico
e braços contorcidos, ornados de ramusculos
doentes, em que o natural verde-alvo das
folhas é mais alvacento e desbotado que o costume.
O solo porêm, com raras excepções,
é optimo,
e a trôco de pouco trabalho e insignificante
despeza, daria uma estrada tam boa como as melhores
da Europa.
Dizia um secretario d'Estado meu amigo que
para se repartir com egualdade o melhoramento
das ruas por toda Lisboa, deviam ser obrigados
os ministros a mudar de rua e bairro todos os tres
mezes. Quando se fizer a lei de responsabilidade ministerial,
para as kalendas gregas, eu heide propor
que cada ministro seja obrigado a viajar por
este seu reino de Portugal ao menos uma vez cada
anno, como a desobriga.
Ahi está a Azambuja, pequena mas não triste
povoação, com visiveis signaes de vida, aceadas
e com ar de confôrto as suas casas. É a primeira
povoação que dá indicio de estarmos
nas
ferteis margens do Nilo portuguez.
[21]
Corrémos a apear-nos no elegante estabelecimento
que ao mesmo tempo cumulla as tres distinctas
funcções, de
hotel, de
restaurant e de café
da terra.
Sancto Deus! que bruxa que está á porta! que
antro lá dentro!... Cai-me a penna da mão.
CAPITULO III.
Acha-se desappontado o leitor com a
prosaica sinceridade do
A. d'estas viagens. O que devia ser uma estalagem nas
nossas eras de litteratura romantica?―Suspende-se o exame
d'esta grave questão para tractar, em prosa e verso,
um mui difficil ponto de economia-politica e de moral social.―Quantas
almas é preciso dar ao diabo, e quantos corpos
se teem de intregar no cemiterio para fazer um ricco
n'este mundo.―Como se veio a descobrir que a sciencia
d'este seculo era uma grandessissima tola.―Rei de facto, e
rei de direito.―Belleza e mentira não cabem n'um
sacco.―Põe-se
o A. a caminho para o pinhal da Azambuja.
Vou
desappontar decerto o leitor
benevolo; vou
perder, pela minha fatal sinceridade, quanto em
seu conceito tinha adquirido nos dois primeiros
capitulos d'esta interessante viagem.
[24]
Pois que esperava elle de mim agora, de mim
que ousei declarar-me escriptor n'estas eras de
romantismo, seculo das fortes sensações, das
descripções a traços largos e
incisivos que se intalham
n'alma e entram com sangue no coração?
No fim do capitulo precedente parámos á porta
de uma estalagem: que estalagem deve ser
ésta, hoje no anno de 1843, ás barbas de Victor
Hugo, com o Doutor Fausto a trotar na cabeça
da gente, com os
Mysterios de Paris
nas
mãos de todo o mundo?
Ha paladar que supporte hoje a classica
posada
do Cervantes com o seu
mesonero
gordo e grave,
as pulhas dos seus arrieiros, e o mantear de algum
pobre lorpa de algum Sancho! Sancho, o
invisivel rei do seculo, aquelle
por quem hoje os
reis reinam e os fazedores de leis decretam e afferem
o justo! Sancho manteado por vis muleteiros!
Não é da epocha.
Eu
coroarei de trevo a minha espada,
De cenoiras, luzerna e betarrava,
Para cantar Harmódios e Aristógilons,
Que do tyranno jugo vos livraram
Da sciencia velha, inutil carunchosa,
[25]
Que elevava da terra, erguia, alçava
O que no homem ha de Ser divino,
E para os grandes feitos e virtudes
Lhe despegava o espirito da carne...
Não: plantae batatas, ó
geração de vapor e
de pó de pedra, macadamisae estradas, fazei caminhos
de ferro, construí passarolas de Icaro,
para andar a qual mais depressa, éstas horas contadas
de uma vida toda material, massuda e
grossa como tendes feito ésta que Deus nos deu
tam differente do que a hoje vivemos. Andae,
ganha-pães, andae; reduzi tudo a cifras, todas as
considerações d'este mundo a
equações de interêsse
corporal, comprae, vendei, agiotae.―No
fim de tudo isto, o que lucrou a especie humana?
Que ha mais umas poucas de duzias de homens
riccos. E eu pergunto aos economistas-politicos,
aos moralistas, se ja calcularam o número
de individuos que é forçoso condemnar
á miseria,
ao trabalho desproporcionado, á
desmoralização,
á infamia, á ignorancia crapulosa, á
desgraça
invencivel, á penuria absoluta, para produzir
um ricco?―Que lh'o digam no Parlamento
inglez, onde,
depois de tantas
commissões de
inquérito, ja deve de andar orçado o
número de
almas que é preciso vender ao diabo, o número
[26]
de corpos que se tem de intregar antes do tempo
ao cemiterio para fazer um tecelão ricco e fidalgo
como Sir Robert Peel, um mineiro, um
banqueiro, um grangeeiro―seja o que for:
cada homem ricco, abastado, custa centos de infelizes,
de miseraveis.
Logo a nação mais feliz não
é a mais ricca.
Logo o princípio utilitario é a
mamona da injustiça
e da reprovação. Logo...
There
are more things in heaven and earth, Horatio,
Than are dreamt of in your philosophy.
A sciencia d'este seculo é uma grandessissima
tola.
E como tal, presumpçosa e cheia do orgulho
dos nescios.
Vamos á descripção
Vamos á descripção da estalagem.
Não póde
ser classica; assoviam-me todos esses rapazes de
pera, bigode e charuto, que fazem litteratura
[27]
cava e funda desde a porta do Marrare até ao
café de Moscow...
Mas aqui é que me apparece uma incoherencia
inexplicavel. A sociedade é materialista; e a
litteratura, que é a expressão da sociedade,
é toda
excessivamente e absurdamente e despropositadamente
espiritualista! Sancho rei de facto,
Quixote rei de direito!
Pois é assim; e explica-se.―É a litteratura
que é uma hypocrita: tem religião nos versos,
charidade nos romances, fé nos artigos de
jornal―como os que dão esmolas para pôr no
Diario, que amparam orphans na
Gazeta, e sustentam
viuvas nos cartazes dos theatros.
E fallam no Evangelho! Deve ser por escarneo.
Se o leem, hãode ver lá que nem a esquerda
deve saber o que faz a direita...
Vamos á descripção da estalagem; e
acabemos
com tanta digressão.
Não póde ser classica, está visto, a
tal descripção.―Seja
romantica.―Tambem não póde
[28]
ser. Porque não? É pôr-lhe
lá
um
Chourineur
a amolar um facão de palmo e meio para espatifar
rez e homem, quanto incontrar,―uma
Fleur-de-Marie para dizer e fazer
pieguices com
uma rozeirinha pequenina, bonitinha, que morreu,
coitadinha!―e um principe allemão incoberto,
forte no sôcco britannico, immenso em
libras sterlinas, profundo em gyria de cegos e
ladrões... e ahi fica a Azambuja com uma estalagem
que não tem que invejar á mais pintada
e da moda n'este seculo elegante, delicado, verdadeiro,
natural!
É como eu devia fazer a descripção:
bem o
sei. Mas ha um impedimento fatal, invencivel―egual
ao d'aquella famosa salva que se não
deu... é que nada d'isso lá havia.
E eu não quero calumniar a boa gente da
Azambuja. Que me não leam os taes, porque eu
heide viver e morrer na fé de Boileau:
Rien n'est beau que le vrai.
Ja se diz ha muito anno que honra e proveito
não cabem n'um sacco; eu digo que belleza
[29]
e mentira tambem lá não cabem: e é a
mais
portugueza traducção que creio que se possa fazer
d'aquelle ímmortal e evangelico hemystichio.
A maior parte das bellezas da litteratura actual
fazem-me lembrar aquellas formosuras que tentavam
os sanctos eremitas na Thebaida. O pobre
de Sancto Antão ou de S. Pacomio (Pacomio é
melhor aqui) ficavam imbasbacados ao princípio;
mas dava-lhe o coração uma pancada, olhavam-lhe
para os pés...―Cruzes maldicto! Os pés
não
podia elle incobrir. E ao primeiro
abrenuntio do
sancto, dissipava-se a belleza em muito fummo de
inxofre, e ficava o diabo negro feio e cabrum
como quem é, e sempre foi o pae da mentira.
Nada, nada, verdade e mais verdade. Na estalagem
da Azambuja o que havia era uma pobre
velha a quem eu chamei bruxa, porque emfim
que havia de eu chamar á velha suja e maltrapida
que estava á porta d'aquella asquerosa
casa?
Havia lá ésta velha, com a sua
môça mais
môça mas não menos nojenta de ver que
ella, e
um velho meio paralytico meio demente que alli
estava para um canto com todo o geito e traça
[30]
de quem vem folgar agora na taberna porque
ja bebeu o que havia de beber n'ella.
Matava-nos a sêde; mas a agua alli é beber
quartans. O vinho era atroz. Limonada? Não ha
limões nem assucar.―Mandou-se um proprio á
tenda no fim da villa. Vieram tres limões que me
pareceram de uns que pendiam, quando eu vinha
a férias, á porta do famoso botequim de Leiria.
O assucar podia servir na última scena de M.
de Pourceaugnac muito melhor que n'uma limonada.
Mas misturou-se tudo com a agua das sezões,
bebémos, pozemo-nos em marcha, e até
agora não nos fez mal, com ser a mais abominavel,
antipathica e suja beberagem que se póde
imaginar.
Caminhámos na mesma ordem até chegar ao
famoso pinhal da Azambuja.
CAPITULO IV.
De como o A. foi pensando e divagando,
e em que pensava
e divagava elle, no caminho da villa da Azambuja até o
famoso pinhal do mesmo nome.―Do poeta grego e philosopho
Démades, e do poeta e philosopho inglez Addison,
da casaca de penneiros e do palio atheniense, e de outros
importantes assumptos em que o A. quiz mostrar a sua profunda
erudição.―Discute-se a materia gravissima se
é necessario
que um ministro d'estado seja ignorante e leigarraz.―Admiraveis
reflexões de zigzag em que se tracta de
re politica e de re
amatoria.―Descobre-se porfim que o
A. estivera a sonhar em todo este capitulo, e pede-se ao
leitor benevolo que volte a folha e passe ao seguinte.
Eu darei sempre o primeiro logar á modestia
entre todas as bellas qualidades.―Ainda sôbre
a innocencia?―Ainda sim. A innocencia basta
uma falta para a perder, da modestia so culpas
[32]
graves, so crimes verdadeiros podem privar. Um
accidente, um acaso podem destruir aquella, a
ésta so uma acção propria, determinada
e voluntaria.
Bem me lembram ainda os dois versos do poeta
Démades que são forte argumento de auctoridade
contra a minha theoria; cuidei que tinha
mais infeliz memoria. Heide pô-los aqui para que
não falte a ésta grande obra das minhas viagens
o merito da erudição, e lhe não chamem
livrinho
da moda: estou resolvido a fazer a minha
reputação com este livro.
Aid
ôs te kalle ka
aretês polis,
Prôtoê
sgathis hamartia deuteron de ais
chunê
Da belleza e virtude é a cidadella
A innocencia primeiro―e depois ella.
Mas a auctoridade responde-se com auctoridade,
e a texto com texto. E eu trago aqui na
algibeira o meu Addison―um dos poucos livros
que não largo nunca―e atiro com o philosopho
inglez ao philosopho grego e fico triumphante:
porque Addison não põe nada acima da
[33]
modestia; e Addison, apezar da sua casaca de
penneiros, é muito maior philosopho do que foi
Démades com a sua tunica e o seu palio atheniense.
O erudito e amavel leitor escapará d'ésta vez
a mais citações: compre um
Spectator, que é
livro sem que se não póde estar, e veja
passim.
Eu gósto, bem se ve, de ir ao incôntro das
objecções que me podem fazer; lembro-as eu
mesmo paraque depois me não digam:―'Ah,
ah! vinha a ver se pegava!'―Não senhor, não
é o meu genero esse.
Francamente pois... eis-ahi o que poderão dizer:―'Addison
foi secretario d'Estado, e então...'―Então
o quê? Não concebem um secretario
d'Estado philosopho, um ministro poeta,
escriptor elegante, cheio de graça e de talento?
Não, bem vejo que não: teem a idea
fixa de que um ministro d'Estado hade ser por
fôrça algum semsaborão, malcriado e
petulante.
Mas isto é nos paizes adiantados em que ja é
indifferente
para a coisa-pública, em que povo nem
principe lhes não importa ja, em que mãos se
intregam,
[34]a que
cabeças se confiam. Em Inglaterra
não é assim, nem era assim no tempo de
Addison.
Fossem lá
á rainha Anna que deixasse
entrar no seu gabinete quatro calças de coiro
sem criação nem instrucção,
e não mais senão
so porque este sabía jogar nos fundos, aquelle
tinha boas tretas para o
canvassing
de umas eleições,
o outro era figura importante no
Freemasson's-hall!
Ja se ve que em nada d'isto ha a minima allusão
ao feliz systema que nos rege: estou fallando
de modestia, e nós vivemos em Portugal.
A modestia comtudo quando é excessiva e se
aproxima do acanhamento, do que no mundo se
chama
falta de uso―póde
ser n'um homem quasi
defeito inteiro. Na mulher é sempre virtude,
realce de belleza ás formosas, disfarce de fealdade
ás que o não são.
Por mim, não conheço objecto mais lindo em
toda a natureza, mais feiticeiro, mais capaz de
arrebatar o espirito e inflammar o coração do que
é uma joven donzella quando a modestia lhe faz
subir o rubor ás faces, e o pejo lhe carrega brandamente
[35]nas
palpebras... Pouco lume que tenha
nos olhos, pouco regular que seja o semblante,
menos airosa que seja a figura, parecer-vos-ha
n'esse momento um anjo. E anjo é a virgem modesta,
que traz no rosto debuxado sempre um
ceo de virtudes...―De alguma belleza sei eu cujos
olhos
côr da noite ou de
saphyra (
dialec.
poet.
vet.), cujas faces de
leite e
rosas, dentes de
pérolas,
collo de
marfim, transas de
ebano (a
allusão é surtida, ha onde escolher) davam larga
materia a boas grozas de sonetos―no antigo regimen
dos sonetos, e hoje inspirariam myriadas
de canções descabelladas e vaporosas, choradas
na harpa ou gemidas no alahude. Comtanto que
não seja lyra, que é classico, todo o
instrumento,
inclusivamente a bandurra, é egual deante da lei
romantica.
Ora pois, mas a tal belleza, por certo ar ala-moda,
certo não-sei-quê de atrevido nos olhos,
de deslavado na cara, e de descomposto nos ademanes,
perde toda a graça e quasi a propria formosura
de que a dotára a natureza...
Vêde-me aquelles labios de carmim. Ha maio
florido que tam lindo botão de rosa
apresente ao
[36]
alvorecer da madrugada?... Mas olhae agora como
o riso da malicia lh'o desfolha tam feiamente
n'uma desconcertada risada...
Desvaneceu-se o prestigio.
Não havia moço nem velho, homem do mundo
ou sabio de gabinete que não désse metade
dos seus prazeres, dos seus livros, da sua vida
por um so beijo d'aquella bôcca... Agora talvez
nem repetidos
avances lhe
façam obter um namorante
de profissão e officio... E hade pagá-lo
adeantado, e porque preço!...
Mas o que terá tudo isto com a jornada da
Azambuja ao Cartaxo? A mais íntima e verdadeira
relação que é possivel. É
que a pensar ou
a sonhar n'estas coisas fui eu todo o caminho,
até me achar no meio do pinhal da Azambuja.
Ahi parámos, e acordei eu.
Sou sujeito a éstas distracções, a
este sonhar
[37]
acordado. Que lhe heide eu fazer? Andando,
escrevendo, sonho e ando, sonho e fallo, sonho
e escrevo. Francamente me confesso de somnambulo,
de somniloquo, de... Não, fica melhor
com seu ar de grego (tenho hoje a bossa hellenica
n'um estado de tumescencia pasmosa!); digamos
somnilogo, somnigrapho...
A minha opinião sincera e
conscienciosa é que
o leitor deve saltar éstas folhas, e passar ao capitulo
seguinte, que é outra casta de capitulo.
CAPITULO V.
Chega o A. ao pinhal da Azambuja, e não o acha. Trabalha-se
por explicar este phenomeno pasmoso. Bello rasgo de stylo
romantico.―Receita para fazer litteratura original com
pouco trabalho.―Transição classica: Orpheu e o
bosque
do Ménalo.―Desce o A. d'estas grandes e sublimes
considerações
para as realidades materiaes da vida: é desamparado
pela hospitaleira traquitana e tem de cavalgar na
triste mula de arrieiro.―Admiravel choito do animal.
Memorias do marquez do F. que adorava o choito.
Este é que é o pinhal da Azambuja?
Não póde ser.
Ésta, aquella antiga selva, temida quasi religiosamente
como um bosque druidico! E eu
[40]
que, em pequeno, nunca ouvia contar historia de
Pedro de Mallas-artes, que logo, em imaginação,
lhe não pozesse a scena aqui perto!... Eu que
esperava
topar a cada passo com a cova do capitão
Roldão e da dama Leonarda!... Oh! que ainda
me faltava perder mais ésta illusão...
Por quantas maldicções e infernos adornam o
stylo d'um verdadeiro escriptor romantico, digam-me,
digam-me: onde estão os arvoredos fechados,
os sitios medonhos d'esta espessura. Pois
isto é possivel, pois o pinhal da Azambuja é
isto?...
Eu que os trazia
promptos e
recortados para
os collocar aqui todos os amaveis salteadores
de Schiller, e os elegantes facinorosos do
Auberge-des-Adrets,
eu heide perder os meus chefes-d'obra!
Que é perdê-los isto―não ter onde os
pôr!..
Sim, leitor benevolo, e por ésta occasião te
vou explicar como nós hoje em dia fazemos a
nossa litteratura. Ja me não importa guardar segredo,
depois d'esta desgraça não me importa ja
nada. Saberás pois, ó leitor, como nós
outros fazemos
o que te fazemos ler.
Tracta-se de um romance, de um drama―cuidas
[41]
que vamos estudar
a historia, a natureza,
os monumentos, as pinturas, os sepulchros, os edificios,
as memorias da epocha? Não seja pateta,
senhor leitor, nem cuide que nós o somos.
Desenhar
characteres e situações do
vivo da natureza,
collori-los das côres verdadeiras da historia... isso
é trabalho difficil, longo, delicado, exige um
estudo, um talento, e sôbretudo um tacto!...
Não senhor: a coisa faz-se muito mais facilmente.
Eu lhe explico.
Todo o drama e todo o romance precisa de:
Uma ou duas damas,
Um pae,
Dois ou tres filhos, de dezanove a trinta annos,
Um criado velho,
Um monstro, incarregado de fazer as
maldades,
Varios tractantes, e algumas pessoas capazes
para intermedios.
[42]
Ora bem; vai-se aos figurinos francezes de
Dumas, de Eug. Sue, de Victor-Hugo, e
recorta
a gente, de cadaum d'elles, as figuras que
precisa, gruda-as sôbre uma folha de papel da
côr da moda, verde, pardo, azul―como fazem
as raparigas inglezas aos seus albums e scrapbooks;
fórma com ellas os
grupos e situações
que lhe parece; não importa que sejam mais ou
menos disparatados. Depois vai-se ás chronicas,
tiram-se uns poucos de nomes e de palavrões
velhos; com os nomes chrismam-se os figurões,
com os palavrões
illuminam-se... (stylo de pintor
pinta-monos).―E aqui está como nós fazemos a
nossa litteratura original.
E aqui está o precioso trabalho que eu agora
perdi!
Isto não póde ser! Uns poucos de pinheiros
raros e infezados atravez dos quaes se estão quasi
vendo as vinhas e olivedos circumstantes!..
É o desapontamento mais chapado e solemne
que nunca tive na minha vida―uma verdadeira
logração em boa e antiga phrase portugueza.
E comtudo aqui é que devia ser, aqui é que
[43]
é, geographica e topographicamente fallando, o
bem conhecido e confrontado sitio do pinhal da
Azambuja...
Passaria por aqui algum Orpheu que, pelos magicos
podêres da sua lyra, levasse atraz de si as
árvores d'este antigo e classico Menalo dos salteadores
lusitanos?
Eu não sou muito difficil em admittir prodigios
quando não sei explicar os phenomenos por
outro modo. O pinhal da Azambuja mudou-se.
Qual, de entre tantos Orpheus que a gente por
ahi ve e ouve, foi o que obrou a maravilha,
isso é mais difficil de dizer. Elles são tantos,
e
cantam todos tão bem! Quem sabe? Juntar-se-hiam,
fariam uma companhia por acções, e negociariam
um emprestimo harmonico com que
facilmente se obraria então o milagre. É como
hoje se faz tudo; é como se passou o thesoiro
para o banco, o banco para as companhias de
confiança... porque se não faria o mesmo com o
pinhal da Azambuja?
Mas aonde está elle então? faz favor de me
dizer...
[44]
Sim senhor, digo:
está
consolidado. E se não
sabe o que isto quer dizer, leia os orçamentos,
veja a lista dos tributos, passe pelos olhos os votos
de confiança; e se depois d'isto, não souber
aonde e como
se consolidou o pinhal
d'Azambuja,
abandone a geographia que visivelmente não é a
sua especialidade, e deite-se a finança, que tem
bossa;―fazemo-lo eleger ahi por
Arcozello ou
pela cidade eterna―é o mesmo―vai para
a commissão de fazenda―depois lord do thesoiro,
ministro: é
escalla,
não offendia nem a
rabujenta constituição de 38, quanto mais a
carta.
O peior é que no meio d'estes campos onde
Troia fôra, no meio d'estas areias onde se acoitavam
d'antes os pallidos medos do pinhal da
Azambuja, a minha querida e bemfazeja traquitana
abandonou-me; fiquei como o bom
Xavier
de Maistre quando, a meia jornada do seu quarto,
lhe perdeu a cadeira o equilibrio, e elle cahiu―ou
ia caindo, ja me não lembro bem―estatellado
no chão.
Ao chão estive eu para me atirar, como criança
[45]
amuada, quando vi voltar para a Azambuja
o nosso commodo vehiculo, e deante de mim a
infezada mulinha asneira que―ai triste!―tinha
de ser o meu transporte d'alli até Santarem.
Emfim o que hade ser, hade ser, e tem muita
fôrça. Consolado com este tam verdadeiro quanto
elegante proverbio, levantei o
ânimo á altura da
situação e resolvi fazer próva de
homem forte e
supportador de trabalhos. Bifurquei-me resignadamente
sôbre o cilicio do esfarrapado albardão,
tomei na esquerda as impermeaveis redeas de
coiro cru, e lancei o animalejo ao seu mais largo
trote, que era um confortavel e amenissimo
choito, digno de fazer as delicias do meu respeitavel
e excentrico amigo, o marquez do F.
Tinha a bossa, a paixão, a mania, a furia
de choitar aquelle notavel fidalgo―o último fidalgo
homem de lettras que deu ésta terra. Mas
adorava o choito o nobre marquez. Conheci-o em
París nos ultimos tempos da sua vida, ja octogenario
ou perto d'isso: deixava a sua carruagem
ingleza toda mollas e confortos para ir passear
n'um certo cabriolet de praça que elle tinha marcado
[46]
pelo sêcco e duro movimento vertical com
que sacudia a gente. Obrigou-me um dia a experimenta-lo:
era admiravel. Communicava-se
da velha horsa normanda aos varaes, e dos varaes
á concha do carro, tam inteiro e tam sem
diminuição, o choito do execravel
Babiéca! Nunca
vi coisa assim. O marquez achava-lhe propriedades
toni-purgativos, eu classifiquei-o de violentissimo
drastico.
Foi um dos homens mais extraordinarios e o
portuguez mais notavel que tenho conhecido, aquelle
fidalgo.
Era feio como o peccado, elegante como um
bugio, e as mulheres adoravam-n'o. Filho segundo,
vivia de seus ordenados nas missões por
que sempre andou, tractava-se grandiosamente,
e legou valores consideraveis por sua morte. Imprimia
uma obra sua, mandava tirar um unico
exemplar, guardava-o e desmanchava as
fòrmas....―Não
acabo se coméço a contar historias
do marquez do F.
Piquemos para o Cartaxo, que são horas.
CAPITULO VI.
Próva-se como o velho
Camões não teve
outro remedio senão
misturar o maravilhoso da mythologia com o do christianismo.―Da-se
razão, e tira-se depois, ao padre José
Agostinho.―No
meio d'estas disceptações academico-litterarias
vem
o A. a descobrir que para tudo é preciso ter fé
n'este mundo.
Diz-se n'este mundo, porque, quanto
ao outro ja era
sabido.―Os Lusíadas, Fausto e a
Divina-Comedia.―Desgraça
do Camões em ter nascido antes do romantismo.―Mostra-se
como a Styge e o Cocyto sempre são melhores
sitios que o Inferno e o Purgatorio.―Vai o A. em procura
do marquez de Pombal, e dá com elle nas ilhas Beatas do
poeta Alceu.―Partida de Whist entre os illustres
finados.―Compaixão
do marquez pelos pobres homens de Ricardo
Smith e J. B. Say.―Resposta d'elle e da sua luneta ás
perguntas peralvilhas do A.―Chegada a este mundo e ao
Cartaxo.
O mais notavel, e não sei se diga, se continuarei
aomenos a dizer, o mais indesculpavel
defeito que até aqui esgravataram criticos
e zoilos na Iliada dos povos modernos, os
[48]
immortaes
Lusiadas,
é sem-dúvida a heterogenea
e heterodoxa mistura da theologia com a mythologia,
do maravilhoso allegorico do paganismo,
com os graves symbolos do christianismo.
A fallar a verdade, e por mais figas que a gente
queira fazer ao padre José Agustinho―ainda
assim! ver o padre Baccho revestido
in
pontificalibus
deante de um retabulo, não me lembra
de que sancto, dizendo o seu
dominus
vobiscum
provavelmente a algum acholyto bacchante ou corybante,
que lhe responde o
et cum spiritu
tuo!..
não se póde; é uma que realmente... E
então
aquelle famoso conceito com que elle acaba, digno
da Phenix-Renascida:
O falso deus adora o verdadeiro!
Desde que me intendo, que leio, que admiro
os Lusiadas; interneço-me, chóro,
insuberbeço-me
com a maior obra de ingenho que ainda
appareceu no mundo, desde a
Divina-Comedia
até ao
Fausto...
O italiano tinha fé em Deus, o allemão no
scepticismo, o portuguez na sua patria. É preciso
crer em alguma coisa para ser grande―não
so poeta―grande seja no que for. Uma Brizida
[49]velha que eu tive,
quando era pequeno, era
famosa chronista de historias da carochinha, porque
sinceramente cria em bruxas. Napoleão cria
na sua estrella, Lafayette creu na republica-rei
de Luiz-Philippe; e, para que ousemos tambem
celebrare domestica facta, todos os
nossos grandes
homens ainda hoje creem, um na juncta do crédito,
outro nas classes inactivas, outro no mestre
Adonirão, outro finalmente na belleza e realidade
do systema constitucional que felizmente
nos rege.
Mas essas crenças são para os que se fizeram
grandes com ellas. A um pobre homem
o que lhe fica para crer? Eu, apezar dos criticos,
ainda creio no nosso Camões: sempre
cri.
E comtudo, desde a edade da innocencia em
que tanto me divertiam aquellas batalhas, aquellas
aventuras, aquellas historias d'amores, aquellas
scenas todas, tam naturaes, tam bem pintadas―até
ésta fatal edade da experiencia, edade prosaica
em que as mais bellas creações do espirito
parecem
macaquices deante das realidades do mundo,
e os nobres movimentos do coração chymeras de
[50]
enthusiastas―até ésta edade de saudades do
passado
e esperanças no futuro, mas sem gosos no
presente―em que o amor da patria (tambem
isto será phantasmagoria?), e o sentimento intimo
do
bello me dão na
leitura dos Lusiadas outro
deleite diverso, mas não inferior ao que n'outro
tempo me deram―eu senti sempre aquelle
grande defeito do nosso grande poema: e nunca
pude, por mais que buscasse, achar-lhe,
justificação
não digo―nem siquer desculpa.
Mas até morrer aprender, diz o adagio: e assim
é. E tambem é aphorismo de moral, applicavel
outrosim a coisas litterarias: que para a
gente achar a desculpa aos defeitos alheios, é
considerar―é pôr-se uma pessoa nas mesmas
circumstancias, ver-se involvido nas mesmas difficuldades.
Aqui estou eu agora dando toda a desculpa ao
pobre Camões, com vontade de o justificar, e
prompto (assim são as charidades d'este mundo)
a sahir a campo de lança em reste e a quebrá-la
com todo o antagonista que por aquelle fraco o
atacar.―E porque será isto? Porque chegou a
minha hora; e―
si parva licet componnere magnis
[51]
(a bossa proeminente hoje é a latina), aqui me
acho eu com este meu capitulo nas mesmas difficuldades
em que o nosso bardo se viu com o seu
poema.
Ja preveni as observações com o texto acima:
bem sei quem era Camões, e quem sou eu;
mas tracta-se da
intalação, que
é a mesma apezar
da differença dos intalados. O auctor dos Lusiadas
viu-se intalado entre a crença do seu paiz
e as brilhantes tradições da poesia classica que
tinha por mestra e modêlo.
Não havia ainda então romanticos nem romantismo,
o seculo estava muito atrazado.
As odes de Victor-Hugo não tinham ainda desbancado
as de Horacio; achavam-se mais lyricos
e mais poeticos os esconjurios de Canidia, do
que os pesadelos de um inforcado no oratorio;
chorava-se com os
Tristes de Ovidio,
porque se
não lagrimejava com as meditações de
Lamartine.
Andromacha despedindo-se de Heitor ás portas
de Troia, Priamo supplicante aos pés do matador
do seu filho, Helena luctando entre o remorso
do seu crime e o amor de Páris, não tinham
ainda sido eclipsados pelas declamações da
[52]
mãe Eva ás grades do paraizo terreal. O combate
de Achilles e Heitor, das hostes argivas com
as troianas, não tinha sido mettido n'um chinello
pelas batalhas campaes dos anjos bons e dos anjos
maus á metralhada por essas nuvens. Dido
chorando por Eneas não tinha sido reduzida a
donzella choramigas d'Alfama carpindo pelo seu
Manel que vae para a India...
Realmente o seculo estava muito atrazado:
Milton não se tinha ainda sentado no logar de
Homero, Shakspeare no de Euripedes, e lord
Byron acima de todos: emfim não estava ainda
anglizado o mundo, portanto
a marcha do
intellecto
no mesmo terreno, é tudo uma miseria.
Ora pois, o nosso Camões, creador da epopea,
e―depois do Dante―da poesia moderna,
viu-se atrapalhado; misturou a sua crença religiosa
com o seu credo poetico e fez,
tranchons
le mot, uma semsaboria.
E aqui direi eu com o vate Elmano:
Camões, grande
Camões, quam similhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!
Vou fazer outra semsaboria eu, n'este bello
[53]
capitulo da minha obra-prima. Que remedio!
Preciso fallar com um illustre finado, preciso
de evocar a sombra de um grande genio que
hoje habita com os mortos. E onde irei eu?
Ao inferno? Espero que a divina justiça se apiedasse
d'elle na hora dos ultimos arrependimentos.
Ao purgatorio, ao empyreo? Apezar do exemplo
da
Divina Comedia, não me
atrevo a fazer
comedias com taes logares de scena,―e não sei,
não gósto de brincar com essas coisas.
Não lhe vejo remedio senão recorrer ao bem
parado dos Elysios, da Styge, do Cocyto e seu
termo: são terrenos neutros em que se póde
parlamentar
com os mortos sem compromettimento
serio, e....
Eis-me ahi no êrro de Camões―e nas unhas
dos criticos; e as zagunchadas a ferver em cima
de mim, que fiz, que aconteci....
Mas, senhores, ponderem, venham ca: o que
hade um homem fazer? O Dante não sei que
gyria teve que baptisou Publio Virgilio Marão
para lhe servir de cicerone nas regiões do inferno,
do paraizo e do purgatorio christão, e teve
[54]
tam boa fortuna que nem o queimou a Inquisição
nem o descompoz a Crusca, nem siquer o mutilaram
os censores, nem o perseguiram delegados
por abuso de liberdade de imprensa, nem o mandaram
para os dignos pares... Não se tinham ainda
descoberto as mangações liberaes que se usam
hoje: e as cartas que o povo tinha era a liberdade
ganha e sustentada á ponta da espada, com
muito coração e poucas palavras, muito
patriotismo,
poucas leis... e menos relatorios. Não havia
em Florença nem gazeta para louvar as tolices
dos ministros, nem ministros para pagar as
tolices da gazeta.
O Dante foi proscripto e exilado, mas não se
ficou a escrever, deu catanada que se regallou
nos inimigos da liberdade da sua patria.
Quem dera ca um batalhão de poetas como
aquelle!
Que fosse porêm um triste vate de hoje escrever
no seculo das luzes o que escrevia o Dante
no seculo das trevas! Os proprios philosophos
gritavam: Que escandalo! Atheus professos clamavam
contra a irreverencia; gentes que não
[55]
teem religião, nem a de Mafoma, bradavam
pela religião: entravam a pôr carapuças
nas cabeças
uns dos outros, cahiam depois todos sôbre
o poeta, e―se o não podessem inforcar, pelo
menos declaravam-n'o republicano, que dizem
elles que é uma injúria muito grande.
Nada! viva o nosso Camões e o seu maravilhoso
mistiforio; é a mais commoda invenção
d'este mundo: vou-me com ella, e ralhe a crítica
quanto quizer.
Quero procurar no reino das sombras não menor
pessoa que o marquez de Pombal: tenho que
lhe fazer uma pergunta séria antes de chegar ao
Cartaxo. E nós ja vamos por entre as riccas vinhas
que o circundam com uma zona de verdura
e alegria. Depressa o ramo de oiro que me abra
ao pensamento as portas fataes―depressa a unctuosa
sopetarra com que heide atirar ás tres gargantas
do canzarrão. Vamos...
Mas em que districto
d'aquellas regiões acharei
eu o primeiro ministro d'elrei D. José? Por onde
está Ixion e Tantalo, por onde demora Sysipho
e outros maganões que taes? Não; esse
é um
[56]
bairro muito triste, e arrisca-se a ter por administrador
algum escandecido que me atice as orelhas.
Nos Elysios com o pae Anchises e outros barbaças
classicos do mesmo jaez? Eu sei? tambem
isso não. Hade ser n'aquellas ilhas bemaventuradas
de que falla o poeta Alceu e onde elle poz
a passear, por eternas verduras, as almas tyrannicidas
de Harmódio e Aristógiton...
Oh! ésta agora!... Sebastião José de
Carvalho
e Mello, conde de Oeiras, marquez de Pombal,
de companhia com os seus inimigos politicos!...
Ahi é que se ingánam; não ha amigos
nem inimigos
politicos em se largando o mando e as pretenções
a elle. Ora, passados os umbraes da eternidade,
é de fé que se não pensa mais n'isso.
C.
J. X., que morreu a assignar uma portaria, ja
tinha largado a penna
quando
chegou alli pelos
Prazeres; quanto mais!...
O homem hade estar nas ilhas
beatas.
Vamos
lá...
E ei-lo alli: lá está o bom do marquez a jogar
[57]
o whist com o barão de Bidefeld, com o imperador
Leopoldo e com o poeta Diniz. A partida
deve de ser interessante, talvez aposta essa
gente toda―esses manes todos que estão á roda.
Que cara que fez o marquez a um finadinho
que lhe foi metter o nariz nas cartas! Quem
havia de ser! O intromettido de M. de Talleyrand.
Estava-lhe cahindo. Mas não viu nada: o
nobre marquez sempre soube esconder o seu jôgo.
A mim é que elle ja me viu. 'Que diz? Ah!..
Sim senhor, sou portuguez; e venho fazer uma
pergunta a V. Exa., esclarecer-me sôbre um ponto
importante.'
Deitou-me a tremenda luneta.
―'Para que mandou V. Exa. arrancar as vinhas
do Ribatejo?'
Apertou a luneta no sobrôlho e sorriu-se.
―'Ellas ahi estão centuplicadas, que até ja
invadiram o pinhal de Azambuja. Fez V. Exa.
um despotismo inutil; e agora...'
[58]
'Agora quem bebe por lá todo esse vinho?'
Não sabía o que lhe havia de responder. Elle
sacudiu a cabelleira de anneis, virou-me as costas,
deu o braço a Colbert, passou por-pé de Ricardo
Smith e de J. Baptista Say, que estavam a disputar,
incolheu os hombros em ar de compaixão,
e foi-se por uma alameda muito viçosa que ia
por aquelles deliciosos jardins dentro, e sumiu-se
da nossa vista.
Eu surdi ca n'este mundo, e achei-me emcima
da azemola, aopé do grande café do
Cartaxo.
CAPITULO VII.
Reflexões importantes
sôbre o Bois-de-Boulogne, as
carruagens
de mollas, Tortoni, e o café do Cartaxo.―Dos
cafés
em geral, e de como são o characteristico da
civilização
de um paiz.―O Alfageme.―Hecatombe involuntaria immolada
pelo A.―Historia do Cartaxo.―Demonstra-se como
a Gran'-Bretanha deveu sempre toda a sua fôrça e
toda
a sua glória a Portugal.―Shakspeare e Laffitte, Milton
e Chateaumargot, Nelson e o principe de
Joinville.―Próva-se
evidentemente que M. Guizot é a ruina de Albion
e do Cartaxo.
Voltar á meia-noite do
Bois-de-Boulogne―o
bosque por excellencia, descer, entre nuvens
de poeira, o longo stadio dos Campos-Elysios,
entrever, na rapida carreira, o obelisco
[60]
de Luxor, as árvores das Tulherias, a
columna da praça Vandomma, a magnificencia
heteroclyta da 'Magdalena', e emfim sentir parar,
de uma soffreada magistral, os dois possantes
inglezes que nos trouxeram quasi de um folego
até ao 'boulevard de Gand'; ahi entreabrir mollemente
os olhos, levantando meio corpo dos regallados
cochins de seda, e dizer: 'Ah! estamos
em Tortoni... que delicia um sorvete com este
calor!'―é seguramente, é dos prazeres maiores
d'este mundo, sente-se a gente viver; é meia
hora de existencia que vale dez annos de ser rei
em qualquer outra parte do mundo.
Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma
coisa dos sabores e dissabores d'este mundo,
fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado:
o prazer de chegar por aquelle modo a
Tortoni, o apear da elegante caleche balançada
nas mais suaves mollas que fabricasse arte ingleza
do puro aço de Suecia, não alcança,
não se
compara ao prazer e consolação de alma e corpo
que eu senti ao apear-me de minha choiteira mula
á porta do grande café do Cartaxo.
Fazem idea do que é o café do Cartaxo?
Não
[61]
fazem. Se não viajam, se não sahem, se
não
vêem mundo ésta gente de Lisboa! E passam a
sua vida entre o Chiado, a rua do Oiro e o theatro
de San'Carlos, como hãode alargar a esphera
de seus conhecimentos, desinvolver o espirito,
chegar á altura do seculo?
Coroae-vos de alface, e ide jogar o bilhar,
ou fazer sonetos á dama nova, ide, que não
prestais
para mais nada, meus queridos Lisboetas;
ou discuti os deslavados horrores de algum mellodrama
velho que fugiu assoviado da 'Porte-Saint
Martin' e veio esconder-se na Rua-dos-Condes. Tambem
podeis ir aos Toiros―estão imbolados, não
ha perigo...
Viajar?.. qual viajar! até á Cova-da-Piedade,
quando muito, em dia que lá haja cavallinhos.
Pois ficareis alfacinhas para sempre, cuidando
que todas as praças d'este mundo são como
a do Terreiro-do-Paço, todas as ruas como
a rua Augusta, todos os cafés como o do Marrare.
Pois não são, não: e o do Cartaxo
menos que
nenhum.
[62]
O café é uma das feições
mais characteristicas
de uma terra. O viajante experimentado
e fino chega a qualquer parte, entra no café,
observa-o, examina-o, estuda-o, e tem conhecido
o paiz em que está, o seu govêrno, as
suas leis, os seus costumes, a sua religião.
Levem-me de olhos tapados onde quizerem,
não me desvendem senão no café; e
protesto-lhe
que em menos de dez minutos lhe digo a terra
em que estou se for paiz sublunar.
Nós entrámos no café do Cartaxo, o
grande
café do Cartaxo; e nunca se incruzou turco em
divan de seda do mais splendido
harem
de Constantinopla
com tanto gôso de alma e satisfacção
de corpo, como nós nos sentámos nas duras e
asperas
tábuas das esguias banquetas mal sarapintadas
que ornam o magnífico estabelecimento
bordalengo.
Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade
classica: será um parallelogrammo pouco
maior que a minha alcova; á esquerda duas
mezas de pinho, á direita o mostrador invidraçado
onde campeam as garrafas obrigadas de liquor de
[63]
amendoa, de canella, de cravo. Pendem do
tecto, laboriosamente arrendados por não vulgar
tesoira, os pingentes de papel, convidando a
lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina
uma frescura admiravel n'aquelle recinto.
Sentámo-nos, respirámos largo, e
entrámos
em conversa com o dono da casa, homem de
trinta a quarenta annos, de physionomia experta
e sympathica, e sem nada do repugnante villão-ruim
que é tam usual de incontrar por similhantes
logares da nossa terra.
―'Então que novidades ha por ca pelo Cartaxo,
patrão?'
―'Novidades! Por aqui não temos senão o
que vem de Lisboa.―Ahi está a
'Revolução'
de hontem...'
―'Jornaes, meu caro amigo! Vimos fartos
d'isso. Diga-nos alguma coisa da terra. Que faz
por ca o...'
―'O mestre J. P., o 'Alfageme?''
[64] ―'Como assim o Alfageme?'
―'Chamam-lhe o Alfageme ao mestre J. P.:
pois então! Uns senhores de Lisboa que ahi estiveram
em casa do Sr. D. poseram-lhe esse nome,
que a gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que
agora ja ninguem lhe chama senão o Alfageme.
Mas quanto a mim, ou elle não é Alfageme, ou
não o hade ser muito tempo. Não é
aquelle, não.
Eu bem me intendo.'
A conversação tornava-se interessante,
especialmente
para mim: quizemos profundar o caso.
―'Muito me conta, Sr. patrão! Com que
isto de ser Alfageme, parece-lhe que é coisa
de?..
―'Parece-me o que é, e o que hade parecer a
todo o mundo. E alguma coisa sabemos, ca no
Cartaxo, do que vai por elle.
O
verdadeiro Alfageme
diz que era um espadeiro ou armeiro,
cutileiro ou coisa que o valha, na Ribeira de Santarem;
e que foi um homem capaz, e que tinha
pelo povo, e que não queria saber de partidos,
e que dizia elle: 'Rei que nos inforque, e papa
[65]que nos
excommungue, nunca hade faltar. Assim,
deixar os outros brigar, trabalhemos nós
e ganhemos a nossa vida.' Mas que extrangeiros
que não queria, que ésta terra que era nossa e
co'a nossa gente se devia de governar. E mais
coisas assim: e que porfim o deram por traidor
e lhe tiraram quanto tinha.―Mas que lhe
valeu o Condestavel e o não deixou arrazar, por
que era homem de bem e fidalgo ás direitas.
Pois não é assim que foi?'
―'É, sim, meu amigo. Mas então d'ahi?'
―'Então d'ahi o que se tira, é que quando
havia fidalgos como o sancto Condestavel tambem
havia Alfagemes como o de Santarem. E mais
nada.'
―'Perfeitamente. Mas porque chamaram ao
mestre P. o Alfageme do Cartaxo?'
―'Eu lhe digo aos senhores: o homem nem
era assim nem era assado. Fallava bem, tinha
sua labia com o povo. D'ahi fez-se juiz, pôs por
ahi suas coisas a direito―Deus sabe as que elle
intortou tambem!.. ganhou nome no povo, e
[66]
agora faz d'elle o que quer. Se lhe der sempre
para bem, bom será.―Os senhores não tomam
nada?'
O bom do homem visivelmente não queria
fallar mais: e não deviamos importuná-lo.
Fizemos
o sacrificio de bom número de limões que
expremémos em profundas taças―vulgo, copos
de canada―e com agua e assucar, offerecemos
as devidas libações ao genio do logar.
Infelizmente o sacrificio não foi detodo incruento.
Muitas hecatombes de myrmidões cahiram
no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor
que não sei se agradou á divindade, mas que
injoou terrivelmente aos sacerdotes.
Sahimos a visitar o nosso bom amigo, o velho
D., a honra e a alegria do Ribatejo. Ja elle sabía
da nossa chegada, e vinha no caminho para
nos abraçar.
Fomos dar, junctos, uma volta pela terra.
É das povoações mais bonitas de
Portugal, o
Cartaxo, aceada, alegre; parece o bairro suburbano
de uma cidade.
[67]
Não ha aqui monumentos, não ha historia
antiga: a terra é nova, e a sua prosperidade e
crescimento datam de trinta ou quarenta annos,
desde que o seu vinho começou a ter fama. Ja
descahida do que foi, pela estagnação d'aquelle
commercio, ainda é comtudo a melhor coisa da
Borda-d'agua.
Não tem historia antiga, disse; mas tem-n'a
moderna e importantissima.
Que memorias aqui não ficaram da guerra peninsular!
Que espantosas borracheiras aqui não
tomaram os mais famosos generaes, os mais distinctos
militares da nossa
antiga e fiel
alliada, que
ainda então, ao menos, nos bebia o vinho!
Hoje nem isso!.. hoje bebe a jacobina zurrapa
de Bordeos, e as acerbas limonadas de Borgonha.
Quem tal diria da conservativa Albion!
Como póde uma leal goella britannica, rascada
pelos acidos anarchicos d'aquellas vinagretas francezas,
intoar devidamente o God-save-the-King
em um
toast nacional! Como, sem
Porto ou Madeira,
sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um subdito
britannico erguer a voz, n'aquella harmoniosa
desafinação
[68] insular que lhe
é propria e
que faz parte
de seu respeitavel character nacional―faz;
não se riam: o inglez não canta senão
quando
bebe... alias quando está
bebido.
Nisi
potus ad
arma ruisse. Inverta:
Nisi potus in
cantum prorumpisse... E pois, como hade elle assim
bebido
erguer a voz n'aquelle sublime e tremendo hymno
popular Rulle-Britannia!
Bebei, bebei bem zurrapa franceza, meus amigos
inglezes; bebei, bebei a pêso de oiro, essas
limonadas dos burgraves e margraves de Allemanha;
chamae-lhe, para vos illudir, chamae-lhe
hoc, chamae-lhe
hic, chamae-lhe o
hic haec
hoc todo, se vos dá gôsto... que
em poucos annos
veremos o estado de
acetato a que
hade ficar
reduzido o vosso character nacional.
Oh gente cega a quem Deus quer perder!
pois não vêdes que não sois nada sem
nós, que
sem o nosso alchool, d'onde vos vinha espirito,
sciencia, valor, ides cahir infallivelmente na antiga
e priguiçosa rudeza saxonia!
D'essas traidoras praias da França donde vos
vai hoje o veneno corrosivo da vossa indole e
[69]
da vossa fôrça, não tardará
que tambem vos
chegue outro Guilherme bastardo que vos conquiste
e vos castigue, que vos faça arrepender,
mas tarde, do criminoso êrro que hoje commetteis,
ó insulares sem fe, em abandonar a nossa
alliança. A nossa alliança sim, a nossa poderosa
alliança, sem a qual não sois nada.
O que é um inglez sem Porto ou Madeira...
sem Carcavellos ou Cartaxo?
Que se inspirasse Shakspeare com Lafitte,
Milton com Chateaumargot―o chanceller Bacon
que se dilluisse no melhor Borgonha... e veriamos
os acidulos versinhos, os destemperados
raciocininhos que faziam.
Com todas as suas dietas, Newton nunca
se lembrou de beber Johannisberg; Byron antes
beberia
gin, antes agua do Thamisa,
ou do Pamiso,
do que essas escorreduras das areias de
Bordeos.
Tirae-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguem
mais teme que torneis a ter outro Nelson.
Entra nos planos do principe de Joinville fazer-vos
[70]
beber da sua zurrapa: são tantos pontos de
partido que lhe dais no seu jôgo.
É M. Guizot quem perde a Inglaterra com
a sua alliança; e tambem perde o Cartaxo. Por
isso eu ja não quero nada com os doutrinarios.
Ha dôze annos tornou o Cartaxo a figurar conspicuamente
na historia de Portugal. Aqui, nas
longas e terriveis luctas da última guerra de
successão,
esteve muito tempo o quartel-general do
marquez de Saldanha.
Alguns dythirambos se fizeram; alguns echos
das antigas canções bacchicas do tempo da guerra
peninsular ainda acordaram ao som dos hymnos
constitucionaes.
Mas o systema liberal, tirada a epocha das
eleições, não é grande
coisa para a indústria vinhateira,
dizem. Eu não o creio porém; e tenho
minhas boas razões, que ficam para outra vez.
CAPITULO VIII.
Sahida do Cartaxo―A charneca. Perigo
imminente em que
o A. se acha de dar em poeta e fazer versos.―Ultima
revista do imperador D. Pedro ao exército liberal.―Batalha
de Almoster.―Waterloo.―Declara o A. solemnemente
que não é philosopho e chega á ponte
da Asseca.
Eram dadas cinco da tarde, a calma declinava;
montámos a cavallo, e cortámos por entre
os viçosos pampanos que são a glória e
a
belleza do Cartaxo; as mulinhas tinham refrescado
[72]
cado e tomado ânimo; breve, nos achámos em
plena charneca.
Bella e vasta planicie! Desafogada dos raios
do sol, como ella se desenha ahi no horisonte
tam suavemente! que delicioso aroma selvagem
que exhalam éstas plantas, acres e tenazes de vida,
que a cobrem, e que resistem verdes e viçosas
a um sol portugez de julho!
A doçura que mette n'alma a vista refrigerante
de uma joven seara do Ribatejo nos primeiros
dias de abril, ondulando lascivamente com a brisa
temperada da primavera,―a amenidade bucolica
de um campo minhoto de milho, á hora
da rega, por meados de agosto, a ver-se-lhe
pullar os caules com a agua que lhe anda por pé, e
á roda as carvalheiras classicamente desposadas
com a vide cuberta de racimos pretos―são ambos
esses quadros de uma poesia tam graciosa e
cheia de mimo, que nunca a dei por bem traduzida
nos melhores versos de Theocrito ou de Virgilio,
nas melhores prosas de Gesner ou de Rodrigues-Lobo.
A majestade sombria o solemne de um bosque
[73]
antigo e copado, o silencio e escuridão
de suas moitas mais fechadas, o abrigo solitario
de suas clareiras, tudo é grandioso, sublime, inspirador
de elevados pensamentos. Medita-se
alli por fôrça; isola-se a alma dos sentidos pelo
suave adormecimento em que elles cahem... e
Deus, a eternidade―as primitivas e innatas ideas
do homem―ficam unicas no seu pensamento...
É assim. Mas um rochedo em que me eu sente
ao pôr do sol na gandra erma e selvagem,
vestida apenas de pastio bravo, baixo, e tosqueado
rente da bôcca do gado―diz-me coisas da
terra e do ceo que nenhum outro espectaculo me
diz na natureza. Ha um vago, um indeciso, um
vaporoso n'aquelle quadro que não tem nenhum
outro.
Não é o sublime da montanha, nem o augusto
do bosque, nem o ameno do valle. Não ha
ahi nada que se determine bem, que se possa
definir positivamente. Ha a solidão que é uma
idea negativa...
Eu amo a charneca.
[74]
E não sou romanesco. Romantico, Deus me
livre de o ser―ao menos, o que na algaravia
de hoje se intende por essa palavra.
Ora a charneca d'entre Cartaxo e Santarem,
áquella hora que a passámos, começava
a ter
esse tom, e a achar-lhe eu esse incanto indefinivel.
Sentia-me disposto a fazer versos... a quê?
Não sei.
Felizmente que não estava so; e escapei de
mais essa caturrice.
Mas foi como se os fizesse, os versos, como
se os estivesse fazendo, porque me deixei cahir
n'um verdadeiro estado poetico de distracção, de
mudez―cessou-me a vida toda de
relação, e
não me sentia existir senão por dentro.
Derepente acordou-me do lethargo uma voz
que bradou:―'Foi aqui!... aqui é que foi, não ha
dúvida'.
―'Foi aqui o quê?'
[75] ―'A última revista do imperador'.
―'A última revista! Como assim a última
revista! Quando? Pois?...'
Então cahi completamente em mim, e recordei-me,
com amargura e desconsolação, dos
tremendos sacrificios a que foi condemnada ésta
geração, Deus sabe para quê―Deus sabe
se para
expiar as faltas de nossos passados, se para comprar
a felicidade de nossos vindouros...
O certo é que alli comeffeito
passára o imperador
D. Pedro a sua última revista ao exército
Toda a guerra civil é triste.
E é difficil dizer para quem mais triste, se
para o vencedor ou para o vencido.
Ponham de parte questões individuaes, e examinem
de boa fé: verão que, na totalidade de
cada facção em que a nação
se dividiu, os ganhos,
[76]se
os houve para quem venceu, não balançam
os padecimentos, os sacrificios do passado,
e menos que tudo, a responsabilidade pelo futuro...
Eu não sou philosopho. Aos olhos do philosopho,
a guerra civil e a guerra extrangeira, tudo
são guerras que elle condemna―e não mais
uma do que a outra... a não ser Hobbes o ditto
philosopho, o que é coisa muito differente.
Mas não sou philosopho, eu: estive no campo
de Waterloo, sentei-me aopé do Leão de bronze
sôbre aquelle monte de terra amassado com o
sangue de tantos mil, vi―e eram passados vinte
annos―vi luzir ainda pela campina os ossos brancos
das victimas que alli se immolaram a não sei
quê... Os povos disseram que á liberdade, os
reis que á realeza... Nenhuma d'ellas ganhou muito,
nem para muito tempo com a tal victoria...
Mas deixemos isso. Estive alli, e senti bater-me
o coração com essas
recordações, com
essas memorias dos grandes feitos e gentilezas que
alli se obraram.
[77]
Porque será que aqui não sinto senão
tristeza?
Porque luctas fratricidas não podem inspirar
outro sentimento e porque...
Eu moía comigo so éstas amargas
reflexões,
e toda a belleza da charneca desappareceu deante
de mim.
N'esta desagradavel disposição de
ânimo chegámos
á ponte d'Asseca.
CAPITULO IX.
Prolegomenos dramatico-litterarios, que
muito naturalmente
levam, apezar de alguns rodeios, ao retrospecto e
reconsideração
do capitulo antecedente.―Livros que não deviam
ter titulo, e titulos que não deviam ter livro.―Dos poetas
d'este seculo. Bonaparte, Rotchild e
Silvio-Péllico.―Chega-se
ao fim d'estas reflexões e á ponte da
Asseca.―Traducção
portugueza de um grande poeta.―Origem de um dictado.―Junot
na ponte da Asseca.―De como o A. d'este
livro foi jacobino desde pequeno.―Inguiço que lhe deram.―A
duqueza de Abrantes.―Chega-se emfim ao val
de Santarem.
Vivia aqui ha coisa de cinquenta para sessenta
annos, n'esta boa terra de Portugal, um figurão
exquisitissimo que tinha inquestionavelmente
o instincto de descobrir assumptos dramaticos
[80]
nacionaes―ainda, ás vezes, a arte de desenhar
bem o seu quadro, de lhe grupar, não sem mérito,
as figuras: mas ao pô-las em acção, ao
collori-las, ao fazê-las fallar... boas noites! era
semsaboria irremediavel.
Deixou uma collecção immensa de peças
de
theatro que ninguem conhece, ou quasi ninguem,
e que nenhuma soffreria, talvez, representação;
mas rara é a que não poderia ser arranjada e
appropriada
á scena.
Que mina tam ricca e fertil para qualquer mediano
talento dramatico! Que bellas e portuguezas
coisas se não podem extrahir dos treze
volumes―são
treze volumes e grandes!―do theatro
de Ennio-Manuel de Figueiredo! Algumas
d'essas peças, com bem pouco trabalho, com
um dialogo mais vivo, um stylo mais animado,
fariam comedias excelentes.
Estão-me a lembrar éstas:
'O Casamento da Cadea'―ou talvez se chame
outra coisa, mas o assumpto é este; comedia
cujos characteres são habilmente esboçados,
[81]
funda-se n'aquella nossa antiga lei que fazia casar
da prisão os que assim se suppunha podêrem
reparar certos damnos de reputação feminina.
'O fidalgo de sua casa', satyra mui graciosa
de um tam commum ridiculo nosso.
'As duas educações', bello quadro de costumes:
são dois rapazes, ambos extrangeiramente educados,
um francez, outro inglez, nenhum portuguez.
É eminentemente comico, frisante, ou,
segundo agora se diz á moda, 'palpitante de
actualidade.'
'O cioso', comedia ja remoçada da antiga comedia
de Ferreira e que em si tem os germens
todos da mais ricca e original composição.
'O avaro dissipador', cujo so titulo mostra o
ingenho e invenção de quem tal assumpto concebeu:
assumpto ainda não tractado por nenhum
de tantos escriptores dramaticos de nação alguma,
e que é todavia um vulgar ridiculo, todos os dias
incontrado no mundo.
São muitas mais, não fica n'estas, as
composiçõe
São muitas mais, não fica n'estas, as
composições
[82]
do fertilissimo escriptor que, passadas
pelo
crivo de melhor gôsto, e animadas sôbretudo
no stylo, fariam um razoavel repertorio para acudir
á mingua dos nossos theatros.
Uma das mais semsabores porêm, a que vulgarmente
se haverá talvez pela mais semsabor,
mas que a mim mais me diverte pela ingenuidade
familiar e sympathica de seu tom magoado
e melancholicamento chocho, é a que tem por titulo
'Poeta em annos de prosa'.
E foi por ésta, foi por amor d'esta que me
eu deixei descahir na digressão dramatico-litteraria
do princípio d'este capitulo; pegou-se-me
á penna porque se me tinha pregado na cabeça;
e ou o capitulo não sabia, ou ella havia de sahir
primeiro.
Poeta em annos de prosa! Oh Figueiredo, Figueiredo,
que grande homem não foste tu, pois imaginaste
este titulo que so elle em si é um volume!
Ha livros, e conheço muitos, que não deviam
ter titulo, nem o titulo é nada n'elles.
Faz favor de me dizer o de que serve, o que
[83]
significa o 'Judeu errante' pôsto no frontispicio d'esse
interminavel e mercatorio romance que ahi anda
pelo mundo, mais errante, mais sem fim,
mais immorredoiro que o seu prototypo?
E ha titulos tambem que não deviam ter livro,
porque nenhum livro é possivel escrever que
os desimpenhe como elles merecem.
'Poeta em annos de prosa' é um d'esses.
Eu não leio nenhuma das raras coisas que hoje
se escrevem verdadeiramente bellas, isto é,
simples, verdadeiras, e por consequencia sublimes,
que não exclame com sincero pesadume
ca de dentro: 'Poeta em annos de prosa!'
Pois este é seculo para poetas? ou temos
nós poetas para este seculo?..
Temos sim, eu conheço tres: Bonaparte,
Silvio-Péllico
e o barão de Rotchild.
O primeiro fez a sua Iliada com a espada, o
segundo com a paciencia, o último com o dinheiro.
[84]
São os tres agentes, as tres entidades, as tres
divindades da epocha.
Ou cortar com Bonaparte, ou comprar com
Rotchild, ou soffrer e ter paciencia com Silvio-Péllico.
Todo o que fizer d'outra poesia―e d'outra
prosa tambem―é tolo...
Vieram-me éstas mui judiciosas reflexões a
proposito do capitulo antecedente d'esta minha
obra prima; e lancei-as aqui para instrucção e
edificação do leitor benevolo.
Acabei com ellas quando chegámos á ponte
da Asseca.
Esquecia-me dizer que d'aquelles tres grandes
poetas so um está traduzido em portuguez―o
Rotchild: não é litteral a
traducção, agallegou-se
e ficou muito suja de erros de imprensa mas
como não ha outra...
Ora d'onde veio este nome da Asseca? Algures
aqui perto deve de haver sitio, logar ou coisa
[85]que o valha, com o
nome de Meca; e d'ahi talvez
o admiravel rifão portuguez que ainda não
foi bem examinado como devia ser, e que decerto
incerra algum grande dictame de moral primitiva:
'andou por Secca (Asseca?) e Meca e
olivaes de Santarem.'―Os taes olivaes ficam logo
adiante. É uma ethymologia como qualquer
outra.
A ponte da Asseca corta uma varzea immensa
que hade ser um vasto pahul de hynverno:
ainda agora está a desangrar-se em agua por
toda a parte.
É notavel na historia moderna este sítio. Aqui
n'um recontro com os nossos, foi Junot gravemente
ferido, ferido na cara.
'Il ne sera plus
beau garçon' disse o parlamentario francez
que
veio, depois da acção, tractar, creio eu, de
troca
de prisioneiros ou de coisa similhante. Mas
inganou-se o parlamentario; Junot ainda ficou
muito guapo e gentil homem depois d'isso.
Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o
Maneta,
[1]
as duas primeiras notabilidades que ouvi
[86]
aclamar como taes e cujos nomes conhecí... Ingano-me:
conheci primeiro o nome de Bonaparte.
E lembra-me muito bem que nunca me persuadi
que elle fossa o monstro disforme e horroroso
que nos pintavam frades e velhas n'aquelle
tempo. Imaginei sempre que, para excitar tantos
odios e malquerenças, era necessario que fosse
um bem grande homem.
Desde pequeno que fui jacobino; ja se ve: e de
pequeno me custou caro. Levei bons puchões de
orelhas de meu pae por comprar na feira de San'Lazaro,
no Porto, em vez das gaitinhas ou dos
registos de sanctos, ou das outras bogigangas que
os mais rapazes compravam... não imaginam o
quê... um retrato de Bonaparte.
Foi 'inguiço'―diria uma senhora do meu conhecimento
que accredita n'elles: foi inguiço que aínda
se não desfez e que toda a vida me tem perseguido.
Quem me diria quando, por esse primeiro
peccado politico da minha infancia, por esse primeiro
tractamento duro, e―perdoe-me a respeitada
memoria de meu sancto pae!―injustissimo,
que me trouxe o mero instincto das ideas
[87]
liberaes, quem me diria que eu havia de ser perseguido
por ellas toda a vida! que apenas sahido
da puberdade havia de ir a essa mesma França,
á patria d'esses homens e d'essas ideas com
quem a minha natureza sympathysava sem saber
porquê, buscar asylo e guarida?
Não vi ja quasi nenhum d'aquelles que tanto
desejára conhecer; as ruinas do grande imperio
estavam dispersas; os seus generaes mortos, desterrados,
ou trajavam interesseiros e covardes as
librés do vencedor...
De todas as grandes figuras d'essa epocha, a
que melhor conheci e tractei foi uma senhora,
typo de graça, de amabilidade e de talento. Pouco
foi o nosso tracto, mas quanto bastou para me
incantar, para me formar no espirito um modêllo
de valor e merecimento feminino que me
veio a fazer muito mal.
Custa depois a encher aquella altura que se
marcou...
Eis aqui como eu fiz esse conhecimento.
[88]
Inda o estou vendo, coitado! o pobre C. do
S., nobre, espirituoso, cavalheiro, fazendo-se
perdoar todos os seus prejuizos de casta, que tinha
como ninguem, por aquella polidez superior
e affabilidade elegante que distingue o verdadeiro
fidalgo (stylo antigo); inda o estou vendo, ja
sexagenario, ja mais que 'ci-devant jeun'homme',
o pescoço intallado na inflexivel gravata, os pés
pegando-se-lhe, como os de Ovidio, ao limiar
da porta―não que lh'os prendessem saudades,
senão que lh'os paralysava a cakexia incipiente―mas
o espirito joven a reagir e a teimar.
―'Vamos!' disse elle 'hoje estou bom,
sinto-me
outro: quero apresentá-lo a madame de
Abrantes. Está tam velha! Isto de mulheres não
são como nós, passam muito depressa.'
E o desgraçado tremiam-lhe as pernas, e suffocava-o
a tosse.
Tomámos uma 'citadine', e fomos comeffeito
á nova e elegante rua chamada não impropriamente
a rua de Londres, onde achámos rodeada
de todo o esplendor do seu occaso aquella
formosa estrella do imperio.
[89]
Não quero dizer que era uma belleza; longe
d'isso. Nem bella nem môça, nem airosa
de faser impressão era a duqueza d'Abrantes.
Mas em meia hora de conversação, de tracto,
descubriam-se-lhe tantas graças, tanto natural,
tanta amabilidade, um complexo tam verdadeiro
e perfeito da mulher franceza, a mulher mais
seductora do mundo, que involuntariamente se
dizia a gente no seu coração: 'Como se
está bem
aqui!'
Fallámos de Portugal, de Lisboa, do imperio―da
restauração, da revolução
de julho (isto era em
1831), de M. de Lafayette, de Luiz-Philippe, de
Chateaubriand―o seu grande amigo d'ella―
do
Sacré-Coeur e das suas
elegantes devotas―fallámos
artes, poesia, politica... e eu não
tinha
ânimo
para acabar de conversar...
Benevolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto
ainda é consciencia, um resto de consciencia:
acabemos com éstas digressões e perennaes
divagações minhas. Bem vejo que te deixei parado
á minha espera no meio da ponte d'Asseca.
Perdoa-me por quem es, dêmos d'espora ás mulinhas,
e vamos que são horas.
[90]
Ca estâmos n'um dos mais lindos e deliciosos
sitios da terra: o valle de Santarem, patria dos
rouxinoes e das madresilvas, cincta de faias
bellas e de loureiros viçosos. D'isto é que
não tem
París, nem França nem terra alguma do occidente
senão a nossa terra, e vale bem por tantas,
tantas coisas que nos faltam.
CAPITULO X.
Valle de Santarem―Namora-se o A. de
uma janella que
ve
por entre umas árvores.―Conjecturas várias a
respeito da
ditta janella.―Similhança do poeta com a mulher namorada,
e inquestionavel inferioridade do homem que não é
poeta.―Os rouxinoes. Reminiscencia de Bernardim Ribeiro
e das suas saudades.―De como o A. tinha quasi completo
o seu romance, menos um vestido branco e uns olhos
pretos.―Sahem verdes os olhos com grande
admiração e
pasmo seu.―Verificam-se as conjecturas sôbre a mysteriosa
janella.―A menina dos rouxinoes.―Censura das damas
muito para temer, crítica dos elegantes muito para
rir.―Começa
o primeiro episodio d'esta Odyssea.
O valle de Santarem é um d'estes logares
privilegiados pela natureza, sitios amenos e
deleitosos em que as plantas, o ar, a situação,
tudo está n'uma harmonia suavissima e perfeita:
[92]
não ha alli nada grandioso nem sublime,
mas ha uma como symetria de côres, de sons,
de disposição em tudo quanto se ve e se sente,
que não parece senão que a paz, a saude, o
socêgo
do espirito e o repouso do coração devem
viver alli, reinar alli um reinado de amor e benevolencia.
As paixões más, os pensamentos mesquinhos,
os pezares e as villezas da vida não podem
senão fugir para longe. Imagina-se por aqui
o Eden que o primeiro homem habitou com a
sua innocencia e com a virgindade do seu coração.
Á esquerda do valle, e abrigado do norte pela
montanha que alli se corta quasi a pique, está
um masisso de verdura do mais bello viço e
variedade. A faia, o freixo, o alamo enterlaçam
os ramos amigos; a madresilva, a musqueta
penduram de um a outro suas grinaldas e festões;
a congossa, os fettos, a malva-rosa do vallado
vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a belleza do quadro, ve-se
por entre um claro das árvores a janella meia
aberta de uma habitação antiga mas não
dilapidada―com
certo ar de confôrto grosseiro, e
[93]
carregada na côr pelo tempo e pelos vendavais
do sul a que está exposta. A janella é larga e
baixa; parece mais ornada e tambem mais antiga
que o resto do edificio que todavia mal se ve...
Interessou-me aquella janella.
Quem terá o bom gôsto e a fortuna de morar alli?
Parei e puz-me a namorar a janella.
Incantava-me, tinha-me alli como n'um feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e
um vulto por de traz... Imaginarão decerto! Se
o vulto fosse feminino!.. era completo o romance.
Como hade ser bello ver pôr o sol d'aquella
janella!..
E ouvir cantar os rouxinoes!..
E ver raiar uma alvorada de maio!..
Se haverá alli quem a aproveite, a deliciosa
janella?.. quem apprecie e saiba gosar todo o prazer
[94]
tranquillo, todos os sanctos gosos de alma
que parece que lhe andam esvoaçando em tôrno?
Se fôr homem é poeta; se é mulher
está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza,
o poeta e a mulher namorada: vêem, sentem,
pensam, fallam como a outra gente não ve, não
sente, não pensa nem falla.
Na maior paixão, no mais acrysolado affecto
do homem que não é poeta, entra sempre o seu
tanto da vil prosa humana: é liga sem que se não
lavra o mais fino de seu oiro. A mulher não; a
mulher apaixonada devéras sublima-se, idealiza-se
logo, toda ella é poesia; e não ha dor physica,
interêsse material, nem deleites sensuaes que
a façam descer ao positivo da existencia prosaica.
Estava eu n'estas meditações, começou
um
rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que
ha muito tempo me lembra de ouvir.
Era aope da ditta janella!
[95]
E respondeu-lhe logo outro do lado opposto;
e travou-se entre ambos um desafio tam regular,
em strophes alternadas tam bem medidas, tam
accentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro
do meu romance, esqueci-me de tudo o
mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim-Ribeiro,
o que se deixou cahir n'agua de cançado.
O arvoredo, a janella, os rouxinoes... áquella
hora, o fim da tarde... que faltava para completar
o romance?
Um vulto feminino que viesse sentar-se áquele
balcão―vestido de branco―oh! branco por
fôrça... a frente descahida sôbre a
mão
esquerda,
o braço direito pendente, os olhos alçados
ao ceo... De que côr os olhos? Não sei, que
importa! é amiudar muito demais a pintura,
que deve ser a grandes e largos traços para ser
romantica, vaporosa, desenhar-se no vago da
idealidade poetica...
―'Os olhos, os olhos...' disse eu pensando
ja alto, e todo no meu extasi, 'os olhos... pretos.'
[96] ―'Pois eram verdes!'
―'Verdes os olhos... d'ella, do vulto da
janella?'
―'Verdes como duas esmeraldas orientaes,
transparentes, brilhantes, sem preço.'
―'Quê! pois realmente?.. É gracejo isso,
ou realmente ha alli uma mulher, bonita, e?..'
―'Alli não ha ninguem―ninguem que se
nomeie hoje, mas houve... oh! houve um anjo,
um anjo, que deve de estar no ceo.'
―'Bem dizia eu que aquella janella...'
―'É a janella dos rouxinoes.'
―'Que lá estão a cantar.'
―'Estão, esses lá estão ainda como ha
dez annos―os
mesmos ou outros, mas a
menina dos
rouxinoes foi-se e não voltou.'
[97] ―'A menina dos rouxinoes! que historia é
essa? Pois devéras tem
uma
historia aquella janella?'
―'É um romance todo inteiro,
todo
feito como
dizem os francezes e conta-se em duas palavras.'
―'Vamos a elle. A menina dos rouxinoes,
menina com olhos verdes! Deve ser interessantissimo.
Vamos á historia ja.'
―'Pois vamos. Apeemo'-nos e descancemos
um bocado.'
Ja se ve que este dialogo passava entre mim
e outro dos nossos companheiros de viagem.
Apeámo'-nos comeffeito; sentamo'-nos; e eisaqui
a historia da
menina dos rouxinoes
como
ella se contou.
É o primeiro episodio da minha Odyssea: estou
com medo de entrar n'elle porque dizem as
damas e os elegantes da nossa terra que o portuguez
não é bom para isto, que em francez que
ha outro não-sei-quê...
[98]
Eu creio que as damas que estão mal informadas,
e sei que os elegantes que são uns tolos;
mas sempre tenho meu receio, porque emfim,
enfim, d'elles me rio eu, mas poesia ou romance,
musica ou drama de que as mulheres
não gostem, é porque não presta.
Ainda assim, bellas e amaveis leitoras, intendamo'nos:
o que eu vou contar não é um romance,
não tem aventuras inredadas, peripecias,
situações
e incidentes raros; é uma historia simples
e singella, sinceramente contada e sem pretenção.
Acabemos aqui o capitulo em fórma de prologo,
e a materia do meu conto para o seguinte.
CAPITULO XI.
Tracta-se do unico privilegio dos poetas que tambem os philosophos
quizeram tirar, mas não lhes foi concedido;
aos romancistas sim.―Exemplo de Aristoteles e Anacreonte.―O
A., tendo declarado no capitulo nono
d'esta obra que não era philosopho, agora confessa, quasi
solemnemente, que é poeta, e pretende manter-se, como tal,
em seu direito.―De como S. M. elrei de Dinamarca tinha
menos juizo do que Yorick, seu bobo.―Doutrina d'este.
Funda n'ella o A. o seu admiravel systema de physiologia
e pathologia transcendente do coração. Por uma
deducção
appertada e cerrada da mais constrangente logica vem a dar-se
no motivo porque foi concedido aos poetas o direito
indefinido de andarem sempre namorados.―Applicam-se
todas éstas grandes theorias á
posição actual do A. no momento
de entrar no episodio promettido no capitulo antecedente.―Modestia
e reserva delicada o obrigam a duvidar
da sua qualificação para o desimpenho: pede votos
ás amaveis leitoras. Decide-se que a
votação não seja nominal,
e porquê.―Dido e a mana Annica.―Entra-se emfim
na prometida historia.―De como a velha estava á porta a
dobar, e imbaraçando-se-lhe a meada, chamou por
Joaninha,
sua neta.
Este é o unico privilegio dos poetas: que
até morrer podem estar namorados. Tambem
não lhes conheço outro. A mais gente tem as
suas epochas na vida, fóra das quaes lhes não
é
[100]
permittido apaixonarem-se. Pretenderam accolher-se
ao mesmo beneficio os philosophos, mas
não lhes foi consentido pela rainha Opinião, que
é soberana absoluta e juiz supremo de que se não
appella nem aggrava ninguem.
Anacreonte cantou, de cabellos brancos, os
seus amores, e não se extranhou. Aristoteles mal
teria a barba russa quando foi d'aquelle seu último
namôro porque ainda hoje lhe apouquentam a fama.
Ora eu philosopho, seguramente não sou, ja o
disse; de poeta tenho o meu pouco, padeci, a
fallar a verdade, meus ataques assás agudos d'essa
molestia, e bem podéra desculpar-me com elles
de certas fragilidades de coração... Mas
não senhor,
não quero desculpar-me como quem tem
culpa senão defender-me como quem tem razão
e justiça por si.
Estou, com o meu amigo Yorick, o ajuizadissimo
bobo d'elrei de Dinamarca, o que alguns
annos depois ressuscitou em Sterne com tam
elegante penna, estou sim. 'Toda a minha vida'
diz elle 'tenho andado apaixonado ja por esta ja
por aquella princeza, e assim heide ir, espero,
[101]
até morrer, firmemente persuadido que se algum
dia fizer uma acção baixa, mesquinha, nunca
hade ser senão no intervallo de uma paixão
á outra:
n'esses interregnos sinto fechar-se-me o coração,
esfria-me o sentimento, não acho dez reis
que dar a um pobre... por isso fujo ás carreiras
de similhante estado; e mal me sinto acceso de
novo, sou todo generosidade e benevolencia outra
vez.'
Yorick tem rasão, tinha muito mais razão e juizo
que seu augusto amo, elrei de Dinamarca. Por
pouco mais que se generalize o principio, fica
indisputavel, inexcepcionavel para sempre e para
tudo. O coração humano é como o
estomago humano,
não pode estar vazio, preciza de alimento
sempre: são e generoso so as affeições
lh'o podem
dar; o odio, a inveja e toda a outra paixão má
é
estímulo que so irrita mas não sustenta. Se a
razão
e a moral nos mandam abster d'estas paixões,
se as chymeras philosophicas, ou outras, nos vedarem
aquellas, que alimento dareis ao coração,
que hade elle fazer? Gastar-se sôbre si mesmo,
consummir-se... Altera-se a vida, appressa-se a
dissolução moral da existencia, a saude d'alma
é
impossivel.
[102]
O que póde viver assim, vive para fazer mal
ou para não fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente,
seu filho se o tem, sua mãe se a conserva,
ou a mulher que prefere a todas, esse
homem é o tal, e Deus me livre d'elle.
Sôbretudo que não escreva: hade ser um massador
terrivel. Talvez seja este o motivo da indefinida
permissão que é dada aos poetas de andarem
namorados sempre.
O romancista gosa do mesmo fôro e tem as mesmas
obrigações. É como o privilegio de
desimbargador
que tiravam d'antes os fidalgos, quando ser desimbargador
valia alguma coisa... e tanta coisa!
Como heide eu então, eu que n'esta grave
Odyssea das minhas viagens tenho de inserir o
mais interessante e mysterioso episodio d'amor
que ainda foi contado ou cantado, como heide
eu fazê-lo, eu que ja não tenho que amar n'este
mundo senão uma saudade e uma esperança―um
filho no berço e uma mulher na cova?..
[103]
Será isto bastante? Dizei-o vós, ó
benevolas
leitoras, póde com isto so alimentar-se a vida
do coração?
―Póde sim.
―Não póde, não.
―Estão divididos os suffragios: peço
votação.
―Nominal?
―Não, não.
―Porquê?
―Porque ha muita coisa que a gente pensa,
e crê e diz assim a conversar, mas que não ousa
confessar publicamente, professar aberta e nomeadamente
no mundo...
Ah! sim... elle é isso? Bem as intendo, minhas
senhoras: reservemos sempre uma sahida
para os casos difficeis, para as circumstancias extraordinarias.
Não é assim?
Pois o mesmo farei eu.
[104]
E pôsto que hoje, faz hoje um mez, em tal
dia como hoje, dia para sempre assignalado na
minha vida, me apparecesse uma visão, uma visão
celeste que me surpreendeu a alma por um
modo novo e extranho, e do qual não podia dizer
decerto como a rainha Dido á mana Annica:
Reconheço o queimar da chamma antiga,
Agnosco veteris vestigia flammae;
pôsto que a visão passou e desappareceu... mas
deixou gravada n'alma a certeza de que... Pôsto
que seja assim tudo isto, a confidencia não
passará
d'aqui, minhas senhoras: tanto basta para
se saber que estou sufficientemente habilitado para
chronista da minha historia, e a minha historia
é ésta.
Era no anno de 1832, uma tarde de verão
como hoje calmosa, sêcca, mas o ceo puro e desabafado.
Á porta d'essa casa entre o arvoredo,
estaca sentada uma velhinha bem passante dos
settenta, mas que o não mostrava. Vestia uma
especie de tunica rosa que apertava na cintura
com um largo cinto de coiro preto, e que fazia
resahir a alvura da cara e das mãos longas, descarnadas,
mas não ossudas como usam de ser mãos
de velhas; toucava-se com um lenço da mais escrupulosa
[105]brancura, e
pôsto de um geito particular
a modo de toalha de freira; um mandil da
mesma brancura, que tinha no peito e que affectava,
não menos, a fórma de um escapulario de
monja, completava o extranho vestuario da velha.
Estava sentada n'uma cadeira baixa do mais
classico feitio: textualmente parecia a que serviu
de modêllo a Raphael para o seu bello quadro
da
Madonna della Sedia.
Como nota historica e illustração artistica,
seja-me
permittido juntar aqui em parenthesis que,
não ha muito, vi em casa de um sapateiro
remendão,
em Lisboa, no Bairro-alto, um cadeira
tal e qual; torneados pyramidaes, simples,
sem nobreza, mas elegantes.
Tornemos á velhinha.
Estava ella alli sentada na ditta cadeira, e
deante de si tinha uma dobadoira, que se movia
regularmente com o tirar do fio que lhe vinha
ter ás mãos a inrollar-se no ja crescido novello.
Era o unico signal de vida que havia em todo
esse quadro. Sem isso, velha, cadeira, dobadoira,
[106]tudo
pareceria uma
graciosa sculptura de Antonio
Ferreira ou um d'aquelles quadros tam verdadeiros
do morgado de Setubal.
O movimento bem visivel da dobadoira era
regular, e respondía ao movimento quasi imperceptivel
das mãos da velha. Era regular o movimento,
mas durava um minuto e parava, depois
ia seguido outros dous, tres minutos, tornava a
parar: e n'esta regularidade de intermitencias se
ia alternando como o pulso de um que treme sesões.
Mas o velha não tremia, antes se tinha muito
direita e aprumada: o parar do seu lavor era
porque o trabalho interior do espirito dobrava,
de vez em quando, de intensidade, e lhe suspendia
todo o movimento externo. Mas a
suspensão
era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoira
tornava a andar.
Os olhos da velha é que tinham uma expressão
singular: voltada para o poente, não os tirou
d'essa direcção nem os inclinava de modo
algum para a dobadoira que lhe ficava um pouco
mais á esquerda. Não pestanejavam, e o azul
[107]
de suas pupillas, que devia de ter sido brilhante
como o das saphyras, parecia desbotado e sem
lume.
O movimento da dobadoira estacou agora de
repente, a velha poisou tranquillamente as mãos
e o novello no regaço, e chamou para dentro da
casa:
―'Joanninha?'
Uma voz doce, pura, mas vibrante, d'estas
vozes que se ouvem rara vez, que retinem dentro
d'alma e que não esquecem nunca mais, respondeu
de dentro:
―'Senhora? Eu vou, minha avó, eu vou.'
―'Querida filha!.. Como ella me ouviu logo!
Deixa, deixa: vem quando podéres. É a meada
que se me imbaraçou.'
A velha era cega, cega de gotta-serena, e
paciente, resignada como a providencia misericordiosa
de Deus permitte quasi sempre que sejam
os que n'este mundo destinou á dura provança
de tam desconsolado martyrio.
CAPITULO XII.
De como Joanninha desimbaraçou a meada da avó, e
do mais
que aconteceu.―Que casta de rapariga era Joanninha.―Dá
o A. insigne próva de ingenuidade e boa fe confessando
um grave senão do seu Ideal. Insiste porém que
é um
adoravel deffeito.―Em que se parece uma mulher desannellada
com um Sansão tosquiado.―Pasmosas monstruosidades
da natureza que desmentem o credo velho dos peralvilhos.―Os
olhos verdes de Joanninha.―Religião dos olhos
pretos strenuamente professada pelo A. Perigo em que ella
se acha á vista de uns olhos verdes.―De como estando a
avó e a neta a conversar muito de mano a mano, chega Frei
Diniz e se interrompe a conversação.―Quem era
Frei
Diniz.
―'Aqui estou, minha avó: é a
sua meada?..
eu lh'a indireito:'―disse Joanninha sahindo
de dentro, e com os braços abertos para a velha.
Apertou-a n'elles com innefavel ternura, beijou-a
[110]
muitas vezes, e tomando-lhe o novello das mãos
n'um instante desimbaraçou o fio e lh'o tornou a
intregar.
A velha surria com aquelle surriso satisfeito
que exprime os tranquillos gosos de alma, e que
parecia dizer: 'Como eu sou feliz ainda, apezar
de velha e de cega! Bemdito sejais, meu Deus.'
Ésta última phrase, ésta
bençam de um coração
agradecido, que spira suavemente para o ceo
como sobe do altar o fummo do incenso consagrado,
ésta última phrase trasbordou-lhe e sahiu
articulada
dos labios:
―'Bemditto seja Deus' minha filha, minha
Joanninha, minha querida neta! E Elle te abençoe
tambem, filha!'
―'Sabe que mais, minha avó? Basta de trabalhar
hoje, são horas de merendar'.
―'Pois merendemos'.
Joannninha foi dentro da casa, trouxe uma banquinha
redonda, cubriu-a com uma toalha alvissima,
[111]pôs
em cima fructa, pão, queijo, vinho,
chegou-a para aopé da velha, tirou-lhe o novello
da mão, e arredou a dobadoira. A velha comeu
alguns bagos de um cacho doirado que a neta lhe
escolheu e pôs nas mãos, bebeu um trago de vinho,
e ficou callada e quieta, mas ja sem a mesma
expressão de felicidade e contentamento socegado
que ainda agora lhe luzia no rosto.
As animadas feições de Joanninha reflectiam
sympathicamente a mesma alteração.
Joanninha não era bella, talvez nem galante
siquer no sentido popular e expressivo que a palavra
tem em portuguez, mas era o typo da gentileza,
o ideal da spiritualidade. N'aquelle rosto,
n'aquelle corpo de dezeseis annos, havia por dom
natural e por uma admiravel symetria de
proporções
toda a elegancia nobre, todo o desimbaraço
modesto, toda a flexibilidade graciosa que a
arte, o uso e a conversação da côrte e
da mais
escolhida companhia vêem a dar a algumas raras
e privilegiadas creaturas no mundo.
Mas n'esta foi a natureza que fez tudo, ou
quasi tudo, e a educação nada ou quasi nada.
[112]
Poucas mulheres são muito mais baixas, e ella
parecia alta: tam delicada, tam
elancée era a
fórma airosa de seu corpo.
E não era o garbo teso e aprumado da perpendicular
miss ingleza que parece fundida de
uma so peça; não, mas flexivel e ondulante como
a hástea joven da árvore que é direita
mas
dobradiça, forte da vida de toda a seiva com que
nasceu, e tenra que a estalla qualquer vento
forte.
Era branca, mas não d'esse branco importuno
das loiras, nem do branco terso, duro, marmoreo
das ruivas―sim d'aquella modesta alvura
da cera que se illumina de um pallido reflexo de
rosa de Bengalla.
E d'outras rosas, d'estas rosas-rosas que denunciam
toda a franqueza de um sangue que passa
livre pelo coração e corre á sua
vontade por
artérias em que os nervos não dominam, d'essas
não as havia n'aquelle rosto: rosto sereno como
é sereno o mar em dia de calma, porque dorme
o vento... Alli dormiam as paixões.
[113]
Que se levante a mais ligeira brisa, basta o
seu macio bafejo para increspar a superficie espelhada
do mar.
Sussurre o mais ingenuo e suave movimento
d'alma no primeiro acordar das paixões, e verão
como se sobresaltam os musculos agora tam quietos
d'aquella face tranquilla.
O nariz ligeiramente aquilino: a bôcca pequena
e delgada não cortejava nem desdenhava o surriso,
mas a sua expressão natural e habitual era
uma gravidade singela que não tinha a menor aspereza
nem doutorice.
Ha umas certas boquinhas gravesinhas e espremidinhas
pela doutorice que são a mais abhorrecidinha
coisa e a mais pequinha que Deus permitte
fazer ás suas creaturas femeas.
Em perfeita harmonia de côr, de fórma e de
tom com a fina gentileza d'estas feições, os
cabellos
de um castanho tam escuro que tocava em
preto, cahiam de um lado e outro d
Em perfeita harmonia de côr, de fórma e de
tom com a fina gentileza d'estas feições, os
cabellos
de um castanho tam escuro que tocava em
preto, cahiam de um lado e outro da face, em
tres longos, deseguaes e mal inrolados canudos,
cuja ondada spiral se ia relaxando e diminuindo
[114]
para a extremidade, até lhe tocarem no collo quasi
lisos.
Em stylo de arte―no stylo da primeira e
da mais bella das bellas artes, a
toilete―este é
um defeito; bem sei.
Que votos, que novenas se não fazem a San'Barometro
nas vésperas de um baile para lhe pedir
uma atmosphera sêcca e benigna que deixe
conservar, até á quarta contradança ao
menos, a
preciosa obra de carrapito e ferro quente, de
macassar e mandolina que tanto trabalho e tanto
tempo, tantos sustos e cuidados custou!
Bem sei pois que é defeito, é, será...
mas
que adoravel defeito! Que deliciosas imagens que
excita de abandôno―passe o gallicismo―de
confiança, de absoluta e generosa renúncia a todo
o caprixo, de perfeita e completa abdicação
de toda a vontade propria!
Em geral, as mulheres parecem ter no cabello
a mesma fé que tinha Sansão: o que n'elle
se ia em lh'os cortando, cuidam ellas que se lhes
vai em lh'os desannellando? Talvez; e eu não estou
[115]longe de o crer: canudo
inflexivel, mulher
inflexivel.
Os peralvilhos negam a existencia do tal canudo
in rerum natura, dizem que
é como a
ave
phenix que nasceu de nossos avós não saberem
grego. Eu não digo tal, porque tenho visto descuidar-se
a natureza em pasmosas monstruosidades.
Emfim suspendâmos, sem o terminar, o exame
d'esta profunda e interessante questão. Fica
addiada para um capitulo
ad hoc, e
voltemos á
minha Joanninha.
Cahiam d'um lado e de outro da sua face gentil
aquelles graciosos anneis; e o resto do cabello,
que era muito, ia intrançar-se, e inrolar-se
com singela elegancia abaixo da coroa de uma
cabeça pequena, estreita e do mais perfeito
modêlo.
As sobrancelhas, quasi pretas tambem, desenhavam-se
n'uma curva de extrema pureza; a as
pestanas longas e assedadas faziam sombra na alvura
da face.
[116]
Os olhos porêm―singular capricho da naturesa,
que no meio de toda esta harmonia quiz
lançar uma nota de admiravel discordancia! Como
poderoso e ousado
maestro que, no
meio das
pbrases mais classicas e deduzidas da sua
composição,
atira derepente com um som agudo e
stridulo que ninguem espera e que parece lançar
a anarchia no meio do rythmo musical... os dillettantes
arripiam-se, os professores benzem-se;
mas aquelles cujos ouvidos lhes levam ao coração
a musica, e não á cabeça, esses
estremecem de
admiração e enthusiasmo... Os olhos de Joanninha
eram verdes... não d'aquelle verde descorado e
traidor da raça felina, não d'aquelle verde mau e
destingido que não é senão azul
imperfeito, não;
eram verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas
do mais subido quilate.
São os mais raros e os mais fascinantes olhos
que ha.
Eu, que professo a religião dos olhos pretos,
que n'ella nasci e n'ella espero morrer... que
alguma rara vez que me deixei inclinar para a
heretica pravidade do ôlho azul, soffri o que é
[117]
muito bem feito que soffra todo o renegado...
eu firme e inabalavel, hoje mais que nunca, nos
meus principios, sinceramente persuadido que
fóra d'elles não ha
salvação, eu confesso todavia
que uma vez, uma unica vez que vi dos
taes olhos verdes, fiquei halucinado, senti abalar-se
pelos fundamentos o meu catholicismo,
fugi escandalizado de mim mesmo, e fui retemperar
a minha fé vacillante na contemplação
das
eternas verdades, que so e unicamente se incontram
aonde está toda a fé e toda a
crença... n'uns
olhos sincera e lealmente pretos.
Joanninha porêm tinha os olhos verdes; e
o effeito d'esta rara feição n'aquella
physionomia
á primeira vista tam discordante―era
em verdade pasmosa. Primeiro fascinava,
halucinava, depois fazia uma sensação
inexplicavel
e indecisa que doía e dava prazer ao mesmo
tempo: porfim pouco o pouco, estabelecia-se
a corrente magnetica tam poderosa, tam carregada,
tam incapaz de solução-de-continuidade,
que toda a lembrança de outra coisa desapparecia,
e toda a intelligencia e toda a vontade
eram absorvidas.
[118]
Resta so accrescentar―e fica o retrato completo,
um simples vestido azul escuro, cinto e
avental preto, e uns sapatinhos com as fitas traçadas
em cothurno. O pé breve e estreito; o que
se adivinhava da perna admiravel.
Tal era a ideal e espiritualissima figura
que em pé, incostada á banca onde acabava de
comer a boa da velha, contemplava, n'aquelle
rosto macerado e apagado, a indicivel expressão
de tristeza que elle pouco a pouco ía tomando e
que toda se reflectia, como disse, no semblante
da contempladora.
A velha suspirou profundamente, e fazendo
como um esfôrço para se distrahir de pensamentos
que a affligiam, buscou incertamente com as
mãos o novêllo da sua meada:
―'O meu novêllo, filha: não posso estar
sem fazer nada, faz-me mal.'
―'Conversemos, avó.'
―'Pois conversemos; mas dá-me o meu novêllo.
Não sei o que é, mas quando não
trabalho [119]eu,
trabalha não sei o que em mim que me
cansa ainda mais. Bem dizem que a ociosidade é
o peior lavor.'
Joanninha deu-lhe o novêllo e pôs-lhe a dobadoira
a geito.
A velha sentiu o que quer que fosse na mão,
levou-a á bôcca e pareceu beija-la, depois disse:
―'Bem vi, Joanninha!'
―'O quê, minha avó? que viu?'
―'Vi, filha, vi.., sem ser com os olhos que
Deus me cerrou para sempre―louvado seja Elle
por tudo!―vi, sentindo, ésta lagryma tua que
me cahiu na mão, e que ja ca está no peito por
que a bebi, Joanna. Oh filha, ja! é muito cedo
para começar, deixa isso para mim que estou
costumada: mas tu, tu com deseseis annos e
nenhum desgôsto!'
―'Nenhum, avó! E estamos sosinhas nós
duas n'este mundo, minha avó n'esse estado, eu
n'esta edade, e...'
[120] ―'E Deus no ceu para tomar conta em nós...
Mas que é? olha, Joanna: eu sinto passos na
estrada vê o que é.'
―'Não vejo ninguem.'
―'Mas oiço eu... Espera... é Fr. Diniz;
conheço-lhe
os passos.'
Mal a velha acabava de pronunciar este nome,
surdiu, de traz de umas oliveiras que ficam na
volta da estrada, da banda de Santarem, a figura
sêcca, alta e um tanto curvada de um
religioso franciscano que abordoado em seu pau
tosco, arrastando as suas sandalias amarellas e
tremendo-lhe na cabeça o seu chapeo alvadio,
vinha em direcção para ellas.
Era Fr. Diniz comeffeito, o austero guardião
de San'Francisco de Santarem.
CAPITULO XIII.
Dos frades em geral.―O frade
moralmente considerado, socialmente
e artisticamente.―Próva-se que é muito mais
poetico
o frade do que o barão.―Outra vez D. Quixote e
Sancho-Pansa.―Do que seja o barão, sua
classificação e
descripção linneana.―Historia do castello do
Chucherumello.―Erro
palmar de Eugenio Sue: mostra-se que os jesuitas
não são a cholera-morbus, e que é
preciso refazer o
'Judeu errante'―De como o frade não intendeu
o nosso seculo
nem o nosso seculo ao frade.―De como o barão ficou
em logar do frade, e do muito que n'isso perdémos.―Unica
voz que se ouve no actual deserto da sociedade: os barões
a gritar contos de reis.―Como se contam e como se
pagam os taes contos.―Predilecção artistica do
A. pelo frade:
confessa-se e explica-se ésta
predilecção.
Frades... frades... Eu não gósto de frades. Como
nós os vimos ainda os d'este seculo, como
nós os intendêmos hoje, não
gósto d'elles, não
os quero para nada, moral e socialmente fallando.
Frades... frades... Eu não gósto de frades. Como
nós os vimos ainda os d'este seculo, como
nós os intendêmos hoje, não
gósto d'elles, não
os quero para nada, moral e socialmente fallando.
[122]
No ponto de vista artistico porêm o frade faz
muita falta.
Nas cidades, aquellas figuras graves e sérias
com os seus habitos tallares, quasi todos picturescos
e alguns elegantes, atravessando as multidões
de macacos e bonecas de casaquinha esguia
e chapelinho de alcatruz que distinguem a peralvilha
raça europea―cortavam a monotonia do
ridiculo e davam physionomia á
população.
Nos campos o effeito era ainda muito maior:
elles characterizavam a payzagem, poetisavam a
situação mais prosaica de monte ou de valle; e
tam necessarias tam obrigadas figuras eram em
muitos d'esses quadros, que sem ellas o painel
não é ja o mesmo.
Alêm d'isso o convento no povoado e o mosteiro
no êrmo animavam, amenizavam, davam alma
e grandeza a tudo: elles protegiam as árvores,
sanctificavam as fontes, enchiam a terra de
poesia e de solemnidade.
O que não sabem nem podem fazer os agiotas
barões que os substituiram.
[123]
É muito mais poetico o frade que o barão.
O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote
da sociedade velha.
O barão é, em quasi todos os pontos, o
Sancho-Pansa
da sociedade nova.
Menos na graça...
Porque o barão é o mais desgracioso e estupido
animal da creação.
Sem exceptuar a familia asinina que se illustra
com individualidades tam distinctas como o
Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da Poncella
de Orleans e outros.
O barão (
onagros-baronius
de Linn.,
l'ânne-baron
de Buf.) é uma variedade monstruosa ingendrada
na burra de Balaham, pela parte essencialmente
judaica e usuraria de sua natureza,
em coito damnado com o urso Martinho do Jardim
das Plantas
[2],
pela parte franchinotica e sordidamente
revolucionaria de seu character.
[124]
O barão é pois usurariamente revolucionario,
e revolucionariamente usurario.
Por isso é
zebrado de
riscas monarchico-democraticas
por todo o pêllo.
Este é o barão verdadeiro e puro-sangue: o
que não tem estes characteres é especie
differente,
de que aqui se não tracta.
Ora, sem sahir dos barões e tornando aos frades,
eu digo: que nem elles comprehenderam o
nosso seculo nem nós os comprehendémos a elles..
Por isso brigámos muito tempo, a final vencêmos
nós, e mandámos os barões a
expulsá-los
da terra. No que fizemos uma sandice como nunca
se fez outra. O barão mordeu no frade, devorou-o...
e escouceou-nos a nós depois.
Com que havemos nós agora de matar o barão?
Porque este mundo e a sua historia é a historia
do 'castello do Chucherumello'. Aqui está
o Porque este mundo e a sua historia é a historia
do 'castello do Chucherumello'. Aqui está
o cão que mordeu no gato, que matou o rato,
[125]
que roeu a corda etc. etc.: vai sempre assim
seguindo.
Mas o frade não nos comprehendeu a nós, por
isso morreu, e nós não comprehendemos o frade,
por isso fizemos os barões de que havemos de
morrer.
São a molestia d'este seculo; são
elles, não
os jesuitas, a cholera-morbus da sociedade actual,
os barões. O nosso amigo Eugenio Sue errou de
meio a meio no 'Judeu errante' que precisa refeito.
Ora o frade foi quem errou primeiro em nos
não comprehender, a nós, ao nosso seculo,
ás
nossas inspirações e
aspirações: com o que falsificou
a sua posição, isolou-se da vida social,
fez da sua morte uma necessidade, uma coisa
infallivel e sem remedio. Assustou-se com a liberdade
que era sua amiga, mas que o havia de
reformar, e uniu-se ao despotismo que o não
amava senão relaxado e vicioso, porque de outro
modo lhe não servia nem o servia.
Nós tambem errámos em não intender o
desculpavel
êrro do frade, em lhe não dar outra
[126]
direcção social; e evitar assim os
barões, que é
muito mais damninho bicho e mais roedor.
Porque, desinganem-se, o mundo sempre assim
foi e hade ser. Por mais bellas theorias que
se façam, por mais perfeitas
constituições com
que se comece, o
status in statu
forma-se logo: ou
com frades ou com barões ou com pedreiros livres
se vai pouco a pouco organizando uma influencia
distincta, quando não contraria, ás influencias
manifestas e apparentes do grande corpo
social. Esta é a opposição natural do
Progresso,
o qual tem a sua opposição como todas as
coisas sublunares e superlunares; ésta corrige
saudavelmente,
ás vezes, e modera sua velocidade,
outras, a impece com demazia e abuso: mas emfim
é uma necessidade.
Ora eu, que sou ministerial do Progresso,
antes queria a opposição dos frades que a dos
barões.
O caso estava em a saber
conter
e
approveitar.
O Progresso e a liberdade perdeu, não ganhou.
Quando me lembra tudo isto, quando vejo os
conventos em ruinas, os egressos a pedir esmola
[127]
e os barões de berlinda, tenho saudades dos
frades―não dos frades que foram, mas dos
frades que podiam ser.
E sei que me não inganam poesias; que eu
reajo fortemente com uma logica inflexivel contra
as illusões poeticas em se tractando de coisas
graves.
E sei que me não namóro de paradoxos, nem
sou d'estes espiritos de contradicção desinquieta
que suspiram sempre pelo que foi, e nunca
estão contentes com o que é.
Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal
na Irlanda, na Polonia, no Brazil, podia e
devia sê-lo entre nós; e nós ficavamos
muito melhor
do que estamos com meia duzia de clerigos de requiem
para nos dizer missa; e com duas grozas de
barões, não para a tal
opposição salutar, mas para
exercer toda a influencia moral e intellectual da
sociedade―porque não ha de outra ca.
E se não digam-me: onde estão as universidades,
e o que faz essa que ha senão dar o seu
grausito de bacharel em leis e em medicina? O
[128]
que escreve ella, o que discute, que príncipios
tem, que doutrinas professa, quem sabe ou ouve
d'ella senão algum echo timido e acanhado
do que n'outra parte se faz ou diz?
Onde estão as academias?
Que palavra poderosa retine nos pulpitos?
Onde está a fôrça da tribuna?
Que poeta canta tam alto que o oiçam as pedras
brutas e os robres duros d'esta selva materialista
a que os utilitarios nos reduziram?
Se exceptuarmos o debil clamor da imprensa
liberal ja
meio-esganada da policia, não se ouve
no vasto silencio d'este ermo senão a voz dos
barões gritando contos de réis.
Dez contos de réis por um eleitor!
Mais duzentos contos pelo tabaco!
Três mil contos para a conversão de um amphigouri!
[129]
Cinco mil contos para as estradas dos
areonautas!
Seis mil contos para isto, dez mil contos para
aquillo!
Não tardam o contar por centenas de milhares.
Contar a elles não lhes custa nada.
A quem custa é a quem paga para todos esses
balões de papel―a terra e a indústria...
Este capítulo deve ser considerado como
introducção
ao capítulo seguinte, em que entra em
scena Fr. Diniz, o guardião do San' Francisco de
Santarem.
Ja me disseram que eu tinha o genio frade,
que não podia fazer conto, drama, romance sem
lhe metter o meu fradinho.
O 'Camões' tem um frade, Frei José Indio;
[130]
A 'Dona Branca' tres, Frei Soeiro, Frei Lopo
e San'-Frei Gil―faz quatro;
A 'Adozinda' tem um ermitão, especie de
frade―cinco;
'Gil-Vicente' tem outro―isto é, verdadeiramente
não tem senão meio frade, que é
André
de Rezende, demais a mais, pessoa muda―cinco
e meio;
O 'Alfageme' tres quartos do frade, Froilão-Dias,
chibato da ordem de Malta―seis frades
e um quarto;
Em 'Frei Luiz de Sousa' tudo são frades:
vale bem n'esta computação, os seus tres, quatro,
meia duzia de frades―são já dôze e
quarto:
Alguns, não eu, querem metter n'esta conta
o 'Arco-de-Sanct'Anna', em que ha bem dous
frades e um leigo:
E aqui tenho eu ás costas nada menos de quinze
frades e quarto.
[131]
Com este Frei Diniz é um convento inteiro.
Pois, senhores, não sei que lhes faça: a culpa
não é minha. Desde mil cento e tantos que
começou
Portugal, até mil oitocentos trinta e tantos
que uns dizem que elle se restaurou, outros
que o levou a breca, não sei que se passasse ou
podesse passar n'esta terra coisa alguma pública
ou particular, em que frade não entrasse.
Para evitar isto não ha senão usar da receita
que vem formulada no capitulo V
[3]
d'esta obra.
Faça-o quem gostar; eu não, que não
quero
nem sei.
CAPITULO XIV.
Emendado emfim de suas distracções e
divagações, prosegue
o A. direitamente com a historia promettida.―De como
Fr. Diniz deu a manga a beijar á avó e
á neta, e do
mais que entre elles se passou.―Ralha o frade com a velha,
e começa a descobrir-se onde a historia vai ter.
Este capitulo não tem divagações, nem
reflexões,
nem considerações de nenhuma especie,
vai direito e sem se distrahir, pela sua historia
adeante.
[134]
Fr. Diniz chegava aopé das duas mulheres e
disse:
―'Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo!'
Joanna adeantou-se alguns
passos
a beijar-lhe
a manga. Elle accrescentou:
―'A benção de Deus te cubra, filha, e a
de nosso padre San'Francisco!'
―'Benedicite, padre guardião:' disse
a velha
inclinando-se meia levantada da cadeira.
―'Em nome do Senhor! amen'.―respondeu
o frade aproximando-se, e chegando o braço
a alcance de lh'o ella beijar:
―'Ora aqui estou, minha irman; que me
quer? E como vai isto por cá? Vamo-nos confortando,
tendo paciencia, e soffrendo com os
olhos no Senhor?'
―'Ja os não tenho senão para elle, padre.'
[135] ―'Ah, ah! irman Francisca, sempre esse
pensamento, sempre essa queixa! Tenho-a reprehendido
tanta vez e não se emenda.'
―'Eu não me queixei, meu padre. Deus
sabe que me não queixo... ao menos por mim.'
―'Pois por quem?'
―'Oh padre!'
―'Irman Francisca, tenho medo de a intender.
Eu não conheço as affeições
da carne nem
lido com os fracos pensamentos do mundo. Sou
frade, minha irman, sou um que ja não é do
número dos vivos, que vestiu ésta mortalha para
não ser d'elles, que a vestiu n'um tempo em
que a mofa e o desprêzo são o unico patrimonio
do frade, em que o escarneo, a derisão, o
insulto―o peior e o mais cruel de todos os
martyrios―são a nossa unica esperança. Eu
quiz ser frade, fiz-me frade, sabendo e vendo
tudo isto, fiz-me frade no meio de tudo isto,
já velho e experimentado no mundo, farto
de o conhecer, e certo do que me espera―a
[136]
mim e á profissão que abraçei. Que
quer de um
homem que assim se resolveu a cortar por
quanto prende a humanidade a ésta miseravel vida
da terra, para não viver senão das
esperanças
da outra? Eu vesti este hábito para isso. O
seu, irman, o seu para que o vestiu? É um divertimento,
é um capricho, é uma comedia com
Deus? Rasgue-o depressa, vista-se das galas do
mundo, não apperte com a paciencia divina, trajando
por fóra o sacco da penitencia e trazendo
o coração pordentro desappertado de todo o
cilicio
e mortificação.'
A velha com as mãos postas, a face alevantada
e os apagados olhos para o ceo, offerecia
a Deus todo o amargor d'aquella austeridade
que não cuidava merecer nem lhe parecia
intender. Joanninha, que insensivelmente
se fôra approximando da avó, e a tinha como
amparada portraz com um de seus braços,
firmava a outra mão nas costas da cadeira e cravava
fita no frade a vista penetrante e cheia de luz.
A expressão do seu rosto era indefinivel: irisava-lh'o,
distincta mas promiscuamente, um
mixto inextricavel de enthusiasmo e desanimação,
de fé e de incredulidade, de sympathia e de
aversão.
[137]
Disseras que n'aquelles olhos verdes e n'aquelle
rosto mal córado estava o typo e o symbolo
das vascillações do seculo.
―'Padre!' tornou a velha com sincera humildade
na voz e no gesto:―'se o mereci,
castigae-me. Deus, que me vê e me ouve, bem
sabe que o digo em toda a verdade do meu coração,
e hade perdoar-me porque eu sou fraca
e mulher.'
―'Pois aos fracos não é que Elle disse:
Toma
a tua cruz e segue-me. Quem a obrigou a
fazer os votos que fez?'
―'É verdade, padre, é verdade: bem sei o
que prometti, que me votei a Deus d'alma e corpo,
que me não pertenço, que nem das minhas
affeições posso dispor, mas...'
―'Mas o quê? Irman Francisca, a Deus
não se ingana. Os seus votos não foram feitos
n'um mosteiro, nem proferidos n'um altar no
meio das solemnidades da egreja. Mas ja lh'o tenho
ditto, no fôro da consciencia, na presença de
Deus, ligam-n'a tanto ou mais do que se o fossem.
[138]
Abjure-os se quizer; nenhuma lei, nenhuma
fôrça humana a constrange. Diga-m'o por uma
vez, desingane-me, e eu não torno aqui.'
―'Oh, por compaixão, padre! pelas chagas
de Christo! Mas uma pergunta so, uma so, e
eu prometto não pensar, não fallar mais em...
Onde está elle?'
―'Joanna, retire-se.'
Joanninha appertou a avó com ambos os braços;
e sem dizer uma palavra, sem fazer um so
gesto, lentamente e silenciosamente se retirou
para dentro de casa.
―'E ésta, padre?' disse a velha sem esperar
a resposta á primeira pergunta que com
tanta ancia fizera―'e ésta, tambem d'ella me
heide separar, tambem heide renunciar a ella?'
―'Esta é uma innocente, e emquanto o for'...
―'Em quanto o for! A minha Joanna é
um anjo.'
[139] ―'Blasphemia, blasphemia! E o Senhor a
não castigue por ella. Joanna é boa e temente
a Deus: esperemos que Elle a conserve da sua
mão. O outro...'
―'Que é feito d'elle padre? Oh!
diga-m'o,
e eu prometto...'
―'Não prometta senão o que póde
cumprir.
Seu neto está com esses desgraçados que vieram
das ilhas, é dos que desimbarcaram no Porto...'
―'Oh filho da minha alma! que não tórno
a abraçar-te...'
―'Não decerto; vencedores ou vencidos, toda
a communhão, toda a possibilidade de união
acabou entre nós e estes homens. Nós temos
obrigação de os destruir, elles o seu unico
desejo
é exterminar-nos.'
―'Meu Deus meu Deus! pois a isto somos
chegados! Pois ja não ha misericordia no ceo
nem na terra!'
―'A misericordia de Deus cansou-se; a da
[140]
terra não sei onde está nem onde esteve nunca.
Os fracos dão sacrilegamente esse nome á sua
relaxação.'
―'Pois é relaxação desejar a paz,
querer a
união, supplicar a indulgencia? Não nos manda
Deus perdoar as nossas dividas, amar os nossos
inimigos?'
―'Os nossos sim, os d'Elle não.'
―'Tende compaixão de mim, Senhor!'
―'Se as suas afflicções são as da
carne e do
sangue, se são pensamentos da terra como
desgraçadamente
vejo que são, mulher fraca e de
pouco ânimo, console-se, que para mim é claro
e seguro que estes homens hãode vencer.'
―'Quaes homens?'
―'Esses inimigos do altar e da verdade, esses
homens desvairados pelas speciosas doutrinas
do seculo. Esperam muito, promettem muito,
estão em todo o vigor das suas illusões. E
nós,
nós carregâmos com o desingano de muitos seculos,
[141]com os peccados de
trinta gerações que
passaram, e com a inaudita corrupção da
presente...
nós havemos de succumbir. Os templos
hãode ser destruidos, os seus ministros proscriptos,
o nome de Deus blasphemado á vontade
n'esta terra malditta.'
―'Pois tam perdidos, tam abandonados da
mão de Deus são elles todos... todos?'
―'Todos. E que cuida, irman? que são melhores
os nossos, esses que se dizem nossos? que
ha mais fé na sua crença, mais verdade em sua
religião? Oh sancto Deus!'
―'Faz-me tremer, padre!'
―'E para tremer é. A impiedade e a cubiça
entraram em todos os corações.
Duvidar é o unico
princípio,
inriquecer o
unico objecto de toda
essa gente. Liberaes e realistas, nenhum tem fé:
os liberaes ainda teem esperança; não lhe hade
durar muito. Deixem-n'os vencer e verão.'
―'E hãode vencer elles?'
[142] ―'Decerto.'
―'Ninguem mais diz isso.'
―'Digo-o eu.'
―'Tantos mil soldados que o govêrno tem
por si!'
―'E tantos milhões de peccados contra. Não
póde ser, não póde ser: a misericordia
divina
está exhausta, e o dia desejado dos impios vem
a chegar. A sua missão é facil e prompta;
não
sabem, não podem senão destruir. Edificar
não
é para elles, não teem com quê,
não creem em
nada. O symbolo christão não é so uma
verdade
religiosa é um princípio
eterno e universal.
Fe,
esperança e charidade. Sem crer, sem
esperar...'
―'E sem amar!'
―'Mulher, mulher! o amor é a última virtude...'
―'Mas por ella, por ella se chega ás outras.'
―'Não, mulher fraca, não. E de uma vez
[143]
para sempre, irman Francisca, desinganemo'-nos.
Entre mim, entre o Deus que eu sirvo, não ha
transacção com os seus inimigos. Indulgencia
n'esse ponto não sei o que é. Vejo a sorte que
me espera n'este mundo, e não tremo deante d'ella.
Quem teme, siga outro caminho; eu nunca.'
―'Padre eu não temo nem receio por
mim.
Sou fraca e mulher, e em toda a tribulação e
desgraça
heide glorificar o meu Deus e dar testimunho
da minha fé. Mas... mas o meu neto é o
meu sangue, a minha vida, é o filho querido da
minha unica e tam amada filha, elle não conheceu
outra mãe senão a mim, quero-lhe por elle
e por ella. Abandoná-lo não posso, tirar d'elle o
pensamento não sei. A vontade de Deus...'
―'A vontade de Deus é que o justo se aparte
do impio, é que os cordeiros da benção
vão
para um lado, e os cabritos da maldicção para
outro.
Esse rapaz... oh! minha irman, eu não sou
de pedra, não, não sou, e tambem o
coração se
me parte de o dizer... mas esse rapaz é malditto,
e entre nós e elle está o abysmo todo do
inferno.'
―'Misericordia, meu Deus!'
[144]
Pallido, infiado, mais descorado e mais amarello
do que era sempre aquelle rosto, Fr. Diniz
pronunciou, tremendo mas com fôrça, as
suas últimas e terriveis palavras. Os olhos, habitualmente
sumidos e cavos, recuaram-lhe ainda
mais para dentro das orbitas descarnadas; o bordão
tremia-lhe na esquerda; e a direita suspensa
no ar parecia intimar ao culpado a terrivel
imprecação
que lhe sahia dos labios.
―'Malditto! malditto sejas tu!' proseguiu o
frade, 'filho ingrato, coração derrancado e
perverso!'
―'Meu Deus, não o escuteis!' bradou a velha
cahindo de joelhos no chão e prostrando-se
na terra dura 'Meu Deus, não confirmeis
aquellas
palavras tremendas. Não o ouçais, Senhor, e
valha o sangue precioso de vosso filho, as dores
bemdittas de sua mãe, oh meu Deus! para arredar
da cabeça do meu pobre filho as crueis palavras
d'este homem sem piedade, sem amor!..'
A velha queria dizer mais; as angústias que
se tinham estado juntando n'aquella alma, que
porfim não podia mais e transbordava, queriam
[145]
sahir todas, queriam derramar-se alli em lagrymas
e soluços na presença do seu Deus que ella
via sempre no throno das misericordias, que
não podia acabar comsigo que o visse o inflexivel,
o terrivel Deus das vinganças que lhe annunciava
o frade. Mas a carne não pôde com o espirito,
as fôrças do corpo cederam: tomou-a um
mortal deliquio, immudeceu, e... suspendeu-se-lhe
a vida.
Fr. Diniz contemplou-a alguns momentos n'esse
estado e pareceu commover-se; mas aquelles
nervos eram fios de ferro temperado que não
vibravam a nenhuma suave percussão: deu dous
passos para a porta da casa, bateu com o bordão
e disse com voz firme e segura:
―'Joanna, acuda a sua avó que não
está
boa.'
D'ahi tomou por onde viera, e, sem voltar
uma vez a cabeça, caminhou ápressado; breve se
escondeu para lá das oliveiras da estrada.
CAPITULO XV.
Retratto de um frade franciscano que
não foi para o
depósito
da Terra-sancta, nem consta que esteja na Academia das
Bellas-artes.―Ve-se que a logica de Fr. Diniz se não
parecia
nada com a de Condillac.―Suas opiniões sôbre o
liberalismo e os liberaes.―Que o podêr vem de Deus,
mas como e paraquê.―Que os liberaes não intendem
o
que é liberdade e egualdade; e o para que eram os frades,
se fossem.―Próva-se, pelo texto, que o homem não
vive so de pão, e pergunta-se o de que vivia
então Fr. Diniz.
Quem era Frei Diniz?
Disse-o elle:―um homem que se fizera frade,
ja velho e cançado do mundo, que vestíra o
hábito n'um tempo em que a mofa, o escarneo e
[148]
o desprêzo seguiam aquella profissão; que o
sabía,
que o conhecia e que por isso mesmo o affrontára.
D'estes raros e fortes characteres apparecem
sempre na agonia das grandes instituições para
que nenhuma pereça sem protesto, paraque de
nenhum pensamento duravel e consagrado pelo
tempo se possa dizer que lhe faltou quem o honrasse
na hora derradeira por uma devoção nobre,
gloriosa e digna do alto espirito do homem:―que
o homem é uma grande e sublime creatura
por mais que digam philosophos.
Tal era Fr. Diniz, homem de principios austeros,
de crenças rigidas, e de uma logica inflexivel
e teimosa: logica porêm que regeitava toda
a anályse, e que forte nas grandes verdades
intellectuaes e moraes em que fixára o seu espirito,
descia d'ellas com o tremendo pêso de
uma synthese asperrima e oppressora que esmagava
todo o argumento, destruía todo o raciocinio
que se lhe punha de deante.
Condillac chamou á synthese methodo de trevas:
Fr. Diniz ria-se de Condillac... e eu parece-me
que tenho vontade de fazer o mesmo.
[149]
O despotismo, detestava-o como nenhum liberal
é capaz de o abhorrecer; mas as theorias
philosophicas dos liberaes, escarnecia-as como
absurdas, regeitava-as como perversoras de toda
a idea san, de todo o sentimento justo, de toda
a bondade praticavel. Para o homem em qualquer
estado, para a sociedade em qualquer fórma
não havia mais leis que as do decalogo,
nem se precisavam mais constituições que o
Evangelho:
dizia elle. Reforçá-las é superfluo,
melhorá-las
impossivel, desviar d'ellas monstruoso.
Desde o mais alto da perfeição evangelica, que
é o estado monastico, ha regras para todos alli;
e não falta senão observá-las.
Não sei se ésta doutrina não tem o
quer que
seja de um certo sabor independente e livre, se
não cheira o seu tanto á confiança
heretica dos
reformistas evangelicos. O que sei é que Fr.
Diniz a professava de boafé, que era catholico
sincero, e frade no coração.
Segundo os seus principios, podêr de homem
sôbre homem, era usurpação sempre e de
qualquer modo que fosse constituido. Todo o podêr
estava em Deus―que o delegava ao pae
[150]
sôbre o filho, d'ahi ao chefe da familia sôbre a
familia, d'ahi a um d'esses sôbre todo o Estado;
mas para o reger segundo o Evangelho e em toda
a austeridade republicana dos primitivos principios
christãos.
Assim fôra ungido Saul, e n'elle todos os reis
da terra―sem o quê, não eram reis.
Tudo o mais, anarchia, usurpação, tyrannia,
peccado―absurdo insustentavel e impossivel.
E sôbre isto tambem não disputava, que
não
concebia como: era dogma.
Nas applicações sim questionava, ou antes,
arguía, com sua logica de ferro. As antigas leis,
os antigos usos, os antigos homens, não os poupava
mais do que aos novos. A tyrannia dos reis,
a cubiça e a suberba dos grandes, a
corrupção
e a ignorancia dos sacerdotes, nunca houve tribuno
popular que as açoitasse mais sem dó nem
caridade.
O princípio porêm da
monarchia antiga, defendia-o,
ja se ve, por verdadeiro, embora fossem
[151]mentirosos e
hypocritas os que o invocavam.
Quanto ás doutrinas constitucionaes, não as
intendia, e protestava que os seus mais zelosos
apostolos as não intendiam tam pouco: não tinham
senso-commum, eram abstracções d'eschola.
Agora, do frade é que me eu queria rir... mas
não sei como.
O chamado liberalismo, esse intendia elle. 'Reduz-se'
dizia 'a duas cousas,
duvidar e
destruir
por principio,
adquirir e inriquecer
por fim: é
uma seita toda material em que a carne domina
e o espirito serve; tem muita fôrça para o mal;
bem verdadeiro, real e perduravel, não o póde
fazer. Curar com uma revolução liberal um paiz
estragado,
como são todos os da Europa, é sangrar
um tysico: a falta de sangue diminue as
ancias do pulmão por algum tempo, mas as
fôrças
vão-se, e a morte é mais certa.'
Dos grandes e eternos principios da Egualdade
e da Liberdade dizia: 'Em elles os practicando
devéras, os liberaes, faço-me eu liberal
[152]
tambem. Mas não ha perigo: se os não intendem!
Para intender a liberdade é preciso crer
em Deus, para acreditar na egualdade é preciso
ter o Evangelho no coração.'
As instituições monasticas eram, no seu intender
e no seu systema, condicção essencial de
existencia
para a sociedade civil―para uma sociedade
normal. Não paliava os abusos dos conventos,
não cubria os defeitos dos monges, accusava
mais severamente que ninguem a sua relaxação;
mas sustentava que, removido aquelle typo
da perfeição evangelica, toda a vida christan
ficava
sem norma, toda a harmonia se destruía,
e a sociedade ia, mais depressa e mais sem remedio,
precipitar-se no golpham do materialismo
estupido e brutal em que todos os vinculos
sociaes apodreciam e cahiam, e em que mais e
mais se isolava e estreitava o individualismo
egoista―última
phase da civilização exaggerada que
vai tocar no outro extrêmo da vida selvagem.
Taes eram os principios d'este homem extraordinario
que junctava a uma erudição immensa o
profundo conhecimento dos homens e do mundo
em que tinha vivido até a edade de cinquenta annos.
[153]
Como e porque deixára elle o mundo? Como
e porquê, um espirito tam activo e superior se
occupava apenas do obscuro incargo de guardião
do seu convento―cargo que acceitára por obediencia―e
quasi que limitava as suas relações
fóra do claustro áquella casa do valle onde
não
havia senão aquella velha e aquella criança?
Apezar de sua rigidez ascetica, prendia esse
espirito por alguma coisa a este mundo? Aquelle
coração macerado do cilicio dos pensamentos
austeros e terriveis do eterno futuro, consummido
na abstinencia de todo o gôso, detodo o desejo
no presente, teria acaso viva ainda bastante
alguma fibra que vibrasse com recordações,
com saudades, com remorsos do passado?
No seu convento elle não tinha senão uma cella
nua com um cruxifixo por todo adôrno, um
breviario por unico livro. N'aquella so familia
que conversava, havia, ja o disse, a velha cega
e decrepita, Joanninha com quem apenas fallava,
e um ausente, um rapaz de quem ha dous
annos quasi que se não sabia. Em intrigas politicas,
em negocios ecclesiasticos, em coisa mais
nenhuma d'este mundo não tinha parte. De que
[154]
vivia pois este homem―homem que certo não
era d'aquelles que vivem so de pão?
E este era dos poucos textos latinos que elle
repettia, este o thema predilecto dos raros sermões
que prégava:
Non in solo pane vivit
homo, Nem
so de pão vive o homem.
Vivia então de alguma outra coisa este homem;
e a meditação e a oração
não lhe bastavam, porque
elle sahia do seu convento e não ia prégar nem
rezar... todas as sextas feiras era certo na casa
do valle á mesma hora, do mesmo modo...
Alli estava pois alguma parto da vida do frade
que de todo se não desprendêra da terra, e
que, por mais que elle diga, lhe faltava
castrar
ainda por amor do ceo.
É que meio seculo de viver no mundo deixa
muita raiz que não morre assim. E talvez é uma
so a raiz, mas funda, e rija de fevra e de seiva,
que as folhas morrem, os ramos seccam, o
tronco apodrece, e ella teima a viver.
Saibamos alguma coisa d'essa vida.
CAPITULO XVI.
Saibâmos da vida do
frade.―Era franciscano
porquê?―Dos
antigos e dos novos martyres.―Alguns particulares de Fr.
Diniz antes e depois de ser
frade.―Emigração.―Explicação
incompleta.―De como a velha tinha perdido a vista e
Joanninha o riso.―Sexta feira dia aziago.
Saibamos alguma coisa da vida do frade, da sua
vida no seculo, porque a do claustro era nua e
nulla, monotona e singela como a temos visto.
[156]
Chamava-se elle no seculo Diniz de Atahide,
e seguira a carreira das armas primeiro, depois
a das lettras. Com distincção, e quasi com
paixão,
tomára parte na campanha da Peninsula
e a fizera quasi toda; mas desgostoso do serviço
ou despreoccupado da glória militar, entrou na
magistratura para que estava habilitado, e em
1825, do logar de corregedor do Ribatejo, em
que ja fôra reconduzido, devia passar á casa do
Porto.
Foi a Lisboa receber o seu despacho, beijou
a mão a elrei, e d'ahi tomou um dia o caminho
de Santarem, chegou áquella villa, deixou criados
e cavallos na estalagem, e foi tocar á campa
da portaria de San'Francisco.
Os criados esperaram em vão muitos dias:
elle não voltou.
Desappareceu do mundo Diniz de Atahide, e
d'alli a dous annos appareceu Fr. Diniz da Cruz,
o frade mais austero e o prégador mais eloquente
d'aquelle tempo. Raro prégava, e so de doutrina;
mas era uma torrente de vehemencia,
uma uncção, uma fôrça!..
[157]
Dos institutos monasticos, ja então bem decahidos
todos de esplendor e reputação, a ordem
de San'Francisco era talvez a que mais descêra
no conceito público. Quanto mais austera é a
regra,
tanto mais se nota qualquer relaxação nos
que a professam: a dos franciscanos tinha-se feito
proverbial e popular. Elles eram tantos por
toda a parte, e tam conversantes com todas as
classes; familiarizára-se por tal modo o povo
com o aspecto d'aquellas mortalhas negras―aspecto
ja não severo, e apenas deixou de o ser...
ridículo―e ellas appareciam em taes logares, a
taes horas, por tal modo... que todo o respeito,
toda a estima, toda a consideração se lhe
perdera.
Escriptores, ja os não tinham, prégadores
poucos e sem reputação, era em todo o sentido
a religião mais humilhada na geral decadencia
das ordens.
Fr. Diniz procurou-a por isso mesmo. Queria
ser frade, o frade desprezado e apupado do seculo
dezenove.
Em certos animos é preciso muito mais valor
e enthusiasmo para affrontar este martyrio, do
que fôra nos antigos tempos para ir ao incôntro
[158]
das nobres perseguições do sangue e do fogo.
Luctava-se com honra então, cahia-se com
glória, vencia-se muitas vezos morrendo...
Agora é soffrer so.
O mundo applaudia aquelles grandes sacrificios,
e assistia com interêsse, com
admiração,
com espanto áquelles combates gigantescos. E o
tyranno tremia diante da sua victima... quando
lhe não cahia aos pés vencido, convertido e
penitente...
Hoje o povo passa e ri, os reis cuidam de
outra coisa, e a mesma Egreja não sabe que
tem martyres.
'Pois tem-n'os' dizia Fr. Diniz 'e precisa
mais d'elles para se regenerar, do que ja precisou
para fundar-se.'
Eis aqui porque Diniz d'Atahide não quiz ser
bento, nem jeronymo, nem cartucho, e se foi
[159]
De todos os seus bens, que eram consideraveis,
tirou apenas a modica somma de dinheiro
que era necessaria para pagar o dote e piso de
sua entrada no convento. Do resto fez doação
inteira
a D. Francisca Joanna―a velha hoje cega e decrepita
que no princípio d'esta historia incontrámos
dobando á sua porta na casa do valle.
A velha não tinha mais familia que um neto
e uma neta.
A neta era Joanninha, filha unica de seu unico
filho varão, e ja orphan de pae e de mãe.
O neto, orpham tambem, nascêra posthumo,
e custára a vida a sua mãe, filha querida e
predilecta
da velha.
Antes da splendida doação de Fr. Diniz, a
familia, que era de boa e honrada descendencia,
podia dizer-se pobre; depois viviam remediadamente.
Mas a velha não quiz nunca sahir do modesto
estado em que atélli vivêra. Tinham fartura
de pão, azeite e vinho de suas lavras; corria-lhe
com ellas um criado velho de confiança;
[160]
trajavam e tractavam-se como gente mean, mas
independente.
Em tempos mais antigos e em vida dos dous
filhos de D. Francisca, Fr. Diniz, então Diniz
d'Atahide e corregedor da commarca, frequentára
bastante aquella casa. Desde a morte do
filho e do genro, que ambos pereceram desastradamente
n'um dia cruzando o Tejo n'um saveiro
em occasião de grande cheia, elle nunca
mais lá tornára.
Até que se metteu frade, e que passaram annos
e que o fizeram guardião do seu convento.
Ja a nora e a filha da velha tinham morrido
tambem.
E foi notavel que na mesma hora em que Fr.
Diniz professava em San'Francisco de
Santarem,
vestia D. Francisca aquella tunica roxa que nunca
mais largou.
Mas um dia, chegou Fr. Diniz á porta da casa
do valle e disse:
[161] ―'Deus seja n'esta casa!'
A velha estremeceu, mas tornou logo a si,
fez sahir as crianças que brincavam aopé d'ella,
fechou-se com o frade, e fallaram baixo um dia
inteiro. Rezaram e choraram, que tudo se ouviu;
mas o que disseram e conversaram nunca se
soube.
O frade foi-se ao anoitecer, a velha ficou rezando
e chorando, e rezou e chorou toda a noite.
Isto fôra n'uma sexta-feira; d'ahi por deante
em todas as sexta-feiras de cada semana, Fr.
Diniz vinha passar algumas horas com a velha.
Não era seu confessor, mas dirigia-a como se
o fosse, em tudo e por tudo, menos no que respeitava
a Joanninha.
Havia no frade uma affectação visivel, um systema
premeditado e inalteravel de se abster completamente
de tudo o que podesse intervir, por
mais remotamente que fosse, com aquella interessante
criança.
[162]
Joanninha não lhe tinha medo, mas o respeito
que lhe elle inspirava era misturado de uma
aversão instinctiva, que, por
contradicção inaudita
e inexplicavel, a deixava sympathizar com
tudo quanto elle dizia e professava: doutrinas,
opiniões, sentimentos, tudo lhe agradava no frade,
menos a pessoa.
Não assim Carlos, o primo, o companheiro, o
unico amigo da nossa Joanninha, o outro neto da
velha por sua filha. Andava elle ja no último anno
de Coimbra e ia formar-se em leis, quando Fr.
Diniz da Cruz começou de novo a frequentar
a casa que Diniz de Atahide tinha abandonado.
Sôbre esse a inspecção do frade era
minuciosa,
vigilante, inquieta. Os livros que elle lia, os
amigos com quem vivia, as ideas que abraçava,
as inclinações para que pendia―de tudo se
occupava
Fr. Diniz, tudo lhe dava cuidado. A elle
directamente pouco lhe dizia, mas com a avó tinha
longas conferencias a esse respeito.
Ultimamente parecia satisfazer-se com o geito
que o mancebo indicava tomar.
[163] ―'É temente a Deus, não tem o ânimo
cubiçoso
nem servil, não é hypocrita, o mania do
liberalismo
não o mordeu ainda... hade ser um homem
de prestimo:' dizia o frade a D. Francisca
com verdadeira satisfacção e interêsse.
Passára porêm de seu meio o
memoravel
anno
de 1830, e Carlos, que se formára no princípio
d'aquelle verão, tinha ficado por Coimbra e por
Lisboa, e so por fins d'agosto voltára para a sua
familia. E veio triste, melancholico, pensativo,
inteiramente outro do que sempre fôra, porque
era de genio alegre e naturalmente amigo de folgar,
o mancebo.
O dia em que elle chegou era uma sexta-feira,
dia de Fr. Diniz vir ao valle.
Passaram as primeiras saudações e
abraços,
ficaram sos os dous, e:
―'Não gósto de te ver:' disse o frade.
―'Pois quê? que tenho eu?'
―'Tens que vens outro do que foste, Carlos.'
[164] ―'Outro venho, é verdade; mas não se infadem
de me ver, que o infado hade durar pouco.'
―'Que queres tu dizer?'
―'Que estou resolvido a emigrar.'
―'A emigrar, tu!... Porquê, paraquê?
Que loucura é essa?'
―'Nunca estive tanto em meu juizo.'
―'Carlos, Carlos! nem mais uma palavra
a similhante respeito. Em que más companhias
andaste tu, que maus livros lêste, tu que eras
um rapaz?.. Carlos, prohibo-te de pensar n'esses
desvarios.'
―'Prohibe-me... a mim... de pensar!...
Ora, senhor...'
―'Prohibo de pensar, sim. Le no teu Horacio
se estás cançado das pandectas. Vai para
a eira com o teu Virgilio... ou passeia, caça,
monta a cavallo, faze o que quizeres, mas não
penses. Ca estou eu para pensar por ti.'
[165] ―'Porquê? eu heide ser sempre criança?
a minha vida hade ser ésta? Horacio! tenho
bom ânimo para ler Horacio agora... e a bella
occupação para um homem de vinteeum annos,
scandar jambos e trocheus.'
―'Pois le na tua biblia, que é poesia medida
n'alma e que repasce o espirito e o coração.'
―'Eu não quero ser frade: sabe?'
―'Nem te eu quero para frade.'
―'Graças a Deus! Cuidei que... Mas em fim
no seculo em que estamos...'
―'O seculo em que estamos é o da
presumpção
e o da immoralidade: e eu quero-te livrar
de uma e de outra, Carlos. Tua avó sabe as
minhas tenções a teu respeito, approva-as...'
―'Minha avó... approva muita coisa que eu
reprovo.'
―'Como assim, Carlos! que queres tu dizer?'
[166] ―'Isto mesmo, senhor;―e que ámanhan que
vou para Lisboa, imbarcar para Inglaterra.'
―'Carlos!'
―'É uma resolução meditada e
inalteravel.
Não quero nada com ésta terra nem com
ésta...'
―'Com ésta o quê, Carlos?..'
―'Pois quer ouvi-lo, digo-lh'o: com ésta
casa.'
O frade suffocava, e balbuciou entre cholerico
e aterrado:
―'Dir-me-has porquê?..'
―'Porque me abhorrece e me humilha este
mando de um extranho aqui... porque sempre
desconfiei, porque sei emfim...'
―'Sabes o quê?'
―'Sei, padre Fr. Diniz, mas não me pergunte
o que eu sei.'
[167]
Amarello, roxo, pallido, negro, o frade tremia;
sumiram-se-lhe mais os olhos e faiscavam
lá de dentro como duas brazas; fez um
esfôrço
sôbre si mesmo para fallar, e disse com uma
voz cava e cavernosa como de sepulchro:
―'Pois pergunto, sim; e permitta Deus!..'
―'Padre, não jure nem pragueje' interrompeu
Carlos com firmeza e serenidade 'as suas
intenções
serão boas talvez... creio que são boas,
filhas de um remorso salutar...'
―'Que dizes tu, Carlos... que disseste?.. Oh,
meu Deus!'
As scenas tinham mudado: Fr. Diniz parecia o
pupillo, a sua voz tinha o som da súpplica, ja
não tremia
de íra mas de anciedade; Carlos, pelo contrario,
fallava no tom austero e grave de um homem que
está forte na sua razão e que é
generoso com a
sua offensa. As palavras do mancebo eram agras,
via-se que elle o sentia e que procurava
adoçá-las
na inflexão, que lhes dava.
―'O que eu digo, padre Fr. Diniz, o que
[168]
eu sou obrigado a dizer-lhe é isto. Minha avó
consentiu, por fraqueza de mulher, no que eu
não posso nem devo consentir. O que ha n'ésta
casa não é... não é meu; o
pão que aqui se come...
é comprado por um preço... Padre! ja ve
que não podêmos fallar mais n'este assumpto. Eu
parto ámanhan para Lisboa.―Minha avó!'
acrescentou
Carlos, mudando de voz e chamando
para dentro 'minha avó!'
A velha acudiu, elle disse-lhe a sua tenção,
motivou-a em opiniões politicas, declamou contra
D. Miguel, mostrou-se enthusiasta da causa
liberal, e protestou que, n'aquelle anno, de tal
modo se tinha pronunciado em Coimbra e ainda
em Lisboa, que só uma prompta fuga o podia
salvar...'
A velha chorou, pediu, rogou... inutilmente,
em vão.
Fr. Diniz assistiu a tudo isto sem dizer palavra.
E aquella tarde voltou mais cedo para o convento.
[169]
No outro dia de manhan muito cedo, abraçado
com a avó e com a priminha que se
desfaziam em lagrymas, Carlos dizia o último
adeus áquella querida casa, áquelle amado
valle em que fôra criado... N'essa noite estava
em Lisboa, d'ahi a poucos dias em Inglaterra,
e d'ahi a alguns meses na ilha Terceira.
Na sexta-feira depois da partida de Carlos,
Fr. Diniz veio ao valle e teve larga conferencia
com a avó.
Os tres dias seguintes a velha levou fechada
no seu quarto a chorar... no fim do terceiro dia
estava cega.
Joanninha era uma criança a esse tempo, parecia
não intender nada do que se passava. Mas quem
a observasse com attenção, veria que ella dobrou
de carinho e de amor para com a avó, e que se
não tornou a rir para o frade...
Elle, o frade, invelheceu de dez annos n'aquelle
dia. Os olhos sumidos, que era a feição
dominante n'aquelle rosto ascetico, sumiram-se
mais e mais; a estatura alta e erecta curvou-se-lhe;
[170]o tremor nervoso,
que o tomava por accessos,
tornou-se-lhe habitual; os tendões enrijaram-lhe,
os musculos da cara descarnaram-se,
e a pelle ja sulcada de fundos cuidados, arrugou-se
e franziu-se toda em rugas cruzadas e confusas
como que se lh'a torrassem n'uma grelha.
Nunca mais houve um dia de alegria no valle.
A sexta-feira porêm era o dia fatal e aziago. Fr. Diniz
ja não vinha senão no fim da tarde e demorava-se
pouco; mas tanto bastava. Suspirava-se por
aquella hora e tremia-se d'ella. As notícias que
consolavam, e os terrores que matavam, o frade
é que os trazia. O resto da semana levava-se
a chorar e a esperar.
E assim se tinham passado dous annos até á
sexta-feira em que primeiro vimos junctas á porta
da casa aquellas tres criaturas; assim se passou
até d'ahi a oito dias que a nossa historia volta
a incontrá-los.
CAPITULO XVII.
De como, chegando outra sexta-feira e
estando a avó e a neta
á espera do frade, este lhe appareceu, contra o seu costume,
da banda de Lisboa.―Porque razão muitas vezes a
mais animada conversação é a que mais
facilmente pára e
quebra derepente.―Nova demonstração de dous
grandes axiomas
dos nossos velhos, a saber: Que o hábito não faz
o monge; e que ralhando as commadres, se descobrem as
verdades.―No ralhar da velha com o frade, levanta-se uma
ponta do veo que cobre os mysterios da nossa historia.
Passaram-se aquelles oito dias no valle, não
ja como se tinham passado tantas outras semanas
em vagas tristezas, em desconsolação e
desconfôrto, mas em positiva anciedade e aguda
[172]
afflicção pela certeza que trouxera o frade de se
achar Carlos no Porto fazendo parte do pequeno
exército do D. Pedro.
Incertos rumores, d'aquelles que percorrem
um paiz em tempos similhantes e que augmentam
e exaggeram, confundem todos os successos
tinham chegado até ás pacificas
solidões do
valle com as notícias de combates sanguinarios,
de commoções violentas, de desacatos sacrilegos,
de vinganças e reprezalias atrozes tomadas pelos
aggressores, retribuídas pelos que se defendiam.
Chegou a sexta-feira; e as horas d'esse dia,
sempre desejado e sempre temido, foram contadas
minuto a minuto―a qual mais longo, a
qual mais pezado e lento de volver, quanto mais
se approximava o derradeiro.
O sol declinava ja... e Fr. Diniz sem apparecer!
No seu poiso ordinario aopé da porta da casa,
Joanninha com os olhos extendidos, a velha com
os ouvidos álerta, devoravam o espaço na
direcção
de nascente, esperando a cada momento, temendo
[173]a cada instante
ver apparecer o conhecido
vulto, ouvir o som familiar dos passos do frade.
E tam intentas, tam absortas estavam ainda
n'este cuidado, que não deram fe d'um religioso
que pelo lado opposto, isto é, da banda de
Lisboa, para alli se incaminhava a passos arrastados
mas presurosos.
Chegou rente d'ellas sem o sentirem; e uma
voz conhecida, porêm mais cava e funda do que
nunca a ouviram, pronunciou a fórmula de
saudação
costumada:
―'Deus seja n'esta casa!'
―'Amen!' responderam ambas machinalmente,
com um estremeção involuntario; e voltando
derepente a cara para o lado d'onde vinha
a voz.
―'Jesus!' disse depois a velha tornando a
si, 'Padre Fr. Diniz, de d'onde vem tam tarde?'
―'Chego de Lisboa.'
[174] ―'De Lisboa? Deus lh'o pague!... Foi saber?..'
―'Fui, fui saber novas d'esta horrivel guerra,
d'esta tremenda visitação do Senhor á
condemnada
terra de Portugal...'
―'E então, diga'...
―'Boas novas, boas novas trago!'
―'Sente-se, padre, sente-se. Joanninha, chega
uma cadeira: descanse.'
―'Não é tempo de descansar este, mas
de vigiar e de orar.'
―'Pois que succedeu, padre? Não me tenha
n'esta horrivel suspensão. Diga: onde está
elle? Alguma desgraça grande lhe aconteceu,
oh meu Deus!..
―'E que me importa a mim o que aconteceu
ou podia acontecer a mais um de tantos
perdidos? Encherá a sua medida, irá
após dos
[175]
outros... caminha nas trevas com elles, e como
elles, so hade parar no abysmo.'
A éstas derradeiras palavras do frade asperamente
pronunciadas e em tom de indifferença e
desprêzo, seguiu-se aquelle silencio comprimido,
aquella pausa de toda a conversação grave e
íntima
em que os pensamentos são tantos que se
atropellam e não acham sahida na voz.
Fr. Diniz mentia... na dureza d'aquellas
expressões
mentia ao seu coração―não mentia ao
seu espirito. Como o caustico se applica á epiderme
para deslocar a inflammação interior, elle
roçava o peito com as asperidões de sua doutrina
e de seus principios rigidos para amortecer
dentro a viva dor d'alma que o consummia.
O frade estava por fóra, o homem por dentro.
O observador vulgar não via senão o burel
e a corda que amortalhavam e cadaver. O
que attentasse bem n'aquelles olhos, o que reparasse
bem nas inflexões d'aquella voz, diria:
'Frade, tu mentes; mentes sem saberes que
mentes: es sincero na tua fe, na tua austeridade,
[176]na tua
abnegação; mas o teu sacrificio
é como o de Abraham na montanha, e Deus
sabe que tu não tens fôrça para o
cumprir.'
Não o percebeu assim a pobre velha aquem
os rigores de Fr. Diniz faziam tremer, e que
para toda a affeição, para todo o sentimento
humano
julgava morto o coração do cenobita.
Ella que no silencio de suas noites sempre
veladas, na perpétua escuridão de seus dias
sempre
tristes luctava ha tanto tempo, luctava debalde
para desprender das affeições do mundo,
aquelle seu pobre coração que queria immollar
ao Senhor, ella via com sancta inveja e
admiração
as sobrehumanas fôrças que imaginava no
frade; e desanimada de o podêr seguir n'essas
alturas da perfeição evangelica, recahia, mais
desalentada
e mais miseravel que nunca, em toda
a sua fraqueza de mulher e de mãe.
Oh! não sabe o que é tormento, o que é
inferno
n'este mundo, o que não soffreu destas angústias!
Mas permitte Deus que as padeça quem não
[177]
tem grandes culpas, grandes e irreparaveis erros
que expiar n'este mundo?
Eu creio firmemente que não.
Cansada e exhausta ja de tam porfiada lucta, a velha
perdeu de todo a razão com as derradeiras palavras do
frade, e n'um paroxismo de chôro exclamou:
―'Diniz!.. Fr. Diniz, por aquelle pinhor
sagrado que eu tenho em meu podêr, por aquella
preciosa cruz sôbre a qual se derramaram as
últimas
lagrymas da minha desgraçada filha, Diniz!...'
―'Silencio!' bradou o frade, arrancando um
brado de dentro do peito que fez gemer os echos
todos do valle: 'Silencio, mulher! não conjure o
demonio que eu trago incarcerado n'este seio, que
á fôrça de penitencias mal pude domar
ainda...
que so a morte poderá talvez expellir. Mulher,
mulher! este cadaver que ja morreu que ja apodreceu
em tudo o mais, que ja o comem, sem o
elle sentir, os bichos todos da destruição...
este
[178]
cadaver tem um unico ponto vivo no coração...
e o dedo do teu egoismo ahi foi tocar, oh mulher!..
Peccado que estás sempre contra mim!
Justiça eterna de Deus quando serás satisfeita?'
Rompêra na maior violencia a voz do frade,
mas descahiu n'um tom baixo e medonho ao fazer
ésta última imprecação
mysteriosa. As derradeiras
syllabas quasi que lhe morreram nos beiços
convulsos, e ao balbuciá-las deixou-se cahir,
exhausto e como quem mais não podia, na cadeira
que Joanninha lhe chegára.
A velha aterrada e confusa tremia do que fizera,
como deante do espirito immundo que seus
maleficios evocaram, treme a maga assustada de
seu proprio podêr.
Passaram alguns segundos que nenhumas palavras
podem descrever.
O frade levantou o rosto, olhou para ella, olhou
para Joanninha... e, como quem emerge, por
grande esfôrço, de um pêso enorme
d'aguas que
o submergiam, sacudiu a cabeça, sorveu um longo
[179]trago de ar, e
disse na sua voz ordinario, so
mais debil:
―'Carlos, senhora... minha irman, Carlos
está vivo; e exaqui, vinda pelo consul de França,
uma carta d'elle.'
Tirou uma carta da manga e a intregou a Joanninha.
CAPITULO XVIII.
Descobre-se que ha grandes e espantosos
segredos entre o frade
e a velha.―Piedosa fraude de Joanninha.―Lucta entre
o hábito e o monge.
O frade intregou a carta a Joanninha, que, lançando
os olhos ao sobrescripto, ficou indecisa e
inquieta como quem receia e deseja e teme de
saber alguma coisa. Elle com voz trémula e sobresaltada
accrescentou:
[182] ―'Adeus, que são horas!.. Leiam, e sexta-feira
que vem... me dirão...'
―'Poisquê' disse timidamente a velha 'não
quer ouvir o que elle nos escreve?'
―'Sexta-feira que vem' continuou Fr. Diniz,
sem ouvir ou sem attender a pergunta 'sexta-feira
que vem eu tomarei conta da resposta,
e lh'a farei chegar pela mesma via... So uma
coisa! nem palavra a meu respeito: eu para Carlos...
morri.'
―'Diniz!' exclamou a velha fóra de si 'Diniz!..'
O frade tornou derepente ao seu tom austero,
e respondeu gravemente: 'O quê, minha irman?'
―'Era' disse ella timida e submissa outra
vez 'era se, era que... Pois não hade ouvir
ler a carta d'elle?'
Fr. Diniz não respondeu, mas ficou sentado:
descahiu-lhe a cabeça sôbre o peito, e
abraçando-se
com o bordão, não deu mais signal de si.
[183]
A velha escutou em silencio alguns segundos,
e com aquelle ouvido agudissimo―penetrante
vista dos cegos―percebeu sem dúvida o que se
passava, e com mais confôrto e serenidade na
voz disse:
―'Abre, Joanna, lê, minha filha.'
Joanninha abriu a carta, e percorreu com avidez
as poucas linhas que ella incerrava.
―'Não les?' acudiu a avó com impaciencia:
'Lê, lê alto, Joanna.'
―'É para mim so a carta' disse ella friamente.
―'Para ti so, como?' tornou a outra.
―'É para mim so ésta carta... não diz
nada
que...'
―'Não diz nada!' replicou a avó 'Pois!...
Lê, lê alto; seja como for, lê, e
oiçamos.'
Joanninha parecia hesitar ainda; lançou os
[184]
olhos ao frade, achou-o na mesma attitude impassivel;
voltou-se para a avó, viu-a anciada e anxiosa...
leu.
A carta era com effeito para ella so, e carta
bem singela, não continha senão as ingenuas
expressões
de um amor fraterno nunca esquecido,
longas saudades do passado, poucas esperanças no
futuro, quasi nenhumas de se tornarem a ver tam
cedo. Tudo isto porém era com a prima: para
a desconsolada avó, para ninguem mais... nem
uma palavra.
Joanninha ia lendo, lendo... e a voz a descahir-lhe:
no fim ajunctou uns abraços, umas saudosas
lembranças, e não sei que phrase incompleta
e mal articulada em que se pedia a bençam
da avó.
A velha abanou a cabeça tristemente e disse:
'Ora pois... bemditto seja Deus!'
Joanninha córou até o branco dos olhos... Inda
bem que a não podia ver a avó! Mas viu-a
Fr. Diniz, e com a mão trémula e os olhos
arrazados
d'agua lhe fez um mudo e expressivo
[185]
signal de approvação e agradecimento. Joanninha
córou outra vez, e logo se fez pallida como
a morte: era a primeira vez que mentia... e Fr.
Diniz, o austéro Fr. Diniz apprová-la!
O frade levantou-se, e sem dizer palavra, tomou
o caminho de Santarem.
Ouvia-se ao longe o arquejar de uns soluços
suffocados... Seriam d'elle?
A avó e a neta abraçaram-se e choraram.
Nenhuma d'ellas disse palavra sôbre a carta:
a velha tinha percebido a piedosa fraude de Joanninha...
Oh! que existencias que eram aquellas quatro!
Esse frade, essa velha e essas duas crianças! E
a maior parte da gente que é
gente, vive assim...
E querem, querem-n'a assim mesmo, a vida,
teem-lhe appêgo! Oh que enigma é o homem!
Tornou a passar outra semana, e o frade tornou
a vir no praso costumado, e levou a resposta
da
Tornou a passar outra semana, e o frade tornou
a vir no praso costumado, e levou a resposta
da carta―resposta que Joanninha so escreveu
[186]e so viu―e
dirigiu-a em Lisboa pela via
segura que indicára.
Soube-se que fôra intregue; mas semanas e
semanas decorreram, os meses passaram de anno...
e outra carta não veio.
No entretanto a guerra civil progredia; e depois
de suas tremendas peripecias, o grande drama
da Restauração chegava rapidamente ao fim.
Eram meiados do anno de 33, a operação do
Algarve succedêra milagrosamente aos constitucionaes,
a esquadra de D. Miguel fôra tomada,
Lisboa estava em podêr d'elles. Os tardios
e inuteis esforços dos realistas para retomar
a capital tinham occupado o resto do verão. Ja
outubro se descoroava de seus ultimos fructos, e
as folhas começavam a impallidecer e a cahir,
quando uma sexta-feira, ao pôr do sol, Fr. Diniz
apparecia no valle mais curvado e mais trémulo
que nunca. Vinha do exército realista que
então cercava Lisboa.
Joanninha não era alli, a velha estava so.
―'Que nos traz, padre?' clamou ella mal
[187]
que o sentiu: 'Soube d'elle? Tem escapado a
éstas desgraças, a esses combates mortaes?'
―'Não sei nada, minha irman: ha tres dias
que de Lisboa se não póde obter a menor
informação.
As linhas estão fechadas e guarnecidas como
nunca: tudo indíca havermos de ter cedo algum
combate decisivo.'
―'Deus seja com!..'
―'Com quem, minha irman?'
―'Com quem tiver justiça.'
―'Nenhum a tem. De um lado e de outro
está a ambição e a cubiça,
de um lado e de outro
a immoralidade, a perdição e o desprêzo
da
palavra de Deus. Por isso, vença quem vencer,
nenhum hade triumphar.'
―'Ai, o meu pobre filho, o meu Carlos!'
―'Isso, irman Francisca, isso! Peça a Deus
que dê a victoria a seu neto, e á impiedade por
que elle combate. Peça a Deus que vençam os
[188]
inimigos declarados do seu nome, os destruidores
de seus altares, os profanadores de seus templos...
Oh! que dia bello e grande não hade ser
esse, quando Carlos... o seu Carlos, vier expulsar,
ás baionetadas, do pobre convento de San'Francisco,
o velho guardião―que lhe não hade fugir,
minha irman!.. d'elle menos que de nenhum outro...
que ajoelhado deante do altar inclinará a
cabeça como os antigos martyres para cahir na
presença do seu Deus ás mãos do
seu...'
―'Diniz!.. Padre!.. Padre Frei Diniz, que
horrorosas palavras sahem da sua bôcca!.. Meu
neto, o meu Carlos não é capaz... oh meu Deus!..'
―'Seu neto detesta-me... e tem... tem razão.'
―'Não sabe a verdade elle... Carlos está
inganado,
cuida... não sabe senão meia verdade:
e eu, eu heide―custe o que me custar―eu
heide...'
―'Hade o quê?'
―'Heide desinganá-lo, heide-lhe dizer a verdade
[189]toda. Heide
prostrar-me na sua presença,
heide humilhar-me deante do filho de minha
filha, heide arrastar na poeira de seus pés éstas
cans e éstas rugas... morrerei de vergonha e de
remorsos deante do meu filho, mas elle hade saber
a verdade.'
Sahiam com tal impeto e com tam desacostumada
energia éstas mysteriosas e tremendas palavras
da bôcca da velha, que Fr. Diniz não ousou
contê-la; ouviu até ao fim, deixou quebrar
o impeto da torrente, e erguendo então a sua voz
austera mas pousada, disse n'aquelle tom friamente
decisivo que tanto impõe aos animos apaixonados:
―'Se tal fizesse, mulher, a minha maldicção,
a maldicção eterna de Deus sôbre a sua
cabeça
para sempre!... Oh mulher, pois não lhe
basta que elle me abhorreça―não lhe basta que
seu neto lhe perdesse o amor... quer... quer tambem
que nos despreze?'
A velha gemeu profundamente, e, por um geito
de antiga reminiscencia, levou as mãos aos olhos
como se os tapasse para não ver. Então disse com
desconsoladas lagrymas na voz:
―'A vontade de Deus seja feita!'
CAPITULO XIX.
Guerra de postos avançados. Joanninha no bivac―De como
os rouxinoes do valle se disciplinaram a ponto de tocar a alvorada
e a retreta.―Quem era a 'menina dos rouxinoes,'
e porque lhe poseram este nome.―A sentinella perdida e
achada.
A velha disse aquellas últimas palavras com uma
expressão de dor tam resignada, mas tam desconsolada,
que o frade olhou para ella commovido,
e sentiu as lagrymas escurecerem-lhe
a vista.
[192]
N'este momento Joanninha, que passeiava a
alguma distancia da casa na direcção de Lisboa,
acudiu sobresaltada bradando:
―'Avó, avó!.. tanta gente que ahi vem!
soldados e povo... homens e mulheres... tanta
gente!'
Era a retirada de 11 de outubro.
―'Deus tenha compaixão de nós!' disse a
velha: 'O que será padre?'
―'O que hade ser!' respondeu Fr. Diniz:
'o meu presentimento que se verifica; o combate
foi decisivo, os constitucionaes vencem.'
Comeffeito foram apparecendo as tropas que
se retiravam, as gentes que fugiam, e todo
aquelle confuso e doloroso espectaculo de uma retirada
em guerra civil...
Alguns feridos, que não podiam mais, ficaram na
casa do valle intregues á piedosa guarda e cuidado
de Joanninha; dos outros tomou conta Fr.
Diniz e os acompanhou a Santarem.
[193]
As tropas constitucionaes vinham em seguimento
dos realistas, e d'alli a poucos dias tinham o
seu quartel-general no Cartaxo; D. Miguel fortificava-se
em Santarem, e a casa da velha era
o último posto militar occupado pelo seu
exército.
Não tardou muito que a fôrça toda, todo
o interêsse da
guerra se não concentrasse n'aquelle, ja
tam pacífico e ameno, agora tam desolado e turbulento
valle.
Eram os derradeiros dias do outomno, a natureza
parecia tomar dó pelo homem―dar triste
e lugubre decoração de scena ao sanguento drama
de destruição e de miseria que alli se
ía
concluir. As últimas folhas das árvores cahiam,
o ceo nublado e negro vertia sôbre a terra apaulada
torrentes grossas d'agua, a cheia alagava os
baixos, e as terras altas cobriam-se de hervas maninhas,
os trabalhos da lavoira cessavam, o gado
e os pastores fugiam, e os soldados de um e
de outro campo cortavam as oliveiras seculares...
Tudo estava feio e torpe, tudo era ruina,
desolação
e morte emtôrno da casa do valle, agora
transformada em quartel e redutto militar.
[194]
E que era feito, no meio d'ésta desordem,
que era feito da nossa pobre velha, da nossa interessante
Joanninha?
Apenas se estabeleceu a posição dos dous
exercitos,
Fr. Diniz queria levá-las para Santarem;
mas não foi possivel. Instancias, rogos, ordem
positiva, tudo foi em vão. Pela primeira vez na
sua vida, aquella mulher tímida, fraca e irresoluta,
soube ter vontade firme e propria.
―'Aqui nasci,' dizia ella, 'aqui vivi, aqui
heide morrer. Que importa como?.. Aqui as
curtas alegrias, aqui as longas dores da minha
vida teem passado: onde heide eu ir que possa
viver ou morrer senão aqui? Ésta casa sei-a de
cór, éstas árvores conhecem-me, estes
sitios são
os ultimos que vi, os unicos de que me lembra:
como heide eu, velha e cega, ir fazer conhecimento
com outros para viver n'elles?..'
―'E Joanninha n'essa edade... no meio d'essa
soldadesca!' suggeria o frade.
―'Joanninha' tornava ella 'Joanninha é uma
criança, e tem mais juizo, mais energia d'alma,
[195]mais saude e mais
fôrça do que―mulheres
não fallemos―do que a maior parte dos
homens. Ficaremos aqui, padre, ficaremos aqui
melhor do que em Santarem podêmos estar. Deus
nos defenderá...'
Fr. Diniz cedeu: a mesma vaga e indeterminada
esperança que animava a velha, e que a prendia
tam fortemente alli, não era extranha ao
coração
do frade. Ella não ousava nem alludir de
longe a essa esperança, mas sentia-se que lá a
tinha anninhada e escondida a um canto d'alma...
Aquelle neto, aquelle filho da filha querida havia
de vir ter á casa em que nascêra... por alli
havia de passar, e mais dia menos dia... A velha,
repitto, nem alludia a tal esperança, mas
sentia-se que a tinha: percebeu-lh'a Fr. Diniz,
e ou a partilhasse tambem ou não se atrevesse a
contrariar razões que lhe não davam, cedeu e
callou-se.
O seu principal temor era a licenciosa soltura
dos costumes militares; mas estava Joanninha menos
exposta por se accolher a uma praça de guerra
como Santarem era agora?
[196]
Brevemente se viu que a avó tinha accertado.
A franca e ingenua dignidade de Joanninha, o ar
grave, a melancholia serena e bondosa da velha
impozeram tal respeito aos soldados, que―graças
tambem á cooperação efficaz do
commandante
do pôsto, um bom e honrado cavalheiro transmontano―ellas
viviam tam seguras e quietas na
pequena porção da casa que para si reservaram,
quanto em taes circumstancias era possivel viver.
Fr. Diniz vinha regularmente ao valle todas as
sexta-feiras, e nenhum outro hábito de suas vidas
se interrompeu.
E pouco a pouco, os combates, as escaramuças,
o som e a vista do fogo, o aspecto do sangue,
os ais dos feridos, o semblante desfigurado
dos mortos―a guerra emfim em todas as suas
fórmas, com todo o seu palpitante interêsse, com
todos os terrores, com todas as esperanças que a
accompanham, se lhes tornou uma coisa familiar,
ordinaria...
A tudo se habitua o homem, a todo o estado
se affaz; e não ha vida, por mais extranha, que
o tempo e a repettição dos actos lhe
não faça
natural.
[197]
Todavia de Carlos nem mais uma linha...
Pobre velha!
Assim passaram meses, assim correu o hynverno
quasi todo, e ja as amendoeiras se toucavam
de suas alvissimas flores de esperança, ja
uma depois de outra, íam renascendo as plantas,
íam abrolhando as árvores; logo vieram as aves
trinando seus amores pelos ramos... insensivelmente
era chegado o meio d'Abril, estavamos
em plena e bella primavera.
A guerra parecia cançada, o furor dos combatentes
quebrado; rumores de intentadas transacções
gyravam por toda a parte.
No nosso valle as sentinellas dos dous campos
oppostos, costumadas ja a ver-se todos os dias,
começavam a ver-se sem odio: principiaram por
se dizer dos pesados gracejos de guerra, acabaram
por conversar quasi amigavelmente. Muíta
vez foi curioso ouvi-los, os soldados, discorrer
sôbre as altas questões d'Estado que dividiam
o reino e o traziam revôlto ha tantos annos. Se
as tractavam melhor os do conselho em seus gabinetes!
[198]
Joanninha que, pouco a pouco, se habituára
áquelle viver de perigos e incertezas, de dia
para dia lhe ia crescendo o ânimo, aguerrindo-se.
Tudo se affazia áquelle estado: até os rouxinoes
tinham voltado aos loureiros d'aopé da casa,
e como que disciplinados obedeciam aos toques
d'alvorada e de retreta, accompanhando-os de seu
cantar animado e vibrante.
A essas horas Joanninha era certa em sua janella―n'aquella
antiga e elegante janella
renascença
de que primeiro nos namorámos, leitor amigo,
ainda antes de a conhecer a ella. Alli a viam
as vedetas de ambos os exercitos, alli se acostumaram
a vê-la com o nascer e o pôr do sol:
alli, muda e quêda horas esquecidas, escutava ella
o vago cantar dos seus rouxinoes, talvez absorta
em mais vagos pensamentos ainda...
E d'alli lhe pozeram o nome da 'menina dos
rouxinoes', pelo qual era conhecida em ambos os
campos: significante e poetico appellido com que
a saudavam os soldados de ambas as bandeiras!
E uns e outros respeitavam e adoravam a menina
dos rouxinoes. Entre uns e outros por tacita
[199]convenção
parecia stipulado que aquella
suave
e angelica figura podesse andar livremente no
meio das armas inimigas, como a pomba doméstica
e valida a que nenhum caçador se lembra
de mirar.
Os costumes de guerra são menos soltos do
que se cuida; no ânimo do soldado ha mais sentimentos
delicados, nas suas fórmas ha menos rudeza
do que se pensa. A farda é sim vaidosa e
presumida, crê muito nos seus podêres de
seducção,
mas não é brutal senão no primeiro
impeto.
Joanninha pençava os feridos, velava os infermos,
tinha palavras de consolação para todos,
e em tudo quanto dizia e fazia era tam senhora,
tinha tam grave gentileza, um donaire tam nobre,
que a amavam todos muito, mas respeitavam-n'a
ainda mais.
Fiada ja n'este respeito e estima geral, Joanninha
fôra extendendo, de dia a dia, as suas excursões
pelo valle. Ultimamente costumava ir,
pelo fim da tarde, até um pequeno grupo de alamos
e oliveiras que ficava mais para o sul e perto
[200]
do logar donde, á noite, se collocavam as derradeiras
vedetas dos constitucionaes.
Um dia, ja quasi pôsto o sol, a tarde quente
e serena,―ou fosse que adormeceu ou que suas
meditações a distrahiram―o certo é
que os rouxinoes
gorjeavam ha muito nos loureiros da janella,
e Joanninha não voltava.
Estabeleceram-se as vedetas de um lado e outro,
deram-se todas as disposições costumadas
para a noite.
O official dos constitucionaes que andava collocando
as suas sentinellas, tinha vindo essa mesma
tarde de Lisboa com um refôrço de tropa.
Pôs-se elle em marcha com a sua gente, foi-a
dispondo nos logares convenientes, e chegava emfim
aopé d'aquelle grupo de árvores:
―'Silencio!' disse elle 'Alto! alli está um vulto.'
―'Não é ninguem,' respondeu um soldado
que era dos antigos no pôsto: 'ninguem que importe;
é a menina dos rouxinões. Estou vendo
que adormeceu no seu poiso costumado.'
[201] ―'A menina dos rouxinões! Que
cantiga é
essa que me cantas tu lá?'
O soldado deu a explicação popular do seu
ditto, mostrou a casa do valle, e continuava incarecendo
sôbre os meritos e virtudes de Joanninha...
O official não o deixou acabar:
―'Para a rettaguarda, e silencio!'
Foi rapidamente postar, a alguma distancia
d'alli, as duas sentinellas que lhe faltavam; e elle
entrou so no pequeno grupo d'árvores.
Era Joanninha que estava alli, Joanninha que
effectivamente dormia a somno sôlto.
CAPITULO XX.
Joanninha adormecida―O
demi-jour da
coquette.―Poesia
do Flos-sanctorum*.―De como os rouxinoes acompanhavam
sempre a menina do seu nome; e do bem que um d'elles
cantava no bivac.―Retratto esquissado á pressa para
satisfazer
ás amaveis leitoras.―Pondera-se o triste e pessimo
gôsto dos nossos governantes em tirarem as honras militares
ao mais elegante e mais nacional uniforme do exército
portuguez.―Em que se parece o auctor da presente obra
com um pintor da edade-média.―De como os
abraços, por
mais apertados que sejam, e os beijos, por mais interminaveis
que pareçam, sempre teem de acabar porfim.
Sôbre uma especie de banco rustico de verdura,
tapeçado de grammas e de macella brava,
Joanninha, meio recostada, meio deitada, dormia
profundamente.
[204]
A luz baça do crepusculo, coada ainda pelos
ramos das árvores, illuminava tibiamente as expressivas
feições da donzella; e as fórmas
graciosas
de seu corpo se desenhavam molle e voluptuosamente
no fundo vaporoso e vago das exhalações
da terra, com uma incerteza e indecisão de
contornos que redobrava o incanto do quadro, e
permittia á imaginação exaltada
percorrer toda a
escalla d'harmonia das graças femininas.
Era um ideal do demi-jour da coquette parisiense:
sem arte nem estudo, lh'o preparára
a natureza em seu boudoir de folhagem perfumado
da brisa recendente dos prados.
Como n'essas poeticas e populares legendas de
um dos mais poeticos livros que se tem escripto,
o Flos-sanctorum, em que a ave querida e
fadada accompanha sempre a amavel sancta de
sua affeição―Joanninha não estava
alli sem o
seu mavioso companheiro. Do mais espêsso da
ramagem, que fazia sobreceo áquelle leito de verdura,
sahia uma torrente de melodias, vagas e
ondulantes como a selva com o vento, fortes, bravas,
e admiraveis de irregularidade e invenção,
como as barbaras endeixas de um poeta selvagem
[205]das montanhas...
Era um rouxinol, um dos
queridos rouxinoes do valle que alli ficára de vela
e companhia á sua protectora, á menina do seu
nome.
Com o approximar dos soldados, e o cochichar
do curto dialogo que no fim do último capitulo
se referiu, cessára por alguns momentos o delicioso
canto da avezinha; mas quando o official,
postadas as sentinellas a distancia, voltou pé ante
pé e entrou cautellosamente para debaixo das
árvores, ja o rouxinol tinha tornado ao seu canto,
e não o suspendeu outra vez agora, antes redobrou
de trillos e gorgeios, e do mais alto de
sua voz agudissima veio descahindo depois em uns
suspiros tam magoados, tam sentidos, que não disseras
senão que preludiava á mais terna e maviosa
scena d'amor que esse valle tivesse visto.
O official...―Mas certo que as amaveis leitoras
querem saber com quem trattam, e exigem,
pelo menos, uma esquissa rapida e a largos traços
do novo actor que lhes vou appresentar em scena.
Teem razão as amaveis leitoras, é um dever
de romancista a que se não póde faltar.
[206]
O official era môço,
talvez não tinha trinta annos;
pôsto que o tratto das armas, o rigor das
estações, e o sêllo visivel dos
cuidados que trazia
estampado no rosto, accentuassem ja mais fortemente,
em feições de homem feito, as que ainda
devia arredondar a juventude.
A sua estatura era mediana, o corpo delgado,
mas o peito largo e forte como precisa um coração
de homem para pulsar livre; seu porte gentil
e decidido de homem de guerra desenhava-se
perfeitamente sob o espesso e largo sobretudo militar―especie
de great-coat inglez que a imitação
das modas britannicas tinha tornado familiar
nos nossos bivacs. Trazia-o desabotoado e descahido
para traz, porque a noite não era fria; e
viu-se por baixo elegantemente cingida ao corpo
a fardeta parda dos caçadores, realçada de seus
characteristicos alamares pretos e avivada de incarnado...
Uniforme tam militar, tam nacional, tam caro
a nossas recordações―que essas gentes,
prostituidoras
de quanto havia nobre, popular e respeitado
n'esta terra, proscreveram do exército... por
[207]
muito portuguez demais talvez! deram-lhe baixa
para os beleguins da alfandega, reformaram-n'o
em uniforme da bicha!
Não pude resistir a esta reflexão: as amaveis
leitoras me perdoem por interromper com ella o
meu retratto.
Mas quando pinto, quando vou riscando e
collorindo as minhas figuras, sou como aquelles
pintores da edade-média que interlaçavam, nos
seus
paineis, distichos de sentenças; fittas lavradas de
moralidades e conceitos... talvez porque não sabiam
dar aos gestos e attitudes expressão bastante
para dizer por elles o que assim escreviam,
e servia a penna de supplemento e illustração ao
pincel... Talvez: e talvez pelo mesmo motivo caio
eu no mesmo defeito...
Será; mas em mim é irremediavel, não
sei
pintar de outro modo.
Voltemos ao nosso retratto.
Os olhos pardos e não muito grandes, mas de
[208]
uma luz e viveza ímmensa, denunciavam o talento,
a mobilidade do espirito―talvez a irreflexão...
mas tambem a nobre singeleza de um character
franco, leal e generoso, facil na íra, facil
no perdão, incapaz de se offender de leve, mas
impossivel de esquecer uma injúria verdadeira.
A bôcca, pequena e desdenhosa, não indicava
comtudo suberba, e muito menos vaidade, mas
surria na consciencia de uma superioridade inquestionavel
e não disputada.
O rosto, mais pallido que trigueiro, parecia
comprido pela barba preta e longa que trazia ao
uso do tempo. Tambem o cabello era preto; a
testa alta e desaffogada.
Quando callado e serio, aquella physionomia
podia-se dizer dura; a mais piquena animação, o
mais leve sorriso a fazia alegre e prazenteira,
porque a mobilidade e a gravidade eram os dous pollos
d'esse character pouco vulgar e difficilmente
bem intendido.
D'aquelle busto classico e verdadeiramente
moldado pelos typos da arte antiga, podia o statuario
[209]fazer um
philosopho, um poeta, um homem
d'estado ou um homem do mundo, segundo
as leves inflexões d'expressão que lhe
désse.
N'este momento agora, e ao entrar na pequena
espessura d'aquellas árvores, animava-o uma
viva e inquieta expressão de interêsse―quebrado
comtudo, sustido, e, para assim dizer,
soffreado
de um temor occulto, de um pensamento reservado
e doloroso que lhe ia e vinha resumbrando
na face, como a antiga e desbotada côr de um
estôfo que se tingiu de novo―que é outro agora
mas que não deixou de ser inteiramente o que
era...
Alegra-se assim um triste dia de novembro
com o raio de sol transiente e inesperado que lhe
rompeu a cerração n'um canto do ceo...
Tal era, e tal estava deante de Joanninha adormecida,
o que não direi mancebo porque o não
parecia―o homem singular a quem o nome, a
historia e as circumstancias da donzella pareciam
ter feito tamanha impressão.
―'Joanninha!' murmurou elle apenas a viu
[210]
á luz ainda bastante do crepusculo. 'Joanninha!'
disse outra vez, contendo a violencia da
exclamação:
'É ella sem dúvida. Mas que differente!...
quem tal diria! Que graça, que gentileza! Será
possível que a criança que ha dois annos?..'
Dizendo isto, por um movimento quasi involuntario
lhe tomou a mão adormecida e a levou
aos labios.
Joanninha estremeceu e acordou.
―'Carlos, Carlos!'―balbuciou ella com os
olhos ainda meio-fechados, Carlos, meu primo...
meu irmão! era falso, dize: era falso? Foi um
sonho, não foi, meu Carlos?..'
E progressivamente abria os olhos mais e mais
até se lhe espantarem e os cravar n'elle arregalados
de pasmo e de alegria.
―'Foi, foi' continuou ella 'foi sonho, foi um
sonho mau que eu tive. Tu não morreste... Falla
á tua irman, á tua Joanna; dize-lhe que
estás
vivo, que não es a sombra d'elle... Não es,
não,
que eu sinto a tua mão quente na minha que queima,
[211]sinto-a estremecer
como a minha... Carlos,
meu Carlos! dize, falla-me: tu estás vivo e são?
E es... es o meu Carlos? Tu proprio, não é ja
o sonho, es tu?...'
―'Pois tu sonhavas? tu, Joanna, tu sonhavas
commigo?'
―'Sonhava como sonho sempre que durmo...
e o mais do tempo que estou acordada... sonhava
com aquillo em que so penso... em ti.'
―'Joanna!... prima... minha irman!'
E cahiu nos braços d'ella; e abraçaram-se
n'um longo, longo abraço―com um longo, interminavel
beijo..! longo, longo e interminavel
como um primeiro beijo d'amantes...
O abraço desfez-se; e o beijo terminou em
fim, porque os reflexos do ceo na terra são limitados
e imperfeitos como as incompletas existencias
que a habitam.
Senão... invejariam os anjos a vida da terra.
[212]
Joanninha, tornada a si d'aquelle quasi paroximo,
abria e fechava os olhos para se affirmar
se estava bem acordada, tocava com as mãos
o rosto, o peito, os braços do primo, palpava-se
depois a si mesma como quem duvidava de sua
propria existencia, e dizia em palavras cortadas
e sem nexo:
―'É Carlos... Carlos: foi falso. É meu primo...
Minha avó tambem sonhou o mesmo sonho,
mas foi falso. Fr. Diniz não é o que disse, nem
ninguem: eu e a avó é que o sonhámos.
Mas elle
aqui está, vivo... vivo! e nosso, nosso todo outra
vez!... Mas como vieste tu aqui, Carlos? Como
estava eu aqui comtigo?... E sos, sosinhos
aqui a ésta hora! Não deve ser isto... Valha-me
Deus! E que dirão? E Jesus!―Lá isso
não me
importa; deixá-los dizer: mas não deve ser.
Vamos,
Carlos, vamos ter com ella, vamos para a
avó!... Que n'isto não ha mal nenhum... Meu
primo!..
um primo com quem eu fui criada!.. Mas
quem não souber, póde dizer... Vamos,
Carlos.―Oh!
minha avó morre de alegria, coitada!..
É verdade: vou adeante preveni-la, prepará-la...
heide-lhe ir assim dizendo pouco a pouco... Segue-me
tu, Carlos, e vamos.―Mas, oh meu
[213]
Deus! não é preciso: paraquê? Ella
é cega,
coitadinha, não sabes?'
―'Cega, que dizes? minha avó está cega?'
―'Pois não sabías? Ai! é verdade,
não
sabías.
Tantas coisas que tu não sabes, meu Carlos!
Mas eu te contarei tudo, tudo. Olha: cegou
quando... Mas não fallemos agora n'essas tristezas
que ja la vão. Em ella te sentindo aopé de
si, é o mesmo que tornar-lhe a vista. Tem-m'o
ella ditto muitas vezes, e eu bem sei
que é assim. Mas ouve: um dia havemos de
fallar―nós
dois sos―á vontade: tenho tanto que
te dizer... nem tu sabes... Agora vamos, Carlos.'
E fallando assim, tomou-o pela mão e sahiu
para o valle aberto, froixamente acclarado ja de
myríadas de estrellas scintillantes no ceo azul.
CAPITULO XXI.
Quem vem lá?―Como entre
dous litigantes nem sempre gosa
o terceiro.―Carlos e Joanninha n'uma especie de
situação
ordeira, a mais perigosa e falsa das
situações.
As estrellas luziam no ceo azul e diaphano,
a brisa temperada da primavera suspirava brandamente;
na larga solidão e no vasto silencio
do valle distinctamente se ouvia o doce
[216]
murmúrio da voz de Joanninha, claramente se
via o vulto da sua figura e da do companheiro
que ella levava pelo mão e que machinalmente a
seguia como sem vontade propria, obedecendo
ao podêr de um magnetismo superior e irresistivel.
Passavam, sem as ver e sem reflectir onde estavam,
por entre as vedetas de ambos os campos...
e ao mesmo tempo de umas e outras lhes
bradou o voz breve e stridente das sentinellas:
'Quem vem lá?'
Estremeceram involuntariamente ambos com o
som repentino de guerra e de allarma que os chamava
á esquecida realidade do sítio, da hora,
das circumstancias em que se achavam... D'aquelle
sonho incantado que os transportára ao
Éden querido de sua infancia, accordaram sobresaltados...
viram-se na terra erma e bruta,
viram a espada flammejante da guerra civil que
os perseguia, que os desunia, que os expulsava
para sempre do paraizo de delicias em que tinham
nascido...
Oh! que imagem eram esses dous, no meio
d'aquelle valle nu e aberto, á luz das estrellas
[217]
scintillantes, entre duas linhas de vultos negros,
aqui alli dispersos e luzindo acaso do tranziente
reflexo que fazia brilhar uma baioneta, um fuzil...
que imagem não eram dos verdadeiros e
mais sanctos sentimentos da natureza expostos e
sacrificados sempre no meio das luctas barbaras
e estupidas, no conflicto de falsos principios em
que se estorce continuamente o que os homens
chamaram
sociedade!
Joanninha abraçou-se com o primo; elle parou
derepente e foi com a mão ao punho da espada.
―'Quem vem lá?' tornaram a bradar as sentinellas.
―'Ouves, Joanna?' disse Carlos em voz baixa
e sentida: 'Ouves estes brados?' É o grito
da guerra que nos manda separar; é o clamor
cioso e vigilante dos partidos que não tolera a nossa
intimidade, que separa o irmão da irman, o
pae do filho!..'
―'Quem vem lá?' bradaram ainda mais forte
as ―'Quem vem lá?' bradaram ainda mais forte
as sentinellas; e ouviu-se aquelle stridor baço
e breve que tam froixo é e tam forte impressão
[218]faz nos mais
bravos animos... era o som dos
gatilhos que se armavam nas espingardas.
O momento era supremo, o perigo imminente e
ja inevitavel... alli podiam ficar ambos, traspassados
das ballas oppostas dos dous campos contendores.
Como esses que, fiados em sua innocencia e
abnegação, cuidam podêr passar por
entre as discordias
civis sem tomar parte n'ellas, e que são,
por isso mesmo, objecto de todas as desconfianças,
alvo de todos os tiros―assim estavam alli os dous
primos na mais arriscada e falsa posição
que têem as revoluções.
Joanninha conheceu o perigo que os ameaçava;
e com aquella rapidez de resolução que a mulher
tem mais prompta e segura nas grandes occasiões,
disse para Carlos:
―'Falla aos teus, faze-te conhecer e põe-te
a salvo. Ámanhan nos tornaremos a ver: eu te avisarei.
Adeus!'
―'E tu, tu?.. E as sentinellas dos realistas?..'
[219] ―'Não tenhas cuidado em mim. D'esta banda
todos me conhecem'.
Deu alguns passos para o lado da sua casa e
levantou a voz:
―'Joanninha! Sou eu, camaradas, sou eu!'
Immediatamente se ouviu o som retinido das
coronhas no chão, e o riso contente dos soldados
que reconheciam a bemquista e bem vinda voz
de Joanninha... da 'menina dos rouxinoes.'
―'Ves, Carlos?.. Adeus! até ámanhan.'
disse ella baixo.
―'Até amanhan se...'
―'Se!.. Pois tu?..'
―'Ouve: não digas a tua avó que me viste, que
estou aqui: é forçoso, é
indispensavel, exijo-o de ti...'
―'E ámanhan me dirás?..'
―'Sim.'
[220] ―'Prometto: não direi nada... Mas, oh! Carlos...'
―'Adeus!'
Carlos deu dous passos para a banda das suas vedetas,
Joanna correu para o lado opposto. Mas
elle parou e não tirou os olhos d'aquella fórma
gentil que deslizava como uma sombra pelo horisonte
do valle, até que desappareceu de todo.
E elle immovel ainda!
Faíscaram derepente como relampagos um,
dous, tres... e as detonações que os seguiram, e
o
assovio das ballas que vinham depós ellas... Eram
as sentinellas constitucionaes que faziam fogo sôbre
o seu commandante que não conheciam, cujo
silencio e immobilidade o fazia suspeito.
Uma das ballas ainda o feriu levemente no braço
esquerdo.
―'Bem, camaradas!' bradou Carlos caminhando
rapidamente para elles, e erguendo a voz
forte e cheia que tam conhecida era nas fileiras:
[221]
'Bem! Fizeram a sua obrigação. Um de
vocês
que me aperte aqui o braço com este lenço.'
―'Carlos!' gritou ao longe uma voz fina,
aguda, vibrante de terror pelo espaço 'Carlos!
falla-me, responde: não te succedeu nada?'
―'Nada, nada! Socega.'
E tornou a cahir tudo no silencio. Carlos retirou-se
ao seu quartel n'uma choupana proxima.
Os soldados olharam-se entre si e surriram.
Um mais doutor disse para os outros:
―'O nosso capitão não se descuida: ainda
hoje chegou, e já nós lá vamos, hem?'
―'O nosso capitão é d'aqui: não
sabes?'
―'Hum! tenho percebido. E ainda lhe dura?
O home' é capaz!'
―'Silencio! Eu te direi logo a historia toda:
é uma prima.'
[222] ―'Ah! prima. Então não ha nada que dizer.'
―'É a que elles chamam aqui...'
―'A menina dos rouxinoes? Essa é maluca.'
―'Gosta d'ellas assim, que elle tambem o é.'
―'Pois a freira de San Gonsallo, na Terceira?'
―'Maluca.'
―'E a Lady ingleza que?..'
―'Maluquissima essa! Não me hade admirar
se a vir cahir do ar um dia por ahi como
bomba. E não hade dar mau estallo!'
―'Podéra! E incontrando-se com a prima
então!..'
―'Mas elle é prima ou é irman?'
―'É uma tal parentella inrevezada a d'essa
gente da casa do valle!.. dizem coisas por ahi, que
[223]
se eu as intendo!.. E ha um frade no caso, ja
se sabe...'
―'Oh! elle ha frade no caso?'
―'Ha, e que frade! Um apostolico ás
direitas!
Tam feio, tão magro! apparece por
ahi ás vezes. Eu já o lombriguei um dia: e
que famoso tiro que era! Quasi que me arrependo
de não ter...'
―'Isso! hoje iamos matando o nosso capitão por
instantes. Olha agora se lhe matas o tio, ou pae,
ou o que quer que é...'
―'Um frade!'
―'Um frade não é gente?'
―'Não senhor.'
―'Está bom: basta de conversar por hoje.
O que me eu parece é que nós temos cedo muita
pancada rija.'
―'Venha ella, que isto ja abhorrece.'
[224]
Accenderam os cigarros e fumaram.
Com o mesmo socêgo d'espirito... sancto Deus!
accendem os homens a guerra civil, que altera
e confunde por este modo todas as ideas, todos
os sentimentos da natureza.
CAPITULO XXII.
Bilhete de manhan da prima ao primo.
Inganam a pobre da
velha.―Noite mal dormida.―Da conversa que teve Carlos
com os seus botões.―A Joanninha que elle deixára
e
a Joanninha que achou.―Obrigações d'amor, triste
palavra.―A
mulher que elle amava, e se elle a amava ainda.―Quesitos
do A. aos seus benevolos leitores. Declara que
com os hypocritas não falla.―Quem hade levantar a primeira
pedra?―Dous modos differentes de accudir uma coisa ao
pensamento.
No dia seguinte, mal rompia a manhan, um
paizano que dizia trazer communicações
importantes
para o commandante do pôsto avançado,
foi conduzido á presença de Carlos e lhe intregou
uma carta: era de Joanninha.
[226]
Fiel á sua promessa, ella não tinha ditto nada
do incôntro da véspera: dizia a carta. E que
a avó estava doente e afflicta; que para a animar
e consolar, lhe dera notícias do primo, como
vindas por pessoa que o víra e estivera
com elle. Que ficava mais contente e socegada:
mas que aquelle estado de anciedade
não podia prolongar-se. Que a saude da pobre
velha declinava de dia a dia; que se lhe
ia a vida, que era matá-la não lhe dizer a
verdade...
Joanninha concluia com mil affectos e saudades;
e aprazava por fim o mesmo sítio da véspera
para se tornarem a ver, e para concertarem
o que havia de fazer. Todas as precauções estavam
tomadas, e o consentimento dado pelo commandante
do pôsto contrário para
haver toda a
segurança n'aquella entrevista.
Carlos tinha velado toda a noite; uma excitação
extraordinaria lhe amotinára o sangue, lhe
desaffinára os nervos. Bem tinha desejado vir para
aquelle pôsto, bem contava, bem esperava elle,
estando alli, saber de mais perto da sua familia,
vê-los talvez, mais dia menos dia, incontrar-se
com alguns d'elles... e de todos elles, a innocente
e graciosa criança com quem vivêra como
[227]
irmão desde os seus primeiros annos, era quem
elle mais esperava, mais desejava ver decerto.
Mas uma criança era a que elle tinha deixado,
uma criança a brincar, a colhêr as boninas,
a correr atraz das borboletas do valle... uma
criança que sim o amava ternamente, cuja suave
imagem o não tinha deixado nunca em sua
longa peregrinação, cuja saudade o
accompanhára
sempre, de quem se não esquecêra um momento,
nem nos mais alegres nem nos mais occupados,
nem nos mais difficeis nem nos mais
perigosos da sua vida...
Mas era uma criança!.. era a imagem d'uma
criança.
É certo, sim: e nas batalhas, em presença da
morte... no longo cêrco do Porto entre os flagellos
da cholera e da fome, nas horas de mais
viva esperança, no descoroçoamento dos mais
tristes
dias, a doce imagem de Joanninha, d'aquella
Joanninha com quem elle andava ao colo, que
levantava em seus hombros para ella chegar aos
ninhos dos passaros no verão, aos medronhos maduros
[228]no
outomno, que
elle suspendia nos braços
para passar no hynverno
os
alagadiços do valle,―essa
querida imagem não o abandonára
nunca.
Nunca!.. nem quando as pennas d'amor, nem
quando as suas glórias―mais esquecidiças
ainda!―pareciam
absorver-lhe todos os sentidos,
e todo o sentimento de seu coração.
A saudade, a memoria de Joanninha, suavemente
impressa no mais puro e no mais sancto
de sua alma, resplandecia no meio de todas as
sombras que lh'a obscurecessem, sobreluzia no
meio de qualquer fogo que lh'a allumiasse.
Uma luz quieta, limpida, serena como a tocha
na mão do anjo que ajoelha em innocencia e
piedade deante do throno do Eterno!
Mas, no mesmo dia em que chegou ao valle,
quasi na mesma hora, cheio d'aquella luz, mais
viva e animada agora pela proximidade do foco
d'onde sahia... n'essa mesma hora, ir incontrar
alli, n'aquella solidão, entre aquellas árvores,
á tibia e seductora claridade do crepusculo...
[229]a quem, sancto
Deus! Não ja a mesma Joanninha
de ha tres annos, não a mesma imagem
que elle trazia, como a levára, no
coração; mas
uma gentil e airosa donzella, uma mulher feita
e perfeita, e que nada perdêra, comtudo, da graça,
do incanto, do suave e delicioso perfume da
innocencia infantil em que a deixára!
Não esperava, não estava preparado para a
impressão que recebeu, foi uma surpreza, um
choque, um reviramento confuso de todas as suas
ideas e sentimentos.
Qual fosse porêm a precisa e verdadeira impressão
que recebeu, nem elle a si proprio o podéra
explicar: era de um genero novo, unico na
historia de suas sensações: não a
conhecia, extranhava-a,
e quasi que tinha medo de a analysar.
Sería annúncio d'amor?
Mas elle tinha amado, amado muito e devéras...
e cuidava amar ainda, e devia amar; por
quanto ha sagrado e sancto nos deveres do
coração,
era obrigado a amar ainda.
[230]
Oh obrigações d'amor,
obrigações d'amor! se
vós não sois, se vós ja não
sois senão obrigações!..
Não o pensava Carlos, não o cria elle assim:
leal e sincero tinha intregue o seu coração
á
mulher que o amava, que tantas próvas lhe dera
d'amor e devoção; que descançava em
sua fé,
que não existia senão para elle: mulher
môça,
bella, cheia de prendas e de incantos, mulher
de um espirito, de uma educação superior, que
atravessára, desprezando-as, turbas de adoradores
nobres, riccos, poderosos, para descer
até elle, para se intregar ao foragido, pobre,
extrangeiro, desprezado.
Quem era essa mulher?
Aonde, como obtivera elle a posse d'essa joia,
d'esse talisman com o qual se tinha por tam seguro
para não ver na graciosa prima senão?..
Senão o quê?
A innocente criança que alli deixára?
Mas não é verdade isso: outra era a
impressão
[231]
que Joanninha lhe fizera, fosse ella qual fosse.
O que era então?
E sôbre tudo, quem era ess'outra mulher que
elle amava?
E amava-a elle ainda?
Amava.
E Joanninha?
Joanninha era... nem eu sei o que lhe era Joanninha...
o que lhe estava sendo n'aquelle momento.
O que lhe ella fôra, assas t'o tenho explicado,
leitor amigo e benevolo: o que lhe ella será...
Pódes tu, leitor candido e sincero,―aos
hypocritas
não fallo eu―pódes tu dizer-me o que
hade ser ámanhan no teu coração a
mulher que
hoje somente achas bella, ou gentil, ou interessante?
Pódes responder-me da parte que tomará
ámanhan
[232]na tua existencia
a imagem da donzella que
hoje contemplas apenas com olhos de artista, e
lhe estás notando, como em quadro gracioso,
os finos contornos; a pureza das linhas, a expressão
verdadeira e animada?
E quando vier, se vier, esse fatal dia de ámanhan,
responder-me-has tambem da parte que
ficará tendo em tua alma ess'outra imagem que lá
estava d'antes e que, ao reflexo d'esta agora,
d'aqui observo que vai impallidecendo, descórando...
ja lhe não vejo senão os lineamentos vagos... ja
é uma sombra do que foi... Ai! o que será ella
ámanhan?
Leitor amigo e benevolo, caro leitor meu indulgente,
não accuses, não julgues á pressa o
meu pobre Carlos; e lembra-te d'aquella pedra
que o Filho da Deus mandou levantar á primeira
mão que se achasse innocente... A adultera foi-se
em paz, e ninguem a apedrejou.
Pois é verdade: Carlos tinha amado, amado
muito, e amava ainda a mulher a quem promettêra,
a quem estava resolvido a guardar fé. E
essa mulher era bella, nobre, ricca, admirada, ――
Pois é verdade: Carlos tinha amado, amado
muito, e amava ainda a mulher a quem promettêra,
a quem estava resolvido a guardar fé. E
essa mulher era bella, nobre, ricca, admirada,
[233]
occupava uma alta posição no mundo... e tudo
lhe sacrificára a elle exilado, desconhecido.
E Carlos estava seguro que nenhuma mulher o
havia de amar como ella; que os longos e ondados
anneis de loiro cendrado, que os languidos
olhos de gazella, que o ar majestoso e altivo,
que a tez d'uma alvura celeste, que o espirito,
o talento, a delicadeza de Georgina... Chamava-se
Georgina; e é tudo quanto por agora póde
dizer-vos,
ó curiosas leitoras, o discreto historiador
d'este mui veridico successo: não lhe pergunteis
mais, por quem sois. Carlos estava seguro,
dizia eu, que todas essas perfeições, que o seu
amor sem limites, que a sua confiança sem reserva,
não podiam ter rival, nem a haviam de ter.
Mas aquelle beijo, aquelle abraço de Joanninha...
oh! que lhe tinha elle feito? Como o sentíra
elle? Como lhe guardára o seu talisman o
coração e a alma?..
Não, Carlos estava certo de si, certo do seu
antigo amor, lembrado de quanto lhe devia:
e n'isso reflectiu toda aquella noite que se fôra
em claro.
[234]
A imagem de Joanninha lá apparecia, de vez
em quando, como um raio de luz transiente e
magica, no meio d'ess'outras visões do passado
que a reflexão lhe acordava. Ai! essas era a
reflexão
que as acordava... aquella vinha espontanea;
era repellida, e tornava, e tornava...
Ha sua notavel differença n'estes dois modos
de accudir ao pensamento.
A manhan veio em fim; Carlos respirou o ar
puro e vivo da madrugada, sentiu-se outro.
Quando chegou a carta de Joanninha, leu-a e
reflectiu n'ella sem sobresalto. Certo e seguro de
si, resolveu ir ao prazo dado para a tarde.
CAPITULO XXIII.
Continúa a accudir muita coisa vaga e incontrada ao
pensamento
de Carlos.―Dança de fadas e duendes.―Fr. Diniz
o fado-mau da familia.―Veremos, é a grande
resolução
nas grandes difficuldades.―Carlos poeta romantico.―Olhos
verdes.―Desafio a todos os poetas moyen-ages do
nosso tempo.
Não ha nada como tomar uma resolução.
Mas hade tomar-se e executar-se: aliás, se o
caso é difficil e complicado, pouco a pouco as
[236]
dúvidas solvidas começam a inliar-se outra vez,
a inredar-se... a surgir outras novas, a appresentarem-se
faces ainda não vistas da questão... em
fim, se o intervallo é largo, quando a
resolução
tomada chega a executar-se, a maior parte das
vezes ja não é por fôrça de
razão e convicção que
se faz, mas por capricho, ponto d'honra, teima.
Carlos tinha resolvido ir ao prazo dado, no
fim do dia. Mas o dia era longo, custou-lhe a
passar. Todas as ponderações da noite lhe
recorreram
ao pensamento, todas as imagens que lhe
tinham fluctuado no espirito se avivaram, se animaram,
e lhe começaram a dançar n'alma aquella
dança de fadas e duendes que faz a delicia e
os tormentos d'estes sonhadores acordados que andam
pelo mundo e a quem a douta faculdade chama
nervosos; em stylo de romance
sensiveis, na
phrase popular
malucos.
Carlos era tudo isso: para que o heide eu negar?
Entre aquellas imagens que assim lhe bailavam
no pensamento, vinha uma agora... talvez a que
[237]
elle via mais distincta entre todas, a da avó que
tanto amára, em cujo maternal coração
elle bem
sabía que tinha a primeira, a maior parte... da
avó que tam carinhosa mãe lhe tinha sido! Pobre
velhinha, hoje decrepita e cega... Cega, coitada!
Como e porque cegaria ella?
Havia ahi mysterio que Joanninha indicára,
mas que não explicou.
Atraz da paciente e humilhada figura d'aquella
mulher de dores e desgraças, se erguia um
vulto austero e duro, um homem armado da cabeça
aos pés de ascetica insensibilidade, um homem
que parecia o fado-mau d'aquella velha, de
toda a sua familia... o cumplice e o verdugo de
um grande crime... um ser de mysterio e de terror.
Era Fr. Diniz aquelle homem; homem que
elle desejava, que elle cuidava detestar, mas por
quem, no fundo d'alma, lhe clamava uma voz
mystica e íntima, uma voz que lhe dizia: 'Assim
será
tudo, mas tu não pódes abhorrecer esse homem.'
Sim, mas sôbre Fr. Diniz pesava uma
accusação
tremenda, que o fizera, a elle Carlos, abandonar
[238]a casa de seus
paes! Accusação horrivel
que tambem comprehendia a pobre velha, aquella
avó que o adorava, e que elle, ainda criminosa
como a suppunha, não podia deixar de
amar...
E d'estes medonhos segredos sabía Joanninha
alguma coisa?
Esperava em Deus que não.
Desconfiaria alguma coisa?... O quê?
E iria elle polluir o pensamento, desflorar os
ouvidos, corromper os labios da innocente criança
com o esclarecimento de taes horrores?
Havia de lhe fallar na infamia dos seus? Havia
de lhe explicar o motivo porque fugira da casa
paterna?
Havia de?..
Não.―Se Joanninha tivesse suspeitas, havia
de destrui-las antes; se ella soubesse alguma coisa,
negar-lh'a.
[239]
Mentiria, juraria falso se fosse preciso.
E não havia de ir ver a avó, não havia
de
entrar na casa dos seus a consolar a infeliz que só
vivia d'uma esperança, a de ver o filho de sua filha?
Não, nunca... O limiar d'aquella porta, que
elle julgava contaminado, infame, manchado de
sangue e cuspido de opprobrios e deshonras, tinha-o
passado sacudindo o po de seus sapatos,
promettendo a Deus e á sua honra de o não tornar
a cruzar mais.
Mas que diria então elle a Joanninha? Como
havia de explicar-lhe um proceder tam extranho,
e apparentemente tam cruel, tam ingrato?
Por emquanto as impossibilidades materiaes
da guerra serviriam de desculpa, depois o tempo
daria conselho.
Veremos!―é a grande
resolução que se toma
nas grandes difficuldades da vida, sempre que
é possivel espaçá-las.
Carlos disse: '
Veremos!'
[240]
Tomou todas as disposições para podêr
estar
seguro e socegado no sítio onde ia incontrar a
prima: e o resto do dia, ancioso mas contente,
occupou-se de seus deveres militares, fatigou
o corpo para descançar o espirito, e em
parte e por bastantes horas o conseguiu.
Mas um dia de abril é immenso, interminavel.
E as últimas horas pareciam as mais compridas.
Nunca houve horas tammanhas! Carlos ja
não tinha que inventar para fazer: pôz-se a
pensar.
Que remedio!
Pensou n'isto, pensou n'aquillo... uma idea
lhe vinha, outra se lhe ia. A imaginação, tanto
tempo comprimida, tomava o freio nos dentes
e corria á redea sôlta pelo espaço...
Anneis dourados, transas de ebano, faces de
leite e rosas como de cherubins, outras pallidas,
transparentes, diaphanas como de princezas incantadas,
olhos pretos, azues, verdes... os de
Joanninha em fim... todas éstas
feições, confusas
e indistinctas mas de estremada belleza todas,
lhe passavam deante da vista, e todas o
infeitiçavam.
O
[241]
desgraçado...―Porque não
heide eu
dizer a verdade?―o desgraçado era poeta.
Inda assim! não me esconjurem ja o rapaz...
Poeta, intendamo'-nos; não é que fizesse versos:
n'essa não cahiu elle nunca, mas tinha
aquelle fino sentimento d'arte, aquelle sexto sentido
do
bello, do
ideal que so teem certas
organizações
privilegiadas de que se fazem os poetas
e os artistas.
Eis aqui um fragmento de suas aspirações
poeticas.
Vejam as amaveis leitoras que não teem
metro, nem rhyma―nem razão... Mas emfim
versos não são.
'Olhos verdes!..
'Joanninha tem os olhos verdes...
'Não se reflecte n'elles a pura luz do ceo, como
nos olhos azues.
'Nem o fogo―e o fummo das paixões, como
nos pretos.
[242]
'Mas o viço do prado, a frescura e
animação
do bosque, a fluctuação e a transparencia do
mar...
'Tudo está n'aquelles olhos verdes.
'Joanninha, porque tens tu os olhos verdes?
'Nos olhos azues de Georgina arde, em sereno
e modesto brilho, a luz tranquilla de um
amor provado, seguro, que deu quanto havia de
dar, quanto tinha que dar.
'Os olhos azues de Georgina não dizem senão
uma so phrase d'amor, sempre a mesma e sempre
bella:
Amo-te, sou tua!
'Nos olhos negros e inquietos de Soledade nunca
li mais que éstas palavras:
Ama-me, que es
meu!
'Os olhos de Joanninha são um livro immenso,
escripto em characteres moveis, cujas combinações
infinitas excedem a minha comprehensão.
'Que querem dizer os teus olhos, Joanninha?
'Que lingua fallam eles?
[243]
'Oh! paraque tens tu os olhos verdes, Joanninha?
'A assucena e o jasmim são brancos, a rosa
vermelha, o alecrim azul...
'Roxa é a violeta, e o junquilho côr de ouro.
'Mas todas as côres da natureza vêem de uma
so, o verde.
'No verde está a origem e o primeiro typo
de toda a belleza.
'As outras côres são parte d'ella; no verde
está o todo, a unidade da formosura creada.
'Os olhos do primeiro homem deviam de ser
verdes.
'O ceo é azul...
'A noite é negra...
'A terra e o mar são verdes...
[244]
'A noite é negra mas bella: e os teus olhos,
Soledade, eram negros e bellos como a noite.
'Nas trevas da noite luzem as estrellas que são
tam lindas... mas no fim de uma longa noite quem
não suspira pelo dia?
'E que se vão... oh! que se vão emfim as
estrellas!..
'Vem o dia... o ceo é azul e formoso: mas
a vista fatiga-se de olhar para elle.
'Oh! o ceo é azul como os teus olhos, Georgina...
'Mas a terra é verde: e a vista repousa-se
n'ella, e não se cança na variedade infinita de
seus
matizes tam suaves.
'O mar é verde e fluctuante... Mas oh! esse
é triste como a terra é alegre.
'A vida compõe-se de alegrias e tristezas...
'O verde é triste e alegre como as felicidades
da vida.
[245]
'Joanninha, Joanninha, porque tens tu os olhos
verdes?..'
Ja se vê que o nosso doutor de bivac, o soldado
que lhe chamou
maluco ao pensador de
taes
extravagancias, tinha razão e sabía o que dizia.
Infelizmente não se formulavam em palavras
estes pensamentos poeticos tam sublimes. Por um
processo milagroso de photographia mental, apenas
se pôde obter o fragmento que deixo transcripto.
Que honra e glória para a eschola romantica
se podessemos ter a collecção completa!
Fazia-se-lhe um prefacio incisivo, palpitante,
britante....
Punha-se-lhe um titulo vaporoso, phosphorescente...
por exemplo:―Echos surdos do
coração―ou―Reflexos
d'alma―ou―Hymnos invisiveis―ou―Pesadellos
poeticos―ou qualquer
outro d'este genero, que se não soubesse
bem o que era nem tivesse senso commum.
E que viesse ca algum menestrel de frak e
[246]
chapeu redondo, algum trovador renascença de
collete á Joinville, luctar com o meu Carlos em
pontos de romantismo vago, descabellado, vaporoso,
e nebuloso!
Se algum d'elles era capaz de escrever com
menos logica,―(com menos grammatica, sim)
e com mais triumphante desprêzo das absurdas e
escravizantes regras d'essa paleta d'essa eschola
classica que não produziu nunca senão Homero e
Virgilio, Sophocles e Horacio, Camões e o Tasso,
Corneille e Racine, Pope e Moliere, e mais algumas
duzias de outros nomes tam obscuros como
estes?
CAPITULO XXIV.
Novo Génesis.―O Adam social
muito differente do Adam
natural.―Carlos sempre um por seus bons instinctos, sempre
outro por suas más reflexões.―De como Joanninha
recebeu o primo com os braços abertos, e do mais que entre
elles se passou.―Dor meia dor, meia prazer.
Formou Deus o homem, e o pôs n'um paraizo de
delicias; tornou a formá-lo a sociedade, e o pôs
n'um inferno de tolices.
O homem―não o homem que Deus fez,
[248]
mas o homem que a sociedade tem contrafeito,
appertando e forçando em seus moldes de ferro
aquella pasta de limo que no paraizo terreal se
affeiçoára a imagem da divindade―o homem,
assim aleijado como nós o conhecêmos, é
o animal
mais absurdo, o mais disparatado e incongruente
que habita na terra.
Rei nascido de todo o creado, perdeu a realeza;
principe desherdado e proscripto, hoje vaga
foragido no meio de seus antigos estados; altivo
ainda e suberbo com as recordações do passado,
baixo vil e miseravel pela desgraça do
presente.
D'estas duas tam oppostas actuações constantes,
que ja per si sos o tornariam ridiculo, formou
a sociedade, em sua van sabedoria, um
systema chymerico, desarrazoado e impossivel,
complicado de regras a qual mais desvairada, incontrado
de repugnancias a qual mais opposta.
E vazado este perfeito modêlo de sua arte pretenciosa,
metteu dentro d'elle o homem, desfigurou-o,
contorceu-o, fê-lo o tal
D'estas duas tam oppostas actuações constantes,
que ja per si sos o tornariam ridiculo, formou
a sociedade, em sua van sabedoria, um
systema chymerico, desarrazoado e impossivel,
complicado de regras a qual mais desvairada, incontrado
de repugnancias a qual mais opposta.
E vazado este perfeito modêlo de sua arte pretenciosa,
metteu dentro d'elle o homem, desfigurou-o,
contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e
disparatado, doente, fraco, rachitico; collocou-o
no meio do Eden phantastico de sua
creação,―verdadeiro
[249]inferno de
tolices―e disse-lhe,
invertendo com blasphêmo arremêdo as palavras
de Deus Creador:
'De nenhuma árvore da horta comendo comerás;
'Porêm da árvore da sciencia do bem e do
mal, d'ella so comerás se quizeres viver.'
Indigestão de sciencia que não commutou seu
mau estomago, presumpção e vaidade que d'ella
se originaram―tal foi o resultado d'aquele preceito
a que o homem não desobedeceu como ao
outro: tal é o seu estado habitual.
E quando as memorias da primeira existencia
lhe fazem nascer o desejo de sahir d'esta outra,
lhe influem alguma aspiração de voltar
á
natureza e a Deus, a sociedade, armada de suas
barras de ferro, vem sôbre elle, e o prende, e
o esmaga, e o contorce de novo, e o apperta
no equuleo doloroso de suas fôrmas.
Ou hade morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
[250]
Poucos filhos do Adam social tinham tantas
reminiscencias da outra patria mais antiga, e
tendiam tanto a aproximar-se do primitivo typo
que sahíra das mãos do Eterno, forcejavam tanto
por sacudir de si o pesado appêrto das
constricções
sociaes, e regenerar-se na sancta liberdade
da natureza, como era o nosso Carlos.
Mas o melhor e o mais generoso dos homens
segundo a sociedade, é ainda fraco, falso e acanhado.
Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração
elevada de sua alma lhe tinha custado duros castigos,
severas e injustas condemnações d'esse grande
juiz hypocrita, mentiroso e venal... o mundo.
Carlos estava quasi como os mais homens...
ainda era bom e verdadeiro no primeiro impulso
de sua natureza excepcional; mas a reflexão
descia-o á vulgaridade da fraqueza, da hypocrisia,
da mentira commum.
[251]
Dos melhores era, mas era homem.
Os seus pensamentos, as suas considerações
em toda aquella noite, em todo o dia que a seguíra,
na hora mesma em que ia incontrar-se
com o objecto que mais lhe prendia agora o espírito,
senão é que tambem o
coração, todas participavam
d'aquella fluctuação inquieta e doentia
de seu ser d'homem social, em quem o tibio
reflexo do homem natural apenas relampejava por
acaso.
Dúvida, incerteza, vaidade, mentira deslocavam
e annullavam a bella organização d'aquella
alma.
Assim chegou aopé de Joanninha que o esperava
de braços abertos, que o appertou n'elles,
que o beijou sem nenhum falso recato de maliciosa
modestia, e com o riso da alegria no coração
e na bôcca lhe disse:
―'Ora pois, meu Carlos, sentemo-nos aqui
bem junctos aopé um do outro e conversemos,
que temos muito que fallar. Dá ca a tua mão.
Aqui na minha... Está fria a tua mão hoje! E
[252]
hontem tam quente estava!.. Oh! agora vai
aquecendo... tanto tanto... é demais! Terás tu
febre?'
―'Não tenho.'
―'Não tens, não: a cara é de saude. E
como
tu estás forte, grande, um homem como eu sempre
imaginei que um homem devia ser, como
sempre te via nos meus sonhos!.. Que é extranho
isto, Carlos: quando sonhava comtigo, não
te via como tu d'aqui foste, magro, triste e doente;
via-te como vens agora, forte, são, alegre.
Mas tu não estás alegre hoje, como hontem;
não
estás... Que tens tu?'
―'Nada, querida Joanninha, não tenho nada.
Pensava...'
―'Em que pensas tu? dize-me.'
―'Pensava na differença dos nossos sonhos:
que eu tambem sonhava comtigo.'
―'Sonhavas, Carlos! E como sonhavas tu?
como me vias nos teus sonhos?'
[253] ―'Tudo pelo contrario do que tu. Via-te
aquella Joanninha piquena, desinquieta, travêssa,
correndo por essas terras, saltando essas vallas,
trepando a essas árvores... aquella Joanninha
com quem eu andava ao collo, que trazia ás cavalleiras,
que me fazia ser tam doido e tam criança
como ella, apezar de eu ter quinze annos mais.
Via-te alegre, cantando...'
―'Sonhos de homem! Creiam n'elles! Eu que
nunca mais ri nem brinquei desde o dia que tu
partiste... E oh que dia, Carlos!.. E os que vieram
depois! Não houve nunca mais um so dia de
alegria n'ésta casa. Oh!.. deixa-me te dizer: Fr.
Diniz... Sabes que não gósto d'elle?'
―'Não gostas?'
―'Nada: tenho-lhe aversão. E Deus me perdoe!
parece-me que é injusta a minha antipathia.'
―'Porquê?'
―'Porque elle é teu amigo devéras. Um pae,
Carlos, um pae não tem maior ternura e desvellos
por seu filho, do que elle tem por ti.'
[254] ―'Deus lhe perdoe!'
―'Deus lhe perdoe a quem...e que lhe hade
perdoar? O amor que te tem?'
―'Não, mas...'
―'Bem sei o que queres dizer: e tens razão.'
―'Tenho razão!'
―'Tens: o que elle bem precisa que Deus
lhe perdoe é um grande peccado.'
―'Que dizes tu, Joanna! E como sabes?'
―'Sei, sei tudo.'
―'Tu!'
―'Eu. Sei que foi elle quem fez cegar minha
avó... a nossa boa, a nossa sancta avó, Carlos!..
quem a cegou á fôrça de lagrymas que
lhe
fez chorar áquelles pobres olhos que, de puro
cançados,
se apagaram para sempre... Minha ricca
avó!―E porquê, meus Deus, porquê!'
[255] ―'Porquê?'
―'Por amor de ti, por escrupulos que lhe
metteu na cabeça de tu seres mau christão,
inimigo
de Deus, que te não podias salvar... tu meu
Carlos! Vê que cegueira a do triste frade.'
―'Bem triste!'
―'Mas olha que o diz de boa-fé e pelo muito
amor que te tem... que é um amor que eu
não intendo: e o mesmo é com minha
avó, que
treme deante d'elle. E mais elle estima-a, estou
certa que dava a vida por ella... e por nós todos...
por mim não tanto, mas por ti e por ella, dava decerto.
Mas o seu amor é dos que rallam, que, apoquentam...
quasi que estou em dizer que matam.'
―'Matam, matam!'
―'Nossa avó é elle que a mata decerto.
Sempre a metter-lhe medos, sempre escrupulos!
O seu Deus d'elle é um Deus de terrores, de
vinganças,
de castigos, e sem nenhuma misericordia.
Oh! que homem! para elle tudo é peccado,
maldade... Não o posso ver.'
[256]
Carlos respirava como desopprimido de um grande
pêso, ouvindo as explicações da prima
que bem
claro lhe mostravam a sua perfeita ignorancia dos
fataes segredos da familia.
―'E comtigo' disse elle ja n'outra voz mais
desaffogada 'comtigo, Joanninha, como se avêm
elle, como te tracta?'
―'Commigo não se mette, e rara vez me
falla. Mas oh, se elle soubesse que eu estava aqui
comtigo, sancto Deus! o que ouviria a pobre da
minha avó! Inda bem que hoje não é
sexta-feira,
senão não vinha eu ca.'
―'Porquê? Ainda vem todas as sexta-feiras?'
―'Sempre o mesmo. Ámanhan ca o temos por
peccado, que é sexta-feira.'
―'Não te vejo então ámanhan aqui?'
―'Não decerto, aqui. Mas vamos, que a
isso é que eu venho ca hoje, para te fallar n'isso...
e para te ver, para fallar comtigo, para estar
[257]
com o meu Carlos... e ao mesmo tempo tambem
para ajustarmos como isto hade ser. Quando has-de
tu ir ver a avó?.. a nossa mãe; que ella
é
nossa mãe, Carlos, não conhecémos
nunca outra,
nem eu nem tu. Quando lhe heide eu dizer que
estás aqui? A pobre velhinha está tam doente!
Ha quinze dias que se não levanta da cama.'
―'Coitada da minha pobre mãe!.. Oh! se
não fosse!.. Deixa estar, Joanninha; um dia será.
Por agora, não póde ser: bem vês. Como
heide eu atravessar as sentinellas dos realistas, ir
a um pôsto inimigo?―A minha vida... isso pouco
importa, mas a minha honra ficava em perigo:
por todos os modos a perdia, e talvez...'
―'Não senhor, Sr. Carlos, essa desculpa
não basta. Vai n'um anno que aqui temos a
guerra á porta de casa, e ja sabemos como isso
é e como as coisas se fazem. O commandante
do nosso pôsto é um homem de bem, um cavalheiro
perfeito. Em lhe eu dizendo quem tu es e
a que ca vens... elle sabe o estado da minha avó,
e tem-lhe muita amizade, da-nos decerto licença
para tu vires em toda a segurança. Pensas
que elle não sabe que estou comtigo aqui?
[258]
Pois disse-lh'o eu; só lhe não expliquei quem tu
eras; disse-lhe que eras um parente nosso que
nos trazia notícias de outros, e que precisava
fallar-te. Não pôs dificuldade alguma:
é uma
pessoa excellente, bom, bom devéras.'
―'É môço o teu commandante?'
―'Môço elle? coitado! Tem bons cinquenta
annos, e creio que outros tantos filhos. Mas por
que perguntas tu isso? E arqueaste as sobrancelhas
com aquelle teu ar de antes quando te zangavas!
Porque foi isso, Carlos?'
―'Nada, criança, foi uma pergunta á toa.'
―'Pois será; mas não me franzas nunca
mais a testa assim, que te pareces todo... é que
nunca vi tal parecença...'
―'Com quem?'
―'Com Fr. Diniz.'
―'Eu com elle!'
[259] ―'Tal e qual quando fazes essa cara. Olha:
ahi estás tu na mesma. Vamos! ria-se e esteja
contente se se quer parecer commigo, que todos
dizem que nos parecemos tanto.'
―'Querida innocente!'
E beijou-lhe a mão que tinha appertada na
sua, beijou-lh'a uma e muitas vezes com um
sentimento de ternura misturado de não sei que
vaga compaixão, vindo de lá de dentro d'alma
com não sei que dor, meia dor meia prazer, que
entre ambos se communicou e a ambos humedeceu
os olhos.
CAPITULO XXV.
O excesso da felicidade que aterra e
confunde
tambem.―Pasmosa
contradicção da nossa natureza.―De como os
olhos verdes de Joanninha se inturvaram e perderam todo o
brilho.―Que o coração da mulher que ama, sempre
adivinha
certo.
Carlos tinha a mão de Joanninha appertada
na sua; e os olhos humidos de lagrymas cravados
nos olhos d'ella, de cujo verde transparente
e diaphano sahiam raios de ineffavel ternura.
[262]
Dizer tudo o que elle sentia é impossivel: tam
incontrados lhe andavam os pensamentos, em tam
confuso tumulto se lhe alvorotavam todos os sentidos.
Por muito tempo não proferiram palavra, nem
um nem outro; mas fallaram assim longos discursos.
Emfim, Joanninha voltou á sua primeira insistencia
e disse para o primo:
―'Olha, Carlos, ámanhan é sexta-feira, ja
te disse, vem Fr. Diniz: quando haja a menor
difficuldade do commandante, a elle não lhe recusa
nada...'
―'Por quanto ha no ceo, Joanninha, pela
tua vida, pela de nossa avó, nem uma palavra
ao frade da minha estada aqui! A elle, oh! a
elle jurei eu não tornar a ver. E se minha
avó...'
―'Basta: não lhe direi nada. Mas á nossa
avó quando lh'o heide dizer, e quando hasde tu
ir ve-la?'
―'Porora não: preciso licença de Lisboa,
[263]
ou do quartel-general quando menos, para fazer
uma coisa que todas as leis da guerra prohibem,
que nas actuaes circumstancias e em similhante
guerra ainda é mais defesa. E sem isso―tu bem
sabes que as minhas resoluções não se
mudam―sem
isso não o faço. Em todo o caso, que Fr.
Diniz nem sonhe!..'
―'E quanto tempo, quantos dias se hãode
passar?'
―'Eu sei? oito, quinze dias talvez, talvez mais.'
―'E a minha pobre avó, coitadinha! a morrer
de saudades...'
―'Consola-a tu, Joanninha: dize-lhe que
tiveste novas minhas, que estou bom, que me
não falta nada, que tenho esperanças de vos ver
muito cedo.'
―'E eu... eu posso, eu heide ver-te todos
os dias: não, Carlos?'
―'Ámanhan é sexta-feira...'
[264] ―'Ámanhan é o dia negro... nem eu queria:
ámanhan não póde ser, bem sei. Mas,
tirado
ámanhan, meu Carlos, oh! todos os dias!'
―'Sim, querido anjo, sim.'
―'Promettes?'
―'Juro-t'o.'
―'Succeda o que succeder?'
―'Succeda o que... So ha uma coisa que...
Mas essa não... não é possivel.'
―'O que é, Carlos? que póde haver, que
póde succeder que te impeça de?..'
Carlos estremeceu... hesitou, corou, fez-se
pallido... quiz dizer-lhe a verdade e não ousou...
Porquê?.. E que verdade era essa? Não a direi
eu, ja que elle a não disse: fiel e discreto
historiador, imitarei a discrição do meu heroe.
Pois era discrição a d'elle?
[265]
Não... em verdade, era outra coisa.
Era um pensamento reservado?
Não.
Era tenção má, ingano premeditado,
era?..
Não, tambem não.
O que era pois?
Era a dúvida, era a fraqueza, era a vaidade,
a mentira congenial e obrigada, a necessaria falsidade
do homem social.
Carlos mentiu e disse:
―'Só se m'o prohibirem expressamente... os
meus chefes.'
Mas não era isso o que elle receiava; não era
esse aquelle motivo unico e superior que elle temia
podesse vir um dia derepente cortar as doces
[266]relações
de convivencia a que tam prestes se
habituára, que ja lhe pareciam parte necessaria,
indispensavel da sua vida. Não era, não; e Carlos
tinha mentido...
Joanninha olhou para elle fixa... Carlos corou
de novo. Ella fez-se pallida... d'ahi corou tambem.
―'Carlos, tu não es capaz de mentir...'
―'Joanninha!'
―'Tu es o meu Carlos... tu queres-me como
me querias d'antes...'
―'Sou... oh! sou. E amo-te...'
―'Como d'antes?'
―'Mais.'
―'Pois olha, Carlos: eu nunca amei, nunca
heide amar a nenhum homem senão a ti.'
―'Joanna!'
[267] ―'Carlos!'
Iam a cahir nos braços um do outro... A singela
confissão da innocencia ia ser acceita por
quem e como, sancto Deus! Aquella palavra de
oiro, aquella doce palavra que tanto custa a pronunciar
á mulher menos arteira; que adivinhada,
sabida, ouvida ha muito pelo coração, ditta
mil vezes com os olhos, nenhum homem descança
nem se tem por feliz, por certo de sua felicidade,
em quanto a não ouve proferir pelos labios―essa
palavra celeste que explica o passado,
que responde do futuro, que é a última e
irrevocavel sentença de um longo pleito de anciedades,
de incertezas e de sustos―essa final
e fatal palavra
amo-te, Joanninha a
pronunciára
tam naturalmente, tam sincera, tam sem difficuldades
nem hesitações, como se aquelle fosse―e
era decerto―como se aquelle tivesse sido
sempre o pensamento unico, a idea constante e
habitual de sua vida.
O excesso da felicidade aterra e confunde tambem.
Um momento antes, Carlos dera a sua vida
por ouvir aquella palavra... um momento depois―oh
pasmosa contradicção de nossa dupplice
[268]natureza! um
momento depois dera a vida
pela não ter ouvido. No primeiro instante ia
lançar-se
nos braços da innocente que lh'os abria
n'um sancto extasi do mais apaixonado amor; no
segundo, tremeu e teve horror da sua felicidade.
―'Joanna' exclamou elle 'Joanna, querida,
sabes tu se eu mereço... sabes tu se deves?..'
―'Sei. Desde que me intendo, não pensei
n'outra coisa; desde que d'aqui foste, comecei a
intender o que pensava... disse-o a minha avó, e
ella...'
―'E ella?..'
―'Ella abençoou-me, chamou-me a sua querida
filha, abraçou-me, beijou-me, e disse-me
que aquella era a primeira hora de felicidade e
de alegria que ha muitos annos tinha tido.'
Carlos não respondeu nada e olhou para Joanninha
com uma indicivel expressão de affecto e
de tristeza. Os raios de alegria que resplandeciam
n'aquelle semblante―agora bello de toda
a belleza com que um verdadeiro amor illumina
[269]
as mais desgraciosas feições―os raios d'essa
alegria
começaram a amortecer, a apagar-se. A
lucida transparencia d'aquelles olhos verdes turvou-se:
nem a clara luz da agua-marinha, nem
o brilho fundo da esmeralda resplandecia ja
n'elles; tinham o lustro baço e morto, o polido
mate e silicioso de uma d'essas pedras sem agua
nem brilho que a arte antiga ingastava nos collares
de suas estátuas.
―'Adeus Joanna!' disse Carlos perturbado
e confuso.
―'Adeus, Carlos!' respondeu ella machinalmente.
―'Até depois de ámanhan, Joanna.'
―'Pois sim.'
―'Depois de ámanhan te direi...'
―'Não digas.'
―'Porquê?'
[270] ―'Porque é excusado: ja sei tudo.'
―'Sabes!'
―'Sei.'
―'O quê?'
―'O que tu não tens ânimo para me dizer,
Carlos; mas que o meu coração adivinhou. Tu
não me amas, Carlos.'
―'Não te amo! eu!.. Sancto Deus! eu
não a amo...'
―'Não. Tu amas outra mulher.'
―'Eu! Joanna, oh! se tu soubesses...'
―'Sei tudo.'
―'Não sabes.'
―'Sei: amas outra mulher, outra mulher
que te ama, que tu não pódes, que tu
não
deves abandonar, e que eu...'
[271] ―'Tu?'
―'Eu sei que é bella, prendada, cheia de
graças e de incantos, porque... porque tu, meu
Carlos, porque o teu amor não era para se dar
por menos.'
―'Joanna, Joanninha!'
―'Não digas nada, não me digas nada hoje...
hoje sobretudo, não me digas nada. Ámanhan...'
―'Ámanhan é sexta-feira.'
―'Inda bem! terei mais tempo para reflectir,
para considerar antes de tornar a ver-te.
Adeus Carlos!'
―'Uma palavra so, Joanna. Cuidas que sou
capaz de te inganar?'
―'Não; estou certa que não.'
―'Até ámanhan... até depois de
ámanhan.'
―'Adeus!'
[272]
Abraçaram-se, e d'esta vez froixamente; beijaram-se
de um osculo timido e recatado... os
beiços de ambos estavam frios, as mãos
trémulas;
e o coração comprimido batia, batia-lhes
forte que se ouvia.
Retirou-se cadaum por seu lado. A noite estava
pura e serena como na vespera, as estrellas
luziam no ceo azul com o mesmo brilho; o
silencio, a majestade, a belleza toda da natureza
era a mesma... so elles eram outros... outros,
tam outros e differentes do que foram!
Tinham-se dado cuidadosamente as providencias;
ambos chegaram, sem nenhum accidente,
ao seu destino.
NOTAS
NOTAS
AO LIVRO PRIMEIRO.
Nota A.
Que viage á roda do seu
quarto, quem está
a beira dos Alpes
É visivel allusão ao popular e inimitavel
opusculo
de Xavier de Maistre,
Voyage autour de ma
chambre,
que decerto foi principiado a escrever em Turim, e
que muitos suppoem que fôsse concluido em San'Petersburgo.
[276]
Nota B.
Designio politico determinado a minha
visita
(a Santarem)
É puramente historico isto; e tambem é verdade
que em grande parte d'aqui se originou a
persiguição
brutal que soffreu o A. d'ahi a poucos meses.
Nota C.
Regata chamavam, e não
sei se chamam ainda, em
Veneza ás carreiras de barcos appostados ao desafio. A
palavra e a coisa introduziu-se em Inglaterra, onde é
moda e popularissima.
Nota D.
Eu coroarei de trevo a minha
espada
Estes versos são uma especie de parodia dos famosos
fragmentos de Alceu de que so existe memoria
nos scholios que nos conservou Eustathio. Nas
Flores
sem fructo, pag. 56 a traducção
d'aquelle bello
fragmento.
[277]
Nota E.
Depois de tantas commissões de inquerito,
deve de andar orçado o número de
almas
Os protocollos das commissões de inquerito de ha
oito para dez annos a ésta parte, sôbre o estado
das
classes trabalhadoras e indigentes em Inglaterra, é a
próva real dos grandes calculos da economia politica,
sciencia que eu espero em Deus se hade desacreditar
muito cedo.
Nota F.
There are more things
etc.
A traducção chegada d'estes memoraveis versos de
Shakspeare é:
Ha mais coisas no ceo, ha mais na terra
Do que sonha a tua van philosophia.
Nota G.
Um
Chourineur... uma
Fleur-de-Marie
Personagens, bem conhecidos geralmente, do romance
tam popular de Eug. Sue,
Os Mysterios de
París.
[278]
Nota H.
Addison, o poeta, foi ministro da rainha Anna de
Inglaterra, e membro do célebre gabinete chamado
de
All-wits.
Nota J.
Quando chegou alli pelos
Prazeres
Um dos dois cemiterios de Lisboa―seja ditto para
intelligencia do leitor provinciano―chama-se
Dos
Prazeres, por uma ermida de N. S.
a
que alli existia
com ésta invocação desde antes do
terreno ter o
presente destino. É notavel a coincidencia do nome.
Nota K.
O verdadeiro alfageme... tinha pelo povo
e não queria saber de
partidos
É facil de ver que o interlocutor d'este dialogo conhecia
esse curioso personagem da historia do Condestavel,
não pelas chronicas mas pelo drama que tem o
seu nome.
[279]
Nota L.
Do
Sacré-Coeur e das
suas elegantes
devotas
O convento que tem este nome em París, é casa
de educação de meninas nobres, e recolhimento de
senhoras tambem.
Nota M.
Graciosa sculptura de Antonio
Ferreira
Antonio Ferreira, que viveu no fim do seculo passado,
princípio d'este, modelava em barro com a
mesma graça e naturalidade flamenga, com que
pintava o morgado de Setubal: as suas piquenas figurinhas
são tam estimadas pelos intendedores como
os melhores biscoitos de Sevres e de Saxonia antiga.
Nota N.
Ave phenix que nasceu de nossos avós não saberem
grego
A fábula daquella ave immortal teve origem nas
edades obscuras da Europa quando o grego era ignorado.
O que os antigos diziam da
phenix,
palmeira
em grego, tomaram nossos barbaros avós por ditto
de uma passarolla com que os outros nunca sonharam.
INDICE.
Prologo
dos
editores. |
pag. |
|
V |
Capitulo
I.―De como
o auctor
d'este erudito livro
se resolveu a viajar na sua terra, depois
de ter viajado no seu quarto; e como resolveu
immortalizar-se escrevendo éstas suas viagens.
Parte para Santarem. Chega ao Terreiro
do Paço; imbarca no vapor de Villa-Nova; e o
que ahi lhe succede. A Deducção-Chronologica
e a baixa de Lisboa. Lord Byron e um
bom charuto. Travam-se de razões os ilhavos
e os bordas-d'agua, e os da calça larga levam
a melhor. |
|
1 |
Capitulo
II.―Declaram-se
typicas,
symbolicas e
mythicas éstas viagens. Faz o A. modestamente
o seu proprio elogio. Da marcha da civilização;
e mostra-se como ella é dirigida pelo
cavalleiro da Mancha, D. Quixote e por seu
escudeiro, Sancho Pança.―Chegada a Villa-Nova-da-Rainha.
Supplicio de Tantalo.―A
virtude galardão de si mesma; e sophisma de
Jeremias-Bentham.―Azambuja. |
|
13 |
Capitulo
III.―Acha-se
desappontado o leitor com
a prosaica sinceridade do A. d'estas viagens.―O
que devia ser uma estalagem n'estas nossas eras de litteratura
romantica?―Suspende-se
o exame d'esta grave questão para tractar,
em prosa e verso, um muito difficil ponto de
economia-politica e de moral social.―Quantas
almas é preciso dar ao diabo, e quantos corpos
se teem de intregar no cemiterio para fazer
um ricco n'este mundo.―Como se veio a
descobrir que a sciencia d'este seculo era uma
grandecissima tola.―Rei de facto, e rei de direito.―Belleza
e mentira não cabem n'um sacco.―Põe-se
o A. a caminho para o pinhal da
Azambuja. |
|
23 |
[281]
Capitulo
IV.―De
como
o A. foi
pensando e divagando;
e em que pensava e divagava elle,
no caminho da villa da Azambuja até o famoso
pinhal do mesmo nome.―Do poeta grego
e philosopho Démades e do poeta e philosopho
ingles Addison: da casaca de penneiros
e do palio atheniense, e de outros importantes
assumptos em que o A. quiz mostrar sua
profunda erudição.―Discute-se a materia
gravissima
se é necessario que um ministro d'estado
seja ignorante e leigarraz.―Admiraveis
reflexões de zigzag em que se tracta de re
politica
e de re amatoria.―Descobre-se
porfim
que o A. estivera a sonhar em todo este capitulo,
e pede-se ao leitor benevolo que volte
a folha e passe ao
seguinte. |
|
31 |
Capitulo
V.―Chega
o
A. ao pinhal
da Azambuja,
e não o acha. Trabalha-se por explicar este
phenomeno pasmoso. Bello rasgo de stylo romantico.―Receita para fazer
litteratura original
com pouco trabalho.―Transição classica;―Orpheu
e o bosque do Ménalo. Desce o
A. d'estas grandes e sublimes considerações para
as realidades materiaes da vida: é desamparado
pela hospitaleira traquitana e tem de
cavalgar na triste mula de arrieiro.―Admiravel
choito do animal. Memorias do marquez
do F. que adorava o
choito. |
|
39 |
[282]
Capitulo
VI.―Próva-se
como o velho Camões não
teve outro remedio senão misturar o maravilhoso
da mylhologia com o do christianismo.―Da-se
razão, e tira-se depois ao padre
José Agostinho.―No meio d'estas
disceptações
academico-litterarias vem o A. a descobrir que
para tudo é preciso ter fé n'este mundo. Diz-se
n'este mundo, porque, quanto ao
outro ja
era sabido.―Os Lusiadas, Fausto e a
Divina-Comedia.―Desgraça
de Camões em ter
nascido antes do romantismo.―Mostra-se como
a Styge e o Cocyto sempre são melhores sitios
que o Inferno e o Purgatorio.―Vai o A. em
procura do marquez de Pombal, e dá com
elle nas ilhas Beatas do poeta Alceu.―Partida
de Wist entre os illustres finados.―Compaixão
do marquez pelos pobres homens de Ricardo
Smith e J. B. Say.―Resposta d'elle e
da sua luneta ás perguntas peralvilhas do
A.―Chegada
a este mundo e ao
Cartaxo. |
|
47 |
Capitulo
VII.―Reflexões importantes
sôbre o
Bois-de-Boulogne, as carruagens de mollas, Tortoni, e o café
do Cartaxo.―Dos cafés em
geral, e de como são o characteristico da
civilização
de um paiz.―O Alfageme.―Hecatombe
involuntaria immolada pelo A.―Historia
do Cartaxo.―Demonstra-se como a Gran'
Bretanha deveu sempre toda a sua fôrça e toda
a sua glória a Portugal.―Shakspeare e
Laffitte, Milton e Chateaumargot.―Nelson e
o principe de Joinville.―Próva-se evidentemente
que M. Guizot é a ruina de Albion e
do Cartaxo.
|
|
59 |
[283]
Capitulo
VIII.―Sahida
do
Cartaxo.―A charneca.―Perigo
imminente em que o A. se acha de
dar em poeta e fazer versos.―Ultima revista
do imperador D. Pedro ao exército liberal.
Batalha de Almoster.―Waterloo.―Declara
o A. solemnemente que não é philosopho e chega
á ponte de
Asseca. |
|
71 |
Capitulo
IX.―Prologomenos
dramatico-litterarios,
que muito naturalmente levam, apezar
de alguns rodeios, ao retrospecto e
reconsideração
do capitulo antecedente.―Livros que
não deviam ter titulo, e titulos que não deviam
ter livro.―Dos poetas d'este seculo: Bonaparte,
Rotchild e Silvio-Péllico.―Chega-se
ao fim
d'estas reflexões e á Ponte da
Assecca.―Traducção
portugueza de um grande poeta.―Origem
de um dictado.―Junot na ponte da Assecca.―De
como o A. d'este livro foi jacobino
desde piqueno.―Inguiço que lhe deram.―A duqueza de
Abrantes.―Chega-se emfim
ao val de Santarem. |
|
79 |
[284]
Capitulo
X.―Valle de
Santarem―Namora-se o
A. de uma janella que ve por entre umas
árvores.―Conjecturas
várias a respeito da ditta
janella.―Similhança do poeta com a mulher
namorada, e inquestionavel inferioridade do
homem que não é poeta.―Os rouxinoes.
Reminiscencia
de Bernardim Ribeiro e das suas saudades.―De
como o A. tinha quasi completo o
seu romance, menos um vestido branco e uns
olhos pretos.―Sahem verdes os olhos com
grande admiração e pasmo seu.―Verificam-se
as conjecturas sôbre a mysteriosa janella.―A
menina dos rouxinoes.―Censura das damas
muito para temer, crítica dos elegantes muito
para rir.―Começa o primeiro episodio d'esta
Odyssea. |
|
91 |
Capitulo
XI.―Tracta-se
do unico
privilegio dos
poeetas que tambem os philosophos quizeram tirar,
mas não lhes foi concedido; aos romancistas
sim.―Applicação d'estes principios a
Aristoteles e Anacreonte.―O A., tendo declarado
no capítulo nono d'esta obra que não
era philosopho, agora confessa, quasi solemnemente.
que é poeta, e pretende manter-se
como tal, em seu direito.―De como S. M.
elrei de Dinamarca tinha menos juizo do que
Yorick, seu bobo.―Doutrina d'este. Funda
n'ella o A. o seo admiravel systema de physiologia
e pathologia transcendente do coração.Por uma
deducção appertada e cerrada da mais
constrangente logica vem a dar-se no motivo
porque foi concedido aos poetas esse direito indefinido
de andarem sempre namorados.―Applicam-se
todas éstas grandes theorias á
posição
actual do A. no momento de entrar no episodio
promettido no capítulo antecedente.―Uma
modestia e reserva delicada o obrigam a
duvidar da sua qualificação para o desimpenhar:
pede votos ás amaveis leitoras. Decide-se
que a votação não seja nominal, e
porquê.―Dido
e a mana Annica.―Entra-se emfim na
promettida historia.―De como a velha estava
á porta a dobar, e imbaraçando-se-lhe a meada,
chamou por Joanninha, sua
neta. |
|
99 |
[285]
Capitulo
XII.―De
como Joanninha
desimbaraçou
a meada da avó, e do mais que aconteceu.―Que
casta de rapariga era Joanninha. Dá o A.
insigne prôva de ingenuidade
e boa fé confessando
um grave senão do seu Ideal. Insiste
porém que é um adoravel deffeito.―Em que
se parece uma mulher desannellada com um
Sansão tosquiado.―Pasmosas monstruosidades
da natureza que desmentem o credo velho
dos peralvilhos.―Os olhos verdes de Joanninha.―Religião
dos olhos pretos strenuamente
professada pelo A. Perigo em que ella se acha á
vista de uns olhos verdes.―De como estando
a avó e a neta a conversar muito de mano a
mano, chega Frei Diniz e se interrompe a
conversação.―Quem
era Frei Diniz. |
|
109 |
[286]
Capitulo
XIII.―Dos
frades em
geral.―O frade
moralmente considerado, socialmente e
artisticamente.―Próva-se
que é muito mais poetico
o frade do que o barão.―Outra vez D.
Quixote e Sancho Pansa.―Do que seja o barão,
sua clasificação e
descripção linneana.―Historia
do castello do Chucherumello.―Erro
palmar de Eugenio Sue: mostra-se que os
jesuitas não são a cholera-morbus, e que
é preciso
refazer o 'Judeu errante'―De como
o frade não intendeu o nosso seculo nem o nosso
seculo ao frade.―De como o barão ficou em
logar do frade, e do muito que n'isso
perdémos.―Unica
voz que se ouve no actual deserto
da sociedade: os barões a gritar contos
de réis.―Como se contam e como se pagam
os taes contos.―Predilecção artistica do A.
pelo frade: confessa-se e explica-se ésta
predilecção. |
|
121 |
Capitulo
XIV.―Emendado
emfim de
suas distracções
e divagações, prosegue o A. direitamente
com a historia promettida.―De como
Fr. Diniz deu a manga a beijar a avó e á neta,
e do mais que entre elles se passou.―Ralha
o frade com a velha, e começa a descubrir-se
onde a historia vai
ter. |
|
133 |
Capitulo
XV.―Retrato
de um frade
franciscano
que não foi para o depósito da Terra-sancta,
nem consta que esteja na Academia das Bellas-Artes.―Ve-se
que a logica de Fr. Diniz se
não parecia nada com a de Condillac.―Suas
opiniões sôbre o liberalismo e os liberaes.―Que
o podêr vem de Deus, mas como e paraquê.―Que
os liberaes não intendem o que é
liberdade e egualdade; e o para que eram os
frades, se fossem.―Próva-se, pelo texto,
que o homem não vive so de pão, e pergunta-se
o de que vivia então Fr.
Diniz. |
|
147 |
[287]
Capitulo
XVI.―Saibamos
da vida do
frade.―Era
franciscano porquê?―Dos antigos e dos
novos martyres.―Alguns particulares de Fr.
Diniz antes e depois de ser
frade.―Emigração.―Explicação
incompleta.―De como a
velha tinha perdido a vista, e Joanninha o riso.―Sexta
feira dia aziago. |
|
155 |
Capitulo
XVII.―De
como, chegando
outra sexta-feira
e estando a avó e a neta á espera do
frade, este lhe appareceu, contra o seu costume,
da banda de Lisboa.―Por que razão
muitas vezes a mais animada conversação
é a
que mais facilmente pára e quebra de repente.―Nova
demonstração de dois grandes axiomas
dos nossos velhos, a saber: Que o hábito
não faz o monge; e que ralhando as comadres
se descobrem as verdades.―No ralhar
da velha com o frade, levanta-se uma ponta
do véo que cobre os mysterios da nossa
historia. |
|
171 |
Capitulo
XVIII.―Descobre-se
que
ha grandes e
espantosos segredos entre o frade e a velha―Piedosa
fraude de Joanninha.―-Lucta entre o
hábito e o
monge. |
|
181 |
[288]
Capitulo
XIX.―Guerra de postos avançados,
Joanninha no bivac.―De como os rouxinoes
do valle se disciplinaram a ponto de tocar a
alvorada e a retreta.―Quem era a 'menina
dos rouxinoes,' e porque lhe poseram este
nome.―A sentinella perdida e
achada. |
|
191 |
Capitulo XX.―Joanninha
adormecida―O demi-jour
da coquette.―Poesia do Flos-sanctorum.―De
como os rouxinoes accompanhavam sempre
a menina do seu nome; e do bem que um
d'elles cantava no bivac.―Retratto esquissado
á pressa para satisfazer ás amaveis
leitoras.―Pondera-se
o triste e pessimo gôsto dos nossos
governantes em tirarem as honras militares ao
mais elegante e mais nacional uniforme do exército
portuguez.―Em que se parece o auctor
da presente obra com um pintor da edade-média.―De
como os abraços, por mais apertados
que sejam, e os beijos, por mais interminaveis
que pareçam, sempre teem de acabar
por fim. |
|
203 |
Capitulo
XXI.―Quem
vem
lá?―Como entre dous
litigantes nem sempre gosa o terceiro.―Carlos
e Joanninha n'uma especie de situação
ordeira,
a mais perigosa e falsa das
situações. |
|
215 |
Capitulo
XXII.―Bilhete
de manhan
da prima ao
primo. Inganam a pobre da velha.―Noite mal
dormida.―Da conversa que teve Carlos com
os seus botões.―A Joanninha que elle deixára
e a Joanninha que achou.―Obrigações d'amor,
triste palavra.―A mulher que elle amava,
e se elle a amava ainda.―Quesitos do A.
aos seus benevolos leitores. Declara que com
os hypocritas não falla.―Quem hade levantar
a primeira pedra?―Dous modos differentes
de acudir uma coisa ao
pensamento. |
|
225 |
[289]
Capitulo
XXIII.―Continúa a accudir muita coisa
vaga e incontrada ao pensamento de Carlos.―Dança
de fadas e duendes.―Fr. Diniz o fado-mau
da familia.―Veremos, é a grande
resolução
nas grandes difficuldades.―Carlos poeta
romantico.―Olhos verdes―Desafio a todos
os poetas moyen-ages do nosso
tempo. |
|
235 |
Capitulo XXIV.―Novo
Génesis.―O Adam social
muito differente do Adam natural.―Carlos sempre
um por seus bons instinctos, sempre outro
por suas más reflexões.―De como Joanninha
recebeu o primo com os braços abertos, e do
mais que entre elles se passou.―Dor meia dor,
meia prazer. |
|
247 |
Capitulo XXV.―O
excesso da
felicidade que aterra
e confunde tambem.―Pasmosa contradicção
da nossa natureza.―De como os olhos verdes
de Joanninha se inturvaram e perderam todo
o brilho.―Que o coração da mulher que
ama, sempre advinha
certo. |
|
261 |
Notas |
|
275 |
Notas:
[1] Chamavam
assim por escarneo, em
Portugal, ao general
Loison a quem faltava um braço.
[2]
Célebre urso do Jardim das Plantas em
París.
[3] Pag.
40,
41,
42.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
*
correcções feitas com base na errata do
próprio livro.
Shakespeare e Rotschild surgem neste livro como Shakspeare e
Rotchild respectivamente. Dada a repetitividade constante, decidi
manter de acordo com o original.
Foram adicionados travessões onde a sua falta foi notada.
As indicações dos números de
páginas que se mencionaram na secção
de "Notas do Primeiro Livro" e "Índice",
foram corrigidas
para corresponder ao local correcto.