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Rita
Farinha (Mar. 2008)
NOVA ACADEMIA
DE
PINTURA
DEDICADA
ÁS SENHORAS PORTUGUEZAS
Que amão ou se applicão ao
estudo
das Bellas Artes.
....las Mugeres quando
Talves, applicar se han visto
A las Letras, o
las Artes,
Los Hombres han excedido.
LISBOA:
NA IMPRESSÃO REGIA.
ANNO 1817.
Com Licença.
[3]
PROEMIO.
Quando vou discorrer sobre a Arte da Pintura, parece que deveria
começar pelo seu elogio; mas não o farei, por me
parecer cousa superflua, e bem sabida de todos: observarei
sómente, que a Arte por si só, inda que fosse
levada a hum alto gráo de perfeição,
não poderia fazer illustre,
e estimavel aquelle que tivesse o odioso, ou ridiculo comportamento de
hum Brouwer,
[1]
de hum Aleixo Transpadano,
[2]
ou de hum Bufalmaco;
[3]
[4]
mas se
pelo contrario, algum soubesse ajuntar á honra, e
á virtude os talentos de Rafael, de Corregio, ou de outro
grande Pintor, estas raras qualidades assim reunidas,
constituirião (diz Richardson) hum mortal «cujo
esplendor
poderia luzir mùito, mesmo em hum mundo ainda melhor de que
este». Na Poesia não se admittem medianias;
mas na Pintura ha tantas e taes difficuldades a vencer, que
«O Pintor
de segunda ou terceira classe merece o mesmo gráo de
estimação que hum homem de primeira ordem em
qualquer outra Faculdade.»
Mas se esta scientifica Arte, pela sua belleza e profundidade, tem sido
digna da applicação de muitos homens da mais alta
esphera, não deixa ella tambem, de ser igualmente propria,
ou talvez mais propria ainda, para as Senhoras; principalmente
naquelles
[5]
casos em que são
mais necessarias a graça, e a delicadeza: assim, tem feito
as Nações conhecedoras o maior apreço
das obras da Sirani, da Sophonisba, da Rosalba, e de muitas outras,
cujos nomes fazem tanta honra ao bello Sexo, como ás suas
patrias.
A Musica he huma arte angelica, e pode entreter deliciosamente qualquer
Senhora, huma ou duas horas cada dia; a leitura a divertirá
tres ou quatro; mas a Pintura faz parecer pequenos os maiores dias de
Junho, e torna amavel e apetecivel a mesma solidão: he huma
arte não só imitadora
de toda a Natureza, mas tambem creadora; arte emfim, que sympathisa
grandemente com a vivacidade das pessoas espirituosas, e discretas,
muitas das quaes desejão saber pintar, e nem sempre o
conseguem; ou por viverem em terras aonde não ha quem as
ensine, ou por se limitarem nas lições a huma
pratica mui superficial. A Pratica he de absoluta necessidade, e por
ella se deve não
[6]
só começar, mas avançar muito, sem
nunca a perder de vista; porém ha huma baliza,
além da qual senão podem fazer ulteriores
progressos sem estudar a fundamento os preceitos theoricos.
Os Poetas, e Oradores tem as suas regras fundamentaes, escritas por
bons Authores; nós tambem temos as nossas: o numero dos
Escriptores que as tratão he muito grande; os idiomas em que
correm impressas são mui diversos; e he assaz difficultoso
poder fazer dellas huma sufficiente collecção; e
quando se fizesse serviria talvez, mais para confundir a mente de hum
principiante, que para a illustrar. Ha em taes livros muitas cousas
inuteis, e outras que parecem, ou são contradictorias; por
tanto he preciso escolher, resumir, e concordar: he o que
nós procurámos fazer nesta pequena obra,
extrahindo de muitas flores, como fazem as abelhas, só o
balsamo que he proprio para compor o mel; pondo de parte quanto nos
pareceo improprio, ou desnecessario.
[7]
A Praxe, como dissemos, he indispensavel aos Artistas; mas a theoria he
indispensavel á perfeição da mesma
pratica. Ella nos manifesta em pouco tempo as descobertas de muitos
seculos.
Desde que os restaudores da Arte
começárão a fazer alguns progressos,
cuidárão logo em ir estabelecendo, como maximas
fundamentaes, as verdades que forão descobrindo; e para que
ellas fossem bem apuradas e debatidas, antes de se adoptarem, e bem
interpretadas depois de estabelecidas, fundárão
Academias, compostas dos mais sabios Artistas daquelles tempos; e
ás especulações mais e mais apuradas
dos seus Academicos, he que se deve a perfeição a
que chegou a Arte no tempo de Raphael: e como a doutrina da nossa nova
Academia he derivada, e recopilada das doutrinas de todas ellas,
não será fóra de proposito dizer de
passagem alguma cousa a respeito das mais notaveis.
Tendo-se perdido a Arte, nos seculos
[8]
que as
invasões dos Godos fizerão barbaros, e infelices,
só em Constantinopla, aonde elles não
entrárão, se conservou huma sombra della, que no
seculo XI. começou a diffundir-se pela Italia. Pelos annos
1000 forão alguns daquelles chamados Pintores, fazer de
Mosaico, o coro da Igreja de Santa Miniata em Florença: por
1072, sendo Doge de Veneza, Domingos Contarino, forão outros
Gregos de Constantinopla ornar tambem de Mosaico a igreja de S. Marcos:
hum seculo depois o Abbade Joaquim fez pintar sobre a porta do
Thesouro, como por inspiração, os retratos de S.
Francisco, e S. Domingos, que ainda não erão
conhecidos: os Annaes de Sena fazem menção de
alguns estatutos da Arte no seculo XIII.; mas huma das mais antigas
sociedades de Artistas, foi a dos Padres Gaudentes, em
Florença, no fim do mesmo seculo; muitos dos quaes
bordavão, escrevião bem,
miniavão, e pintavão.
Gioto, no principio do seculo XIV.
[9]
fundou a primeira Academia das
tres Artes, em Florença; e Jacomo Casentino concorreo muito
para se erigir a Irmandade de S. Lucas em Santa Maria a Nova. A Pintura
fazia progressos; e quando as Artes sobem, os discipulos excedem os
mestres: Thaddeo Gaddi excedeo seu mestre Gioto, no colorido, e nas
expressões: Paulo Ucéllo fez grandes progressos
na perspectiva: Pedro Cavallini, e Fr. João Angelico
derão hum ár muito devoto ás Santas
Imagens:
[4]
o Massolino
[5]
deu grande nobreza ás figuras, e
huma certa vida aos olhos; mas o seu discipulo Massacio excedeu-o
tanto, quanto elle havia excedido os outros; porque deu muita
força de relevo, muita correcção,
[10]
graça, e bellas attitudes
ás personagens que pintava; e póde-se dizer que
abrio o templo da Immortalidade a Miguel Angelo, e a Raphael.
Lourenço de Medicis estabeleceo no seu Palacio, e Jardim,
huma destas Universidades, ou Academias, bem provida de preciosos
Cartões, desenhos, quadros, e estatuas; e dava premios, e
pensões aos estudantes mais aproveitados. Dalli sahio o
Buonarota, o Torrigiani, o Ghirlandáro, e outros sabios.
Fr. João Angelo, que era bom Escultor, obteve o beneplacito,
e a protecção do Grão Duque, para se
restabelecer a antiga Academia, e a Irmandade de S. Lucas,
já quasi extinctas, no Convento dos Anjos, e depois em S.
Lourenço.
Em quanto isto se passava em Italia, tambem se
fundárão iguaes estabelecimentos á
quem dos seus montes, taes como o de Antuerpia, o de Nuremberg, o de
Bruxellas, etc.; sendo hum dos mais antigos o de
[11]
Bruges, aonde João Van-Eych
no seculo XIV. inventou a pintura a oleo.
No principio do seculo XVI. erigio em Roma, o divino Raphael, a mais
douta Universidade da Pintura que virão os modernos; mas
durou pouco tempo; porque faltou o Reitor della em 1520, e os alumnos
todos se dispersárão, sete annos depois, quando o
exercito do Condestavel Carlos de Borbon saqueou aquella Capital:
porém Gregorio XIII, fundou outra, em
consideração do Musiano, e do Zucaro, que a
dotárão. Os seus Academicos
edificárão o Templo de S. Lucas, e Santa
Martinha, hum dos mais bellos e mais sumptuosos de Roma, pelos desenhos
do famoso Pintor Pedro de Cortona; o qual lhe deixou 200$000 cruzados
para se construir o Altar mór, de bronzes e marmores finos,
e se lhe erigir hum mausoléo.
[6]
O
[12]
Painel da dita Capella mór,
o qual representa S. Lucas retratando Nossa Senhora, he de Raphael.
Pela Lombardia fez a Arte grandes progressos, e teve boas Academias em
Milão, Veneza, Módena, Parma, Bolonha, etc. A dos
Caraches foi a mais célebre, pela quantidade de grandes
homens que della sahio. Alli se estudavão as tres Artes, a
gravura, a perspectiva, e a anatomia: era provîda de
esqueletos, manequins, gessos originaes, vestidos, armas, arnezes, etc.
Alli se distribuião lugares, empregos, e premios, tudo
debaixo da direcção de Luiz Carache. Depois desta
houve tambem em Bolonha a do Guido, que teve 200 discipulos, a do
Albani, a do Pasinelli, a do Conde Cignani, as do Conde e do Senador
Ghisiliere, e outras muitas; mas como todas erão de
particulares, depressa se extinguião. Em
[13]
Julho de 1706,
juntárão-se 80 ou 90 Pintores (entre os quaes,
diz Zanoti, havia alguns que tinhão o seu merecimento) na
Galeria do Conde Fava, que sabia pintar, e tinha boa
collecção de pinturas, a fim de buscarem meios
para reprimir a ousadia de certos
artigiani
intrusos, que abusando da illimitada liberdade da Pintura, em hum paiz
aonde não havia Academia, se incumbião da
direcção de grandes emprezas, e
reduzião os habeis artistas a huma abjecta
servidão. O resultado foi que o dito Conde, o General
Marsili, e Carlos Maratti obtiverão do Papa Clemente XI.,
que se estabelecesse a desejada Academia de Pintura, e fosse alojada,
com a Filosofia, no Palacio do Instituto de Bolonha, debaixo da
Protecção de Santa Catharina de Vigri, religiosa
de S. Domingos, e Pintora Bolonheza.
Os Authores Francezes fallão em desenhos seus, feitos
á penna no seculo XII., com estylo nada inferior
[14]
ao que depois usou Cimabue:
[7]
e nos
tempos de Gioto, tinhão já muitos daquelles que
alli se chamão
barbouilleurs, formado huma
corporação, mecanica sim, mas muito privilegiada
pelo Parlamento; e em virtude dos seus privilegios
ousárão incommodar os grandes Pintores, que
apparecerão no tempo de Luiz XIV. Estes, indignados contra a
sua audacia, fundárão a Academia Real de Pintura,
e Esculptura, que em 1663 foi dotada com 4$ libras annuaes; mas Luiz
XVI. lhe condeo 10$.
Mr. Urry, director das obras Reaes, em 1737, inventou o chamado
Salão; lugar aonde de dois em dois annos, os Artistas
expõem ao Publico as melhores obras que vão
fazendo; cousa que foi mui vantajosa á
[15]
Arte.
Não lhe forão menos uteis os que se
chamão quadros de Maio: os Ourives
começárão em 1449 a offerecer a Nossa
Senhora com grande solemnidade, hum ramo verde, a que
chamavão o Maio: depois, juntárão aos
ramos certas maquinetas; e por fins, desde 1630
começárão a offerecer
cada anno, hum painel, feito sempre por algum dos melhores Pintores da
França.
Luiz XV. estabeleceo o grande Concurso da Academia Real em
París, sendo o premio dos vencedores, a
sustentação em Roma (aonde tem outra Academia)
por tempo de quatro annos, para se aperfeiçoarem.
Na Hespanha fundárão-se tambem varias Academias;
mas a mais famosa foi a de Sevilha, aberta por Morilho em 1660. A de
Madrid estabeleceo-se muito mais tarde pelas dissensões dos
mesmos Artistas. O partido dos menos habeis, que era m
Na Hespanha fundárão-se tambem varias Academias;
mas a mais famosa foi a de Sevilha, aberta por Morilho em 1660. A de
Madrid estabeleceo-se muito mais tarde pelas dissensões dos
mesmos Artistas. O partido dos menos habeis, que era muito maior,
triumphou por mais de 120 annos, até o de 1744; tempo em que
Philippe V. mandou absolutamente
[16]
que se fundasse. Fernando VI., dois
annos depois, a dotou em 12$ pezos; e exaltou-a extraordinariamente, e
aos seus professores.
Inda que estas mimosas Artes sejão mui pouco fecundas nos
climas frios, tem-se estabelecido as suas Academias na Dinamarca, na
Russia, e por todo o Norte da Europa. Os Pintores Inglezes tambem se
associárão em
S. Martin's-lane
em 1750, a fim de deitarem os fundamentos n'huma especie de Academia:
dez annos depois convierão em fazer huma
exhibição publica das suas melhores obras, em hum
salão similhante ao de França, aonde se entraria
por dinheiro. Em 65 obtiverão o beneplacito Regio para se
estabelecerem; e em 68 teve a Sociedade o titulo de Academia Real das
tres Artes. O dote era o producto das exhibições;
mas como nos primeiros annos não chegasse para as despezas,
supprio o bolsinho Real a falta de 45$ cruzados.
Os Artistas expõem á venda, ou
[17]
á censura
pública, naquelle Salão, as obras que querem; e
os curiosos que as pertendem ver, pagão pela entrada hum
xelim cada hum: estas entradas produzirão 13 a 14$ cruzados
annuaes até o anno 1779; mas no seguinte, que foi o primeiro
da exhibição em
Somerset-Palace, subio a receita a 27$ cruzados; e
dalli até o anno de 96 andou sempre por 22 a 23$ de sorte
que excedendo a receita a despeza, comprou a Academia huma boa
propriedade, e applicou os seus rendimentos em beneficio dos Artistas
precisados. Este estabelecimento, soffreo tambem, como todos os mais,
grandes opposições; porque os não
admittidos em a nova Academia, fundárão outra; e
outra exhibição; mas como não
tinhão grande credito, tudo desappareceo em pouco tempo.
De todas estas, e outras famosas Eschólas, he que deriva a
Doutrina, que em compendio vamos ensinar nesta nova Academia: mas antes
de começar as lições, he preciso dar
ás
[18]
nossas illustres Academicas huma idea verdadeira da Arte.
A Pintura póde ser considerada de duas sortes, ou como
natural, ou como artificial. A Pintura natural he aquella que
naturalmente se imprime na retina dos nossos olhos; e dalli, pelos
nervos opticos, se communica á alma; e a Pintura artificial,
he a imitação da Pintura natural. A esta
imitação, se he bem feita, chama-se
Verdade.
A Verdade na Pintura, ou he simples, ou ideal, ou composta de huma e
outra: Verdade simples he a imitação exacta da
Pintura natural, tal como ella se estampa dentro dos nossos olhos, com
todas as suas bellezas, e defeitos: Verdade ideal, he a
imitação daquellas imagens, que se nos
representão na imaginação: Verdade
mixta he a imitação da Pintura natural, emendada
nos seus defeitos, pelos modelos de perfeição que
o grande Artista concebe na sua mente. Esta verdade mixta, ou composta,
he a que se acha nas obras de
[19]
Raphael, e de outros grandes homens;
mas principalmente no
Antigo.
[8]
Os que estudão a Arte devem, primeiro que tudo, adquirir a
pratica da verdade simples, costumando-se a imitar perfeitamente tudo
quanto se apresentar diante dos seus olhos; mas podem, e devem faze-lo
de sorte que em virtude da boa escolha dos objectos, achem tambem nos
seus exemplares a verdade composta. As Pinturas do Carache no palacio
Farnesio, e as de
Raphael no
Vaticano são as
duas grandes eschólas de Desenho. A terceira, e
não menos importante para os que estão mais
adiantados, he a das boas estatuas antigas: os que não
puderem estudar pelos originaes, basta que estudem por exactissimas
copias.
[20]
A Pintura comprehende tudo quanto se póde ver, e imaginar; e
como he tão vasta, divide-se em muitas partes, e em muitos
generos. Os generos, são: 1.º o Historico, ou (como
os
authores lhe chamão) o grande Genero: 2.º o dos
Retratos:
3.º o das Batalhas: 4.º o das Bambochatas:
5.º o das Paizagens e
Perspectivas: 6.º o das Marinhas: 7.º o dos Animaes:
8.º o das
cousas inanimadas, como flores, fructos, ornatos, quadraturas, etc.
As partes de que se compõe a Pintura, são: a
Invenção; a
Expressão; a Distribuição, ou
Disposição; o Desenho; o Colorido; o Clar'escuro;
o Estylo, ou Pincel; a Graça; a Grandeza; o bello Ideal;
etc. etc.: mas todas estas partes se podem reunir debaixo de tres
principaes chefes, que vem a ser:
Composição,
Desenho, e Colorido. Na ordem dos estudos praticos,
começa-se pelo Desenho; mas na ordem da doutrina theorica
principia-se pela Composição, por ser a primeira
cousa que o
[21]
pintor
habil tem a fazer quando quer começar o seu painel; motivo
porque principiaremos tambem por esta parte o nosso compendio.
[23]
NOVA ACADEMIA
de
PINTURA
primeira parte.
Composição.
«
Crear, ou
para dizer melhor, reproduzir de novo as obras do
Creador;
renovar e perpetuar sobre hum painel os feitos heroicos, os
acontecimentos memoraveis, he o mais nobre emprego do genio pitoresco.
Dispôr as idéas em huma bella ordem, apresenta-las
debaixo d'hum aspecto luminoso, he o grande primor da arte. Desta
duplicada operação, da Arte, e do Genio, nasce a
Composição. Os pensamentos
são
[24]
os seus membros. Mas assim como os
materiaes de hum edificio não o poderião formar,
se não estivesse cada hum no seu lugar; assim as
idéas não representarião bem huma
passagem historica, senão estivessem distribuidas na
composição do quadro, com sabia economia, e com
reflexão magistral. A composição
divide-se em Invenção, e
Disposição.»
secção
i.ª
Invenção.
«
A
invenção he a
combinação
dos pensamentos que concorrem para a composição
de qualquer assumpto: he huma Musa que sendo dotada de todas as bellas
qualidades das suas irmãs, as Musas das Bellas letras, e
inspirada pelo espirito de Apolo, vem por isso mesmo a ser mais
elevada, e a resplandecer com mais viva
[25]
flamma: he hum talento natural
que se não adquire pelo estudo, nem pela pratica; porque a
fonte das invenções está na faculdade
imaginativa, e requer tres cousas,
imaginação,
prudencia,
erudição.»
«Não ha regras para a
Invenção, porque
a arte de imaginar não se communica; mas podem haver
conselhos uteis. Racine, quando compunha as suas tragedias fazia todos
os esforços para entrar nos sentimentos que queria dar a
Hippolito, a Phedra, a Athalia, e a Esther.»
«A Invenção he a poesia da Pintura, e a
parte
mais propria para descobrir o talento do artista: ella desenvolve a
primeira idéa de toda a obra; e o Pintor não a
deve perder de vista até a ultima pincelada. Não
basta que elle encha hum painel com muitas e boas figuras, se estas
não servirem todas para explicar o principal objecto; e se a
totalidade da obra não declarar logo ao espectador qual he o
assumpto de que se trata; preparando, e dispondo a mente de
[26]
quem vê a pintura, para
ser commovida com as expressões, e affectos das figuras
principaes: sem o que, de nada serviria dar-lhes expressões
violentas e exaggeradas, como fazem aquelles que querem affectar muito
espirito. O excesso, ou affectação he a cousa
mais nociva á boa invenção.»
«A Pintura sustenta-se, assim como a Poesia, pela fabula, e
vive de
ficções; cada virtude se transforma n'huma
divindade: Minerva he a Prudencia; Venus a formosura; Diana a
castidade; Écho não he hum som, he huma nympha; o
cabo das tormentas não he hum promontorio, he o gigante
Adamastor. Assim o Pintor, e o Poeta, ornão e
elevão todas as cousas.»
«He tambem importante, associar á escolha dos
objectos todas
as circumstancias, e todos os episodios, que podem augmentar o seu
interesse; tendo porém muito cuidado em que os accessorios
não prejudiquem em cousa alguma a
acção principal.»
«As particularidades relativas ao
[27]
costume devem ser exactamente observadas na
Invenção: transportemo-nos em idéa aos
diversos paizes; chamemos á nossa
imaginação os passados seculos; occupemo-nos dos
usos, costumes, e trajes de todas as personagens, para não
cahir-mos naquelles anachronismos, que são capazes de tirar
o merecimento ao quadro mais felizmente concebido, e
executado.»
«Tudo o que se chama original he inventado; mas nem tudo o
que he
inventado merece o titulo de original; porque esta palavra
não só dá
idéa de invenção, mas tambem de grande
magisterio. Arrojar-se a inventar sem ter subido todos os
degráos da escada optica, he querer precipitar-se. Alguns
desfigurão ás vezes os seus pensamentos querendo
enriquece-los.»
«Lêa o Pintor muitas vezes a historia que ha de
compôr, e quando estiver bem senhor della imagine as
personagens: faça o desenho interno na sua idéa;
porque sem isso rascunhará
[28]
muito, e não fará nada. Depois
da composição mental, querendo passar
á execução da obra, retire-se do
tumulto; porque entre rumores, e estrépitos nada se
fará com acerto. Não pinte senão
quando se sentir excitado por hum certo impulso; porque a pezar das
Musas não se póde fazer obra louvavel.»
«A
Invenção
requer muito fogo, e muito genio; e a
Disposição
muita fleuma, e prudencia: e como estas cousas tão oppostas
raras vezes se combinão, por isso tem sido raros os grandes
Pintores. He porém mais facil moderar o genio de fogo, que
escaldar o de gelo.»
«Nem todos os pensamentos são proprios para formar
huma
intelligivel e elegante composição. Lucas
Jordão rejeitou as Invenções dos
sabios que por ordem de Carlos II. lhe davão assumptos
Theologicos para elle executar no Escurial. Todos erão
orthodoxos, discretos, eruditos; mas não erão
capazes de fazer por elles huma bella e pittoresca
composição:
[29]
portanto deve-se escolher hum assumpto nobre, e que seja susceptivel de
bom colorido, graça, belleza,
instrucção, recreio, etc.: escolhendo, para o
compor, o mais bello de toda a Natureza, segundo o gosto dos antigos, e
dos modernos que melhor os souberão imitar.»
«A escolha das Invenções deve ser
analoga aos
lugares que ellas vão ornar. Nas Casas Reaes convem as
acções dos Principes, e dos grandes
Capitães; convém triumphos, victorias, e outros
assumptos capazes de levantar o nosso espirito a pensamentos heroicos,
e a desejos de honra, e de gloria. O grande Artista póde, e
deve ser grato aos beneficios que recebe da Patria, dos Principes, e
dos grandes Senhores: e se Virgilio immortalisou os Romanos,
Camões os Portuguezes, e Homero os Gregos; tambem Raphael
teve poder para perpetuar a gloria de Julio II., e Leão X.;
Lebrun a de Luiz XIV.; e o Ticiano a de Carlos V.»
«Nos Consistorios ecclesiasticos,
[30]
tem bom lugar a assembléa
dos Filosofos, ou o concilio dos Theologos; como fez Raphael no palacio
Pontificio: mas nos seculares, não será impropria
a pintura do conselho dos Gregos para a expedição
de Troya: a de Licurgo, Demosthenes, etc. Nos templos claros pode-se
pintar S. João prégando á turba; a
absolvição da Adultera; a conversão de
S. Paulo; e outras passagens alegres: mas n'hum tribunal de
Justiça será a proposito representar o juizo de
Salomão; aquelles que se dedicárão
á morte por amor das leis; e outros semelhantes.»
«Nos jardins, ao pé das fontes, não
serão improprias as metamorphoses de Acteon, Arethusa,
Salmacis, Narciso, e Egeria; mas entre os bosques Hippomenes, Atalanta,
Meleagro, Marsyas, Apollo; os quatro tempos, e os mezes do anno; bailes
de nynfas, e satyros; e tambem algumas perspectivas, e paizagens, com
Cephalo, etc.»
«Sobre as chaminés das salas pintar-se-ha
[31]
Prometheu furtando o fogo
do Ceo, Hercules na pyra, Ascanio com a flamma nos cabellos, Vulcano,
Phaetonte, Perillo, Scevola, Curcio, Medéa, Ceres procurando
a filha, e outras. Os corredores ou galerias abertas, sendo nobres como
são as lojas de Raphael, ou o Claustro do Escurial, podem
ser enfeitados com elegantes ornatos, e arabescos, compostos de aves,
flores, fructos, medalhas de estuque, paizagens, perspectivas,
folhagens, animaes, insectos, monstros, figuras humanas, e tudo quanto
cria a Natureza, e a idéa póde
imaginar.»
«As galerias interiores, bem pintadas, são como
preciosos
volumes, sempre abertos, e escriptos em huma linguagem universal, que
todos entendem; onde vemos descriptas as proezas de Luiz XIV.; a
protecção efficaz que elle concedeo ás
Artes e Sciencias; as acções de Francisco I.; e
tantas outras cousas nobres, sublimes, e interessantes, executadas pelo
Rosso, pelo Primaticio, pelo divino
[32]
Raphael, por
Le Brun, por
Mignard, e por muitos outros sapientissimos Pintores.
Rubens na Galeria do palacio de Luxemburgo, edificado por Maria de
Medicis, tambem deixou em vinte e quatro paineis immortalisadada a vida
daquella heroina. No primeiro, onde está representado o seu
destino, apparecem as tres parcas fiando os bellos dias da futura
Rainha, debaixo dos auspicios de Juno, e de Jupiter. No segundo
está Lucina allumiando com a sua flamma as Graças
da Princeza recem-nascida; e deposita-a entre as mãos da
Cidade de Florença: Os Destinos espalhão sobre
ella flores ás mãos cheias: o signo de Sagittario
indica o tempo do seu nascimento: o Genio da felicidade, deixando ver a
coroa, o sceptro, e as flores de liz, claramente manifesta que aquella
menina nasce para ser Rainha de França.»
«A Invenção dos outros quadros, que he
igualmente
poetica, e pittoresca, contém: a
educação da Rainha: o ajuste do seu casamento com
Henrique
[33]
IV.: O
casamento effectuado: o desembarque da Rainha em Marselha: a Cidade de
Lyão, que lhe sahe ao encontro: o nascimento do Delphim:
Henrique IV. se dispõe a partir para a guerra d'Alemanha, em
soccorro dos Marquezes de Brandeburgo, e de Neuburgo:
coroação da Rainha como Regente: Apotheose de
Henrique IV., e Regencia da Rainha: o seu governo: viagem militar da
Rainha á Ponte de Cé, para reprimir a guerra
civil: a troca das duas Rainhas, Isabel de França, que casou
com Filippe IV., e Anna de Austria, com Luiz XIII., em 9 de Novembro de
1615: felicidade da Regencia: maioridade de Luiz XIII.: fugida da
Rainha do Castello de Blois, onde seu filho a tinha presa: a Rainha
acceita a paz, e a conclue com seu filho: a mesma pa
IV.: O
casamento effectuado: o desembarque da Rainha em Marselha: a Cidade de
Lyão, que lhe sahe ao encontro: o nascimento do Delphim:
Henrique IV. se dispõe a partir para a guerra d'Alemanha, em
soccorro dos Marquezes de Brandeburgo, e de Neuburgo:
coroação da Rainha como Regente: Apotheose de
Henrique IV., e Regencia da Rainha: o seu governo: viagem militar da
Rainha á Ponte de Cé, para reprimir a guerra
civil: a troca das duas Rainhas, Isabel de França, que casou
com Filippe IV., e Anna de Austria, com Luiz XIII., em 9 de Novembro de
1615: felicidade da Regencia: maioridade de Luiz XIII.: fugida da
Rainha do Castello de Blois, onde seu filho a tinha presa: a Rainha
acceita a paz, e a conclue com seu filho: a mesma paz confirmada no
Ceo: o tempo descobrindo a Verdade. Alguns destes assumptos
são assaz triviaes, e parecem estereis; mas o grande e
fecundissimo Genio de Rubens soube achar
[34]
para todos as mais bellas imagens,
que se podião desejar.»
secção
ii.ª
Disposição.
«
A
disposição he pôr em boa
ordem as
idéas achadas pelo genio da Invenção,
a fim de compôr com
magisterio a scena de hum painel. Toda a
composição he historica, allegorica, ou mixta: a
que he historica tem por objecto representar hum facto, com as
circumstancias allegadas pelos historiadores: a que he
allegórica relata os acontecimentos metaforicamente;
exprimindo debaixo d'hum véo figurado, hum sentido diverso
da expressão literal: a mixta diz a verdade historica,
ornada ou corroborada com alguma agudeza da allegoria, que lhe sirva de
commento; e sem a qual não se poderia entender bem o que se
quiz dizer.»
[35]
Artigo I.
Da Disposição relativa ao
Grande
Genero.
«
A
Invenção, diz Du Fresnoy, acha os
convenientes objectos; e a Disposição os arranja;
mas a
distribuição ha de fazer-se de sorte, que o tom,
e a scena do quadro, á primeira vista, inspirem a principal
paixão no animo dos espectadores: isto he, que inspire
alegria se o assumpto for alegre; ou que infunda tristeza, e horror, se
for triste, e horroroso.»
«As composições sejão
conforme os
textos dos bons escriptores, e segundo os tempos, costumes, e
nações: a licença que Horacio concede
aos pintores, e aos poetas, deve ter os limites, que elle mesmo
prescreve; nada de sonhos, ou delirios extravagantes. Aquelles que
quizerem fazer progressos na Pintura historica, deverão
familiarisar-se com os livros, que podem elevar as suas
idéas; para,
[36]
nos seus vôos, não se servirem de alheias
azas, de que não conheção bem o uso,
nem a força.»
«Quando se escolherem as attitudes das figuras, devem-se
prever os
effeitos e harmonia das luzes, e cores; para collocar tudo de hum modo
natural, e vantajoso, e rejeitar o que póde fazer
confusão: imitando a tragedia, irmã da pintura, a
qual emprega todas as forças da sua arte onde recahe o forte
da acção.»
«Para o Heroe, e para as principaes figuras,
escolhã-se
attitudes cujos membros sejão grandiosos, amplos, e
desiguaes nas suas posituras; de maneira que os de diante contrastem
com os de traz, e todos sejão balanceados, ou equilibrados
no seu centro commum. A principal figura appareça no meio do
quadro, debaixo da mais viva luz, tendo alguma cousa notavel que a
distinga de todas as outras; nem seja affrontada por alguma
dellas.»
«Os gruppos sejão separados por hum vacuo, para
não fazerem confusão;
[37]
evitando nelles
repetições de fysionomias, e movimentos; ou
tendencia para a mesma parte. Entre varias figuras de frente esteja
tambem alguma de lado, ou de costas: advirta-se que o pezo da
composição não penda para hum
só lado. Evite-se o grande numero de figuras; mas se o
assumpto o pedir, attenda-se primeiramente á harmonia do
todo, e depois se cuidará em cada objecto; cedendo o
interesse de cada hum em particular ao bem commum de todos.»
«As figuras, que estiverem atraz de outras, não
terão graça se os
movimentos das mãos não forem perfeitamente de
acôrdo com as expressões dos semblantes. Evitem-se
os escorços, as acções violentas, ou
pouco naturaes, e tudo quanto for desagradavel á vista; como
linhas parallelas, ou figuras geometricas, que pela sua regularidade
fação máo
effeito nas composições; porque a boa
composição he huma bella desordem.»
[38]
«Não vos sujeiteis tanto á Natureza,
que
não possais fazer cousa alguma sem a ter diante dos olhos;
nem a abandoneis de modo, que tudo pinteis de pratica, porque hum tal
costume seria huma libertinagem anti-pittoresca.»
«Quando o quadro tiver huma só figura,
deverá
ella ser bellissima, e realçada com vivas cores. As
roupagens devem ter simplicidade, e natureza; tendo sempre
attenção ás qualidades das pessoas que
as vestem: as dos Senadores sejão amplas; as das donzellas
leves, e suaves; as dos rusticos grossas e estreitas.»
«Para encadear as luzes, he preciso ás vezes,
relevar
algumas dobras sobre espaços mais profundos.»
«As divisas das virtudes, ou distinctivos das sciencias; os
instrumentos de guerra, e dos sacrificios, pela sua nobreza, concorrem
muito para o ornato das figuras; mas o ouro, e as joias
sejão raros. Fuja-se dos ornamentos góticos;
porque são outros tantos monstros produzidos nos seculos
[39]
infelices. As
paizagens, ou architecturas nos fundos dos quadros, sejão
executadas segundo o costume e natureza do seculo,
nação, ou paiz da scena.»
«He mui difficil exprimir bem as paixões d'alma;
nem ellas
podem ser naturaes senão nas pessoas verdadeiramente
apaixonadas: he onde o Artista as deve estudar.»
«Fazei o maior esforço para dar a tudo
muita
graça, e muita nobreza; mas este dom dimana antes do Ceo,
que dos estudos.»
Leonardo de Vinci tambem nos deixou muitos, e optimos documentos sobre
a Composição. «Quando souberdes, diz
elle,
esboçar bem huma figura por todos os lados, aprendei a
compôr; e começai por dois combatentes de igual
valor, desenhando-os em varios aspectos, e em differentes attitudes;
depois fazei o valente brigando com hum cobarde, tudo bem estudado: e
aproveita-te das manchas casuaes das paredes, e dos marmores, que
representem fórmas
[40]
de batalhas, e de outras cousas. Estes
acasos suggerem muitas invenções á
fertil imaginação.»
«Depois de conheceres bem as partes de cada membro, e a
totalidade dos
corpos inteiros, nota, e observa com diligencia os seus particulares
movimentos; mas de modo que as gentes não
entendão que as observas, para que não mudem de
affectos: assim podes estudar a cólera, a ira, a dor, a
admiração, etc.; e tudo apontarás no
livro de memoria, feito de papel gessado, com ponteiro de prata; e
depois o tirarás a limpo para ser o teu mestre nas
composições.»
«Faze as figuras de modo, que entendamos pelas suas
mãos,
olhos, sobrolhos, e por todos os géstos do corpo, o que nos
querem dizer; como farião os mudos, ou os pantomimos para se
explicarem: attendendo porém á mais ou menos
gravidade das pessoas que fallão, e á natureza
das cousas que nos dizem. O Principe, ou o sabio, tenhão
differença
[41]
das gentes vulgares; com tanto, que os tristes sempre
pareção mais ou menos tristes, e os alegres
alegres.»
«Nos gruppos misturem-se objectos de todas as sortes;
mulheres, homens,
moços, velhos, animaes, arvores, montanhas, edificios, etc.,
etc.; observando com tudo, que os membros e géstos d'hum
velho sejão de velho, e os de hum moço
sejão de moço: os dos gordos ou magros;
preguiçosos ou diligentes, sejão como convem a
cada hum. Não se misturem muitos rapazes com muitos velhos,
nem moços com meninos, nem mulheres com homens, se a
historia o não pedir. Faze poucos velhos, porque os velhos
são mais raros; e separa-os dos moços, de cujo
genio não gostão; e onde não ha
uniformidade de costumes, falta a amizade, e esta falta motiva a
separação: mas se o assumpto for de conselho
prudente, fação-se poucos moços,
porque
não gostão de bons conselhos.»
«Se hum fallar a muitos, em materia persuasiva,
sejão os
seus géstos
[42]
apropriados á mesma materia; mas, se tratar de cousa
demonstrativa, tome com dois dedos da mão direita hum da
esquerda, tendo os dois menores fechados: a boca esteja hum tanto
aberta para parecer que falla; e o rosto voltado para o povo. Se
estiver assentado, pareça que se eleva hum pouco, direito, e
com a cabeça inclinada para diante; mas se estiver em
pé, tenha algum tanto o peito e a cabeça
inclinados para o povo; o qual povo tacito e attento olhe para o orador
com actos admirativos.»
«Se fizeres huma só figura, para evitar a critica
da
ignorancia, foge não só do escorço
total, mas tambem dos parciaes; porém na
multidão, e principalmente em batalhas, faze-os de todos os
modos. As cousas que fizeres n'hum quadro, não as repitas em
outro. Faze tudo contraposto: o feio ao bello, o fraco ao forte, o
velho ao moço. Observa o decóro; isto he, a
conveniencia da attitude, vestido, sitio, e as demais circumstancias
das cousas que queres representar: hum
[43]
Rei tenha o ár
magestoso, e esteja n'huma scena bem ornada; e os circumstantes
estejão com reverencia e admiração:
mas nos assumptos baixos seja tudo pelo contrario. As attitudes de hum
menino, de hum velho, de hum moço, e de huma mulher,
sejão todas diversas, e apropriadas, cada huma ao seu
actor.»
O Cavalleiro Sir Josué Reynolds, grande Pintor de retratos,
e tambem de historia, do ultimo seculo, ensinava aos seus discipulos
que se em hum quadro de historia entrassem alguns retratos, devia ser
de sorte que não parecessem retratos. «Hum pintor
retratista, lhes dizia elle, que quer fazer
algum quadro de historia, e não está bem
costumado, entra insensivelmente nas minucias, e dá hum
certo ár de retratos ás suas cabeças,
como fazião os pintores góthicos, antes que as
grandes idéas fossem bem entendidas, e praticadas. Hum
pintor historico pinta o homem em geral; o retratista imita hum
particular, e por consequencia defeictuoso modelo: por
[44]
tanto, a pratica
habitual em algum dos ramos menos elevados da Arte, póde ser
hum obstaculo para possuir perfeitamente o mais sublime.»
A variedade he huma das cousas mais recommendadas pelos authores: com
tudo, dizia Claudio Coelho, e dizia bem «
que
estando
já todas as bellas attitudes achadas, e executadas pelos
melhores artistas, nem por isso deveriamos escolher as más,
para evitar as repetições.»
Gerardo Lairesse, chamado por antonomasia o Raphael Hollandez, diz que
o Artista, para bem compôr, deve ter a mão
prompta, e obediente; boa memoria, e bem exercitada; juizo
são, e cultivado.
«Quando occorrerem boas idéas, não se
demóre a execução;
para evitar o pesar do esquecimento.»
«Em hum lugar tranquillo traçaremos o plano, e o
horisonte
do painel, e marcaremos com linhas os lugares, e as grandezas, que
devem ter as figuras, e os outros objectos, que occuparem o primeiro e
o segundo pavimento.
[45]
Recomeçaremos depois pela figura principal,
considerando qual he a paixão que lhe compete, a attitude
que deve ter, e o que devem fazer as outras; se voão, se
correm, se andão, ou se estão quietas; como
recebem a luz; de que sorte devem contrapôr, e destacar; e
tudo isto se delineará sobre outro papel.»
«Começaremos terceira vez a examinar quaes corpos
devem ser
nús, ou vestidos; quaes terão nobre caracter;
quaes commum; para depois passar á
eleição das côres
locaes.»
«O Pintor não deve ser plagiario; nem contentar-se
com ser
menos que Raphael.»
«Faça-se hum esquisso, bosquejo, ou rascunho da
historia que
se quer tratar; e depois leão-se os melhores historiadores,
que sobre ella escreverão: e aponte-se no esquisso o que
tiver esquecido. Note-se depois o paiz, o mez, e a hora em que se
passou a acção, para abrir, ou apertar mais a
luz, e enriquecer o fundo. O fim da acção deve-se
collocar no primeiro
[46]
pavimento, e o principio della nos longes. Indicai tudo no esquisso, e
tornai a ler vinte vezes o vosso assumpto. Cada dia pela
manhã imaginai que sois algum dos actores, e que estaes
transportado ao lugar da scena: marcai logo os gruppos, e as attitudes;
escrevendo o nome de cada personagem.»
«Ponde o heróe no centro do quadro, e em lugar
superior. O
maior defeito que póde ter hum painel, he o de
não deixar ver logo qual he o assumpto que representa. Se
hum orador que quizesse louvar Alexandre, empregasse as mais bellas
figuras da Rhetorica para elogiar o Bucéfalo, seria bem
máo compositor.»
«De ordinario ha no quadro tres pavimentos: no primeiro, que
he
luminoso, estão os principaes heroes; o segundo he sombrio;
no terceiro, outra vez claro, estarão os objectos menos
importantes: colloquem-se as grandes figuras atraz das pequenas: a luz
opponha-se á sombra, ou ao menos á côr
sombria.»
[47]
«Isto feito, fazei novo esquisso: desenhai os nús
do
natural, e as roupas de manequins, o mais acabado que fôr
possivel, dando a cada objecto particular a mesma luz geral de todo o
quadro, e os mesmos pontos de vista, e de distancia. Os desenhos, e
estampas são utilissimos para ver, e examinar como os
grandes mestres souberão fecundar, e enriquecer os
assumptos, que parecião mais estereis, e pobres.»
«O assumpto heroico deve ser nobre, e grave; o jocoso
engraçado; as bambochatas carregadas. Em hum grande concurso
devem haver diversas fórmas de corpos, e varias
proporções.
A paixão do heróe faz nascer muitas: quando hum
Filosofo discorre, os discipulos attendem. Deve-se imaginar, e indicar
em cada actor, a acção precedente, a actual, e a
consequente.»
«Pinte-se o que he honesto, e capaz de inspirar virtude; e
fuja-se do
que for lascivo, e cruel.»
Entre os bons escriptores da Arte
[48]
tem João Paulo Lomazo hum
dos primeiros lugares; e lê-se nos seus escriptos que o
famoso Leonardo de Vinci querendo pintar em hum painel muitas figuras
rusticas, e alegres, convidou huns poucos de camponezes
engraçados; e em quanto elles comião e
bebião foi-lhes contando as cousas mais loucas e ridiculas
do mundo; de modo tal que os fez rir desatinadamente: elle observou
tudo; e pintando-os depois com os mesmos géstos e attitudes,
provocava tanto a riso a pintura, como os mesmos originaes. Passando
depois aos preceitos, diz.
«O movimento interno he motivado pelas paixões da
alma; e o
movimento externo, que exactamente lhe corresponde, faz conhecer que
paixões são: por elle se conhece o que
está triste ou alegre, morto ou vivo; por elle se distinguem
o louco e o sabio; o humilde, e o soberbo. O conhecimento deste
movimento he tido na Arte por cousa mui difficil, e estimado como hum
dom celeste: este he
[49]
o furor pictorico com que deve nascer o Pintor; mas este furor ou
enthusiasmo ha de ter huma medida tal, que não toque no fogo
da impaciencia, nem no gelo da extrema regularidade.»
«Os movimentos naturaes são engraçados,
e os
contrafeitos são desengraçados; mas as mesmas
paixões fazem effeitos varios em diversas pessoas segundo os
seus temperamentos: os movimentos do melancolico, que he
térreo, serão pendentes e acanhados; mas o
colerico todo se retorce, como o fogo de que he composto. Todo o corpo
concorre para a expressão das paixões; mas
principalmente os olhos, que são como as janellas da alma:
elles mostrão o prazer, o abatimento, o enfado, a
severidade, a amenidade, a colera, a admiração,
etc. etc. Depois dos olhos e do rosto, as mãos
são as servas, e as interpretes da alma: os seus infinitos
movimentos explicão o desejo, a esperança, a
supplica, o horror, os ameaços, e tantas outras cousas: com
[50]
as mãos
tememos, perguntamos, approvamos, recusamos, duvidamos; e podemos
concluir que assim como as mãos supprem nos mudos a falta da
voz articulada, tambem não devem contribuir pouco para
fallar huma linguagem muda, qual a da Pintura.»
«Não se pódem dar regras precisas para
exprimir
todas as paixões, e para as variar sempre; porque a obra
seria infinita.
Quintiliano he de
parecer que, a
pesar da sua difficuldade, póde-se achar hum caminho que nos
conduza a esta parte importantissima da Pintura, e da Rhetorica; e que
este caminho he, como já dissemos, o estudo da Natureza.
O
Domenichino, que foi optimo nas expressões, estudava-as
diante do espelho, depois de entrar elle mesmo nas paixões
que queria imitar. Horacio he tambem de parecer que os
movimentos se exprimirão muito melhor, e serão
mais naturaes, se o Poeta, (ou Pintor, que neste caso he o mesmo)
imaginar que se acha no mesmo estado,
[51]
em que se
deverião achar as pessoas verdadeiramente apaixonadas. He
preciso, diz tambem Quintiliano, que sejamos os primeiros a sentir huma
paixão, se quizermos commover os
corações alheios: mas como? Formando-se
fantasmas, e imagens das cousas ausentes, como se effectivamente as
tivessemos diante dos olhos; e aquelle que conceber mais vivamente
aquellas imagens, exprimirá melhor as
paixões.»
Entre os mais celebres escriptores da Arte ha hum
Portuguez, de quem os estrangeiros se tem aproveitado, e nós
apenas conhecemos: he Francisco de Hollanda, que foi Pintor d'El-Rei D.
João III. Queixava-se elle, no seu livro, de que em Portugal
não se dava a devida estimação
á Pintura, por culpa talvez dos Pintores, que se
contentavão só com a mantença, ou
não sabião exerce-la com primor. Para remediar em
parte aquelles inconvenientes, aponta algumas advertencias, e faz
discretas observações.
«O Pintor para ser perfeito ha de
[52]
ter, diz elle, o genio dentro em
si mesmo, como a semente tem o fructo. Na puericia o
deixará ver; na adolescencia excederá os outros,
e sonhará com pinturas. Deve ter espirito magnanimo; porque
sem elle nunca fará obras sublimes: ha de estudar muito o
Antigo
para a grande
invenção, graça, decóro; e
escolher do melhor o optimo, sem confusão; ha de evitar os
grandes defeitos, (que os pequenos passão bem) e fazer os
erros com o maior acêrto possivel.»
«A nobreza, e propria casa da Pintura he saber reunir bem a
natureza
dispersa, e rejeitar o que não convem; e se esta escolha for
bem feita, terá feito com isso a melhor parte da
obra.»
«Antes de começar a empreza ha de ter a
idéa da
obra, como vista em sonho, e pintada na fantasia.»
«As figuras não occupem confusamente toda a taboa;
mas
fiquem intervallos para darem despejo e clareza á obra; e
para os olhos dos espectadores descançarem. As attitudes
sejão
[53]
graves e modestas; e que humas figuras não damnem as outras,
(antes se possa pôr, que tirar alguma cousa) e todas
fação com efficacia os seus officios. He
necessaria tanta arte para fazer bem as figuras ociosas, como as
occupadas. O menimo seja roliço, o mancebo ousado, o velho
prudente, o doente languido, o morto hirto; o que corre
pareça que corre, e o que anda pareça que se
move.»
«Faça as idades, physionomias, cores de carnes,
movimentos,
mãos, pés, tudo diverso e contraposto; hum de
perfil, outro de costas; este voltado para baixo, aquelle para cima;
aquell'outro deitado, escorçado, etc. Figuras
escorçadas sejão as menos possiveis. As roupas,
os edificios, e os outros accessorios sejão os que competem
ao assumpto; mas não pareça que se poz alli todo
o saber.»
«Se o assumpto, ou imagem for triste, não o
representemos em
jardins, ou scenas alegres; antes pareça que os mesmos
brutos, arvores,
[54]
penedos, e até os Ceos sentem a sua tristeza. A
dôr da pessoa
aflicta
não se mostre
com lagrimas; mas no semblante angustiado, no vestido, na
solidão. O doente não pareça
são, nem o morto semivivo, nem o que dorme acordado:
escolha-se de tudo o mais formoso, e grave para se imitar;
encostando-se sempre ao
Antigo.»
«O primor da Pintura consiste tanto no que se faz, como no
que
senão quiz fazer; antes no que deixou de fazer se conhece
melhor o grande pintor, assim como o ignorante em encher tudo de
arvoredos, rios, caminhantes, castellos, cidades, e paizagens: o mais
santo, e louvavel he fazer poucas figuras, pouco rumor de paizes, menos
ainda de edificios; mas o pouco seja tal que valha mais que o muito:
porque este he o fazer de avisado e gravissimo mestre, e o outro de
obreiro e aprendiz. O que dizemos do total, appliquemos tambem a cada
particular objecto: nelle não se faça cousa que
se não desejasse
ver da maneira que está feita;
[55]
porque esta he a admiravel doutrina
da Arte.»
O mesmo Author escreveo certas maximas sobre o que se deve
seguir, e o que se deve evitar na Arte da
Composição. «Para seguir: Despejo de
pouca obra;
formosura bem escolhida; decóro; deixar de fazer muitas
cousas; bello ár em todas as cousas; diversidade nas
figuras; ousadia nas sombras; antigas, e escolhidas novidades; escolha
de architectura; nû perfeito, e honesto; bons pannos; bom
encaixe de pescoço; mãos tão boas como
o rosto; pés tão bons como a figura; bons
animaes; bons cavallos; gravidade, e magestade; etc. Para evitar:
Affectação; confusão; muita obra;
fealdade; desproporção; desár nas
figuras; rostos repetidos; o muito vulgar; máos
nûs; muito panno; más mãos; pouca
reverencia; indiscrições; etc.»
Rugério de Piles, amigo de Carlos du Fresnoy, e o melhor
commentador do seu poema de
Artegraphica, tambem
enriqueceo a biblioteca da
[56]
Arte com doutas
observações suas: «A boa
disposição, diz elle, forma os gruppos; e o
verdadeiro modo de gruppar acha-se em Raphael, Julio Romano, Polidoro,
e outros grandes mestres. A escolha das bellas attitudes faz a maior
parte das bellezas do gruppo: a contraposição faz
o resto. Deve haver contraste não só nas figuras,
mas tambem nas cousas inanimadas; havendo em todos os objectos huma
opposição de linhas, e contornos, pela qual
elles
se fação valer huns os outros,
e augmentem a graça, que he tão necessaria em
tudo.»
«O modo de deitar as prégas tambem pertence
á
composição dos gruppos: o primeiro requisito das
roupas he que indiquem o que ellas cobrem, de sorte que se
conheção as proporções, e a
elegancia das fórmas das pessoas, que as vestem; por tanto
convem que antes de vestir a figura se desenhe toda nûa. As
dobras que se encruzão com os membros do corpo
não pareção, por fortes,
tão profundas
[57]
que possão penetrar as carnes. As pregas
sejão poucas, e grandes; mas se alguma vez se fizerem
miudas, siga-se a maxima dos antigos, que em tal caso as
collocavão aos lados dos membros, e não em cima
delles. As grandes não só hão de
contrastar o nû, mas tambem humas as outras, para terem vida,
e movimento: a contraposição he huma especie de
guerra, que anima tudo; mas he necessaria muita prudencia,
principalmente nas figuras em pé, aonde as
contraposições são muitas vezes
inverosimeis, porque o peso da roupa a faz cahir direita»
«A ordem das pregas, sendo hum effeito dos movimentos do
corpo, tambem
dá vida aos mesmos membros, que parecem move-las: huma
discreta repetição de pregas, em ordem circular,
ajuda muito o bom effeito dos escorços. As roupas devem-se
sempre estudar do natural: as do manequim parecem immoveis, e he
preciso que se lhes tire aquella apparencia: os pequenos figurinos
[58]
vestidos de papel
molhado podem servir para o todo de huma
composição, e não para cada objecto de
persi.»
Leão Baptista Alberti affirma que no compôr, ou
distribuir bem os objectos consiste todo o engenho. «A
varidade deleita
tanto a vista, como o ouvido, e o paladar. Os espectadores n'hum
quadro, inda que estejão quietos, exprimão os
seus sentimentos. A cabeça, a fronte, e todos os membros do
que está triste descahem.»
«De sete modos se inovem os corpos: para cima, e para baixo;
para a
direita, e para a esquerda; para diante, e para traz; e em fim girando
ao redor: todos estes movimentos entrem nas
composições: huns vão, outros
venhão. Os movimentos sejão naturaes e suaves: os
artistas fogosos cuidão que as attitudes violentas
são mais vivas, e enganão-se. Os cabellos, e as
roupas tenhão tambem os sete movimentos; mas os ramos das
arvores, agitados pelo vento, correndo
[59]
todos para a mesma parte,
são bellissimos. Quando quizeres compôr, pensa,
lê, esquissa, modéla, e pede conselho aos
amigos»
e
talvez aos inimigos, porque não
lisongeão.
«O Pintor deve ser bom, honesto, civil, e douto nas bellas
Artes; deve
ler poetas, historiadores, oradores, e sabios, para poder bem
inventar.»
«A acção, diz o Raphael Francez
Nicoláo Pusinno, he a voz da Pintura; sem ella
não ha persuasão. A Arte sublime requer quatro
cousas: 1.ª materia ou argumento: 2.ª conceito:
3.ª estructura ou
composição: 4.ª estilo. O Argumento deve
ser
grande, heroico, e delle se devem desterrar as cousas miudas. Conceito
he hum pensamento alto, elevado, como o de Homero para o seu Jupiter,
que só com o pensamento
movia a terra, o Ceo, e o
mar irado. A composição seja natural,
e não
exaggerada, ou extravagante. O Estilo he hum modo particular de pintar
procedido
[60]
do genio de
cada hum, e que nasce naturalmente do seu engenho. Muito agrada a
novidade na Pintura; mas esta novidade não consiste em achar
assumptos ou motivos novos, senão em compor os antigos por
novo modo. Se o Pintor quizer que o admirem, não se
faça estranhamente singular; mas procure fazer tudo com
prudencia, e
perfeição.»
«A composição de hum quadro (diz
Richardson) he
de grandissima consequencia; he a primeira cousa que se apresenta
á nossa vista, e que nos póde prevenir em seu
favor, ou desgostar-nos delle; por tanto, as figuras de hum painel, e
os seus fundos, devem compôr massas de luz, e de sombra, que
mesmo de longe, sejão gratas á vista.»
«Em cada painel ha de haver hum sitio mais rico, e brilhante;
e alli he
o lugar da principal personagem, e da acção mais
notavel, aonde tudo deve ser mais bello, e bem acabado. Os outros
objectos sejão todos subordinados a este; mas cada hum
delles
[61]
ha de ter huma parte
que domine as outras, e se deixe logo ver.»
«Se o Pintor fôr obrigado a collocar alguma das
figuras
principaes a hum lado, e em meia luz, faça-a distinguir pela
côr viva do vestido, como fez o Ticiano no Bacco e Ariana; ou
de outra maneira discreta, e artificiosa.»
«O Pintor deve saber perfeitamente a historia que quer
pintar, e
meditar depois se póde accrescentar algum incidente de sua
invenção, que não seja inverosimil.
Póde tambem ás vezes (mas raras vezes) apartar-se
da verdade natural, e historica, como fez Raphael, muito discretamente,
no Cartão da Pésca miraculosa, onde pintou huma
barca muito pequena, á proporção das
figuras, a fim de não encher o painel com hum barco, ou de
não fazer as figuras pequeninas; cousa que tornaria a
composição mesquinha: tambem se apartou o mesmo
author da verdade historica, no outro Cartão do Paralytico,
aonde a architectura da entrada
[62]
para o Templo he de sua
invenção, e não como consta que ella
era; mas aquella licença foi muito feliz, porque deo hum
ár mais nobre, e magestoso a todo o painel. Estas
excepções da regra são permittidas;
mas poucas vezes.»
«Cada painel historico ha de representar hum unico instante
de tempo, e
seja quelle que for mais vantajoso. Nenhum objecto, por excellente que
seja, interrompa a attenção devida ao
heróe. Não se introduzão figuras, ou
ornamentos superfluos; antes pelo contrario, conceda-se alguma cousa
á imaginação, e ao desejo dos
espectadores. Em tudo haja grande variedade.»
«Bardon affirma que o pittoresco de huma
composição consiste em huma singular, e exquisita
escolha dos effeitos da Natureza, ajudada pelo gosto, e espirito
sustentados pela razão. O Heroe do quadro deve brilhar alli,
como hum monarca entre os seus cortezãos, e attrahir as
vistas do espectador por algum accidente
[63]
de luz, ou particular effeito de
côr; ou tambem por alguma privação da
mesma luz, manejada com arte.»
«O Pusinno, e Paulo Veronez modelavão a
composição inteira, giravão ao redor
della, e escolhião o ponto de vista, e o aspecto mais
vantajoso, para o seguir, e imitar. A luz principal deve ser unica; mas
para que o effeito do quadro não pareça de
lanterna, ou luz de noite, hajão alguns reclamos della nas
principaes partes da composição; sempre em
marchas diagonaes.»
André Felibien, tratando da
composição, inculca como o mais raro e perfeito
exemplo desta parte essencial da Arte, o precipicio dos gigantes
pintado por Julio Romano no palacio do T. Como Julio era tambem o
architecto daquelle palacio, mandou fazer o salão redondo, e
lizo como hum forno: os mesmos alizares, e a chaminé,
erão feitos á vontade da pintura. Toda a casa
parecia hum só painel representando huma vasta campina por
onde muitos gigantes levão
[64]
montanhas ás costas, e vão
colloca-las em cima d'outras para dar hum assalto ao Olimpo.
«A derrota
começa: os gigantes maiores estão no primeiro
pavimento já prostrados por terra: alguns jazem debaixo das
montanhas; e Briarêo está quasi todo soterrado.
Pelo rôto de huma gruta se avistão muitos ao
longe, que fogem amedrontados, e são colhidos pelos raios de
Jupiter. No mesmo tempo, os templos, e os grandes edificios cahem
arruinados em cima de outros; ficando a chaminé, entre
paredes e columnas precipitadas, fingindo parte da ruina; e
tão artistamente executada, que quando se accende o lume,
parece que ardem os gigantes, e que he huma boca do inferno, por onde
Plutão, em companhia das Furias, se vai precipitar no
Tartaro.»
«Quando se compõe, deve-se deixar o genio em plena
liberdade; e só depois de feita a
composição he que se ha de consultar a natureza;
e depois o
Antigo, para emendar por elle
[65]
os defeitos do natural.
He preciso variar todos os objectos, mas sem violencia nem
affectação: ha de parecer que as figuras se
collocárão por si mesmas; e nisto consiste a
graça da
disposição.»
Antonio Rafael Mengs, a quem os artistas modernos chamão o
Raphael Alemão, ensina «que o Pintor, antes de
começar qualquer composição, deve-se
fazer senhor não só daquella passagem historica
que quer pintar, mas tambem de toda a historia que lhe he relativa,
para conhecer perfeitamente as indoles de todas as personagens que ha
de pôr na scena; o que se não poderia fazer com
muito acerto sem as conhecer a fundo, e sem saber com quaes vistas se
movêo a acção; por que se deve
manifestar, na pessoa que a está fazendo, e na sua
fysionomia, o seu proprio caracter, e qual seja o motivo porque a faz.
He preciso tambem transferir-se ao tempo, ao lugar, e aos usos das
gentes que se representão; e dar-lhes os vestidos proprios
[66]
das suas
nações, e dos seculos em que viverão,
ou senão constar bem, ao menos os das
nações com quem tratavão, ou donde
procedião.»
«Em quanto ás contraposições
nas
figuras, siga-se como regra geral, que, se hum braço
avançar, a perna daquella parte, e o outro braço
devem recuar: os dois braços nunca hão de
avançar, porque ninguem poderá recuar ambas as
pernas sem cahir: a cabeça incline-se para a parte do
braço levantado, e volte-se para onde a mão
estiver mais avançada: nenhum membro deve formar angulo
recto; nem dois membros hão de ser reciprocamente
parallelos. Huma das mãos nunca se deve achar defronte da
outra; e nenhuma extremidade esteja na mesma linha vertical, ou
horisontal de outra; nem se encontrem duas mãos e hum
pé, ou dois pés e huma mão, collocados
em linha recta.»
«O gruppo he huma união de figuras que se
hão de
encadear humas com outras, e em numero impar;
[67]
como 3, 5, 7, ou ao menos seja
composto de dois numeros impares como 6, 10, 14.
[9] A
composição do gruppo seja piramidal, mas de
planta redonda,
como huma fogueira: as grandes
massas hão de estar no meio: os lugares das figuras formem
linha curva, e não recta: não
concorrão duas cabeças na mesma linha horisontal
ou vertical: os dois braços ou as duas pernas da mesma
figura nunca tenhão escorço igual; e a que nos
mostra a palma de huma das mãos, deixe ver a costa da
outra.»
«Appareção as partes mais bellas dos
corpos, como
as juntas, o pescoço, as espaduas, os cotovelos, pulsos,
joelhos, costas, e peitos; e isto por dois motivos; primeiro, porque
nas extremidades, e articulações pode-se deixar
ver muita expressão, e muita sabedoria; segundo, porque os
[68]
peitos e as espaduas são
as partes mais grandiosas do corpo, e as mais capazes, por isso mesmo,
de reunir no gruppo grandes massas de luz, e de côr
agradavel, qual he a das carnes.»
«Nas mulheres, todas as partes nuas, que se podem ver
honestamente,
são mui gratas á vista; mas algumas, como os
peitos, parecem mais bellas não estando de todo
descubertas.»
«Quando se combinão varios gruppos tambem devem
ser em
numero impar, ou hum inteiro no meio do quadro, e duas ametades aos
lados. A figura mais nobre esteja sempre no do meio, e as mais notaveis
aproximem-se ao heróe; mas este esteja no segundo pavimento,
e não no primeiro, para ser como o centro no circulo dos
espectadores. A tortuosidade na planta do gruppo, póde ser
concava, ou convexa; porque de ambas as sortes se póde
collocar no meio o objecto principal, e o mais brilhante. Inda que se
deva fazer
[69]
alardo das
mais bellas partes, evitem-se com grande cuidado as
réplicas; porque sem
a variedade
não ha agrado. Quando fôr possivel,
metão-se na composição pessoas d'ambos
os sexos, e de todas as idades; o que produzirá huma
varidade muito grata nas expressões, e nas
acções.»
«Corregio distribuia assaz bem os gruppos; mas dispunha-os
antes para
produzirem bellas massas de clar'escuro, que para exprimir quaesquer
affectos. Foi admiravel nos escorços, e he de crer que fazia
figurinos de cera para todas as composições dos
téctos, a fim de poder observar bem os contornos, e o
clar'escuro das figuras escorçadas; e este era o forte da
sua composição. Fugia de deixar ver nos corpos
que pintava, as partes rectas; e tanto, que raras vezes fez
cabeças que não fossem vistas debaixo, ou de
cima; e nunca de frente.»
«O mais egrégio Pintor cujas obras se conhecem,
Raphael, foi não
[70]
só sublime, mas singular na
composição; e esta he a parte da Pintura em que
foi mais sabio. Elle a inventou; porque nem entre os poucos quadros
antigos que pôde ver, nem entre os modernos, achou perfeito
modélo para imitar. A principal cousa que se deve observar
em hum quadro he a invenção; isto he, a
expressão verdadeira de hum assumpto: e nisto não
teve igual. Nenhuma das figuras que elle poz em scena poderia servir em
assumpto de diversa expressão. O pensativo, o alegre, o
melancolico, o colerico, todos se achão na sua competente
situação: nem a expressão perfeita se
acha só em cada figura; mas todas ellas, e os episodios,
correspondem perfeitamente á paixão da principal
personagem. Mostrou grandissimo talento na variedade com que soube
exprimir huma grande paixão, fazendo ás vezes
intervir muitas figuras em hum movimento parcial; e isto não
por acaso, ou por encher o quadro, mas pelo pedir assim a
força da expressão.
[71]
Nos seus quadros ha de ordinario muita
variedade de cousas, sem contradições;
paixões violentas, sem deformidades; mostrando a
expressão algumas vezes, até no movimento de hum
dedo, e no effeito que fazem as paixões sobre as partes
tendinosas, e aponevroticas. Muitas cousas que em outros
serião defeitos, erão nelle grandes bellezas pelo
modo com que as accommodava.»
«Entre hum quadro de Raphael, e o de qualquer outro Pintor ha
a mesma
differença, que haveria entre hum heróe como
Alexandre, e hum comediante que o quizesse representar; e isto, porque
os outros tocão algum dos extremos nas attitudes, e nas
expressões; mas Raphael dava ás suas figuras os
proprios movimentos da alma: para esse fim seguia huma pratica diversa
do costume. Os Pintores põem ordinariamente toda a sua
attenção nos gruppos, e na
composição de cada figura, segundo as
contraposições, e as regras da Arte; porem elle
começava por figurar
[72]
na sua mente o total da sua
historia, e todos os objectos que poderião concorrer para a
expressão geral, e depois he que tratava de cada figura em
particular, elegendo os membros que havião de cooperar,
segundo as paixões do animo; deixando mais ou menos quietos
os que nellas não tinhão parte: observando o
caracter de cada figura; porque hum Apostolo, ou hum Filosofo
não se ha de mover como hum soldado, nem huma honesta
donzella como huma meretriz. Assim he que demonstrava, tanto as
paixões internas que se indicão pela testa,
olhos, nariz, boca, dedos; como as externas que movem o corpo todo;
porque o seu excesso não admitte
moderação. Nunca fazia as
acções completas; porque, se hum homem que
caminha não tem acabado de formar o passo, está
em movimento, tem vida, e sabemos o que faz; mas se tivesse acabado o
passo não saberiamos o que tinha feito nem o que hia fazer.
O Pintor de Urbino tinha de mais
[73]
a louvavel facilidade, e huma certa
negligencia apparente, tão difficil de conseguir; como
tambem a arte de occultar com felicidade hum membro, huma
mão, hum pé; ou para não mostrar
partes ociosas, ou para não affrontar as partes principaes,
ou em fim para evitar o máo effeito que poderião
alli fazer.»
«A composição he em geral de duas
especies; a
expressiva, e a de grande effeito: nesta, que he mais propria para as
grandes maquinas, como cupulas, tectos, etc. forão
excellentes o Corregio, o Lanfranco, Pedro de Cortona, e Lucas
Jordão; ella agrada muito, e a muitos. Em quanto
á expressiva, que sem duvida he a mais sabia, bella, e
difficultosa, nenhum chegou a Raphael; mas o Domeniquino, e o Pusinno
approximarão-se muito. Se n'huma
composição Raphael fizesse as figuras, Pusino o
fundo, e Domeniquino os rapazes, seria então perfeitamente
expressiva. Bem se vê que a parte principal toca a Raphael, e
que elle por
[74]
consequencia, foi na expressão o maior de todos os
Pintores.»
O Abbade João Baptista Dubós, nas suas
Reflexões
criticas sobre a Pintura deixa ver em muitos lugares, que
pouco entendia da Arte; mas como era sabio, e tinha lido bons authores,
diz tambem algumas cousas attendiveis. «Elle observa que ha
assumptos
excellentes para a Poesia, que nem por isso são bons para a
Pintura. A historia Sagrada, a Grega, e a Romana fornecem assumptos
pittorescos, e interessantes; assim como a historia Franceza
será bem acceita em França, e a Portugueza em
Portugal. O sacrificio de Efigenia não he proprio para
figurinhas de huma paizagem. Venus, e as Graças
não se devem fazer colossaes.»
«Le Brun servio-se bem da allegoria mixta quando pintou Luiz
XIV. em hum
carro, guiado pela Victoria, atropelando as Cidades e os Rios da
fronteira Hollandeza. A Hespanha, querendo suspender-lhe a marcha;
[75]
recebe alguns tiros, e deixa cahir a mascara. A
prudencia em taes composições he mui precisa;
porque nada faz dizer tantas tolices como o excessivo desejo de parecer
discreto, e sabio.»
Claudio Watelet compôs hum elegante poema sobre a Pintura:
Publicarão outros dois, o Abbade de Marsy, e o Panegyrista
de Pedro Mignard: todos tres fallarão muito bem na
composição;
mas como o que sobre ella discorrerão se encontra com o que
já temos dito, ou vamos dizer, não augmentaremos
este volume com inuteis repetições. Pelo mesmo
motivo omittiremos tambem o que a este proposito disserão Le
Comte, e outros muitos.
Daniel Webb, era mais versado nas letras humanas, que practico nas boas
artes: em Roma frequentou a casa de Mengs, e aproveitou-se dos seus
dictames: apesar disso, a sua doutrina, inda que corroborada com
sentenças de authores gravissimos, não carece de
sofismas. «Elle diz
[76]
que a Historia pintada tendo muita correlação com
o
Poema dramatico podemos alli considerar a scena, e a poesia. A
excellencia da primeira consiste em huma agradavel
disposição das figuras que compõe a
acção.»
«Se de noite, prosegue elle, levantarmos os olhos aos Ceos, a
nossa
attenção não será attrahida
por algumas estrellas espalhadas cá, e lá; mas
recahirá logo sobre aquellas que estão gruppadas
em constellações; e por esse motivo as
composições bem gruppadas de Lanfranco, e do
Cortona, agradão muito mais, que as dispersas do
Domeniquino; inda que este fosse maior Pintor que os outros.»
Francisco Xavier Lobo, Pintor Lisbonense, do ultimo seculo, era amigo
de pensar, e dado á leitura e á
especulação da Arte: elle escreveo alguns
dialogos criticos sobre a Pintura pratica, e especulativa. Authorisa-se
com Leonardo de Vinci para exigir que o Pintor historico nenhuma cousa
ignore do que pertence á
[77]
Arte; porque no painel se ha de
achar tudo; figura, architectura, paizagens, fructos, flores, etc.: e
por isso aqui fallarei, diz elle, do que alguns estranharão
que eu falle «Quando o Pintor distribuir as figuras na sua
composição deve lembrar-se logo das luzes, e
côres que lhes ha de dar; dando-lhes attitudes, e movimentos
taes, que não embaracem o effeito do clar'escuro. He
evidente que huma cabeça voltada contra a luz não
faz o mesmo effeito que voltada para ella. O objecto principal
não se ponha da parte da sombra. Nas figuras vestidas
pareça sempre que ha algum ár entre a carne e as
roupas; mas nas Santas Imagens deve-se usar isto com muita
moderação para que não
pareção
dançarinos; antes inspirem affectos de
devoção.»
«Tem muitos authores feito os seus paineis seguindo dois
pensamentos,
ambos possiveis; hum de romper com claro por detras de algum corpo
escuro que esteja no primeiro pavimento; isto he, logo na entrada do
[78]
painel; outro de dar a
força da luz nesta mesma entrada, e hir por degraos abatendo
os claros para o fundo: o primeiro me parece bom; o segundo melhor;
porque, não affecta sabedoria de arte. Bento Coelho foi sem
duvida hum grande compositor; e com tudo, são raros os seus
quadros que tenhão figuras tenebrosas na entrada, as quaes
muitas vezes parece que furão e recortão o
painel.» Atéqui o nosso Lobo; mas a passagem
parece-me digna
de algumas observações.
O escuro, diz Mengs, he melhor que o claro para se pôr
adiante; porque, além de outras razões muito
attendiveis, por muito claros que se fação os
objectos pintados, sempre parecerão fracos, e pouco
brilhantes, em comparação da luz natural; e por
isso, os habeis artistas sempre fizerão alguma massa escura
no primeiro pavimento. Estas regras porém, tem como todas,
bastantes excepções. A regra mais universal que
se possa seguir, he, segundo me
[79]
parece, que no primeiro pavimento ha
de a força da massa ser toda opposta ao tom do fundo do
quadro: se o dito fundo for claro destacará bem, e
parecerá visinha a nós huma massa escura; com
tanto que seja moderada, e suave nos contornos; mas se o fundo fosse
escuro, hum corpo tambem escuro, inda que estivesse no primeiro
pavimento, pareceria estar mui longe, e não faria effeito
algum. Bento Coelho, que fazia os fundos quasi pretos, punha sempre o
branco no primeiro pavimento, o vermelho ou amarello no segundo, e
assim hia degradando. Raphael usou tambem pôr os brancos, e
os maiores claros adiante do painel, ainda mesmo quando os fundos
não erão muito escuros; o que se póde
ver na Transfiguração, na Batalha de Constantino,
na Escóla de Athenas, e em quasi todas as suas
composições; mas os Venezianos, e muitos
Francezes, como Le Brun, em algumas batalhas de Alexandre, e no Triunfo
de Jerusalem, tem posto a
[80]
diante corpos sombrios; o que sendo feito em paineis de muitas figuras,
e com sabio artificio, facilita muito o bello effeito do todo.
«D. José Nicoláo de Azara diz que a
Composição he a arte de bem collocar as partes
que compõe hum todo. O Poeta póde representar a
sua acção em varios pontos; mas o Pintor
só póde escolher hum unico ponto em toda a
acção, e nelle ha de representa-la precisamente e
quasi concentra-la, sem tratar do que o precede, ou do que o segue.
Este ponto deve ser o mais essencial da historia, pelo qual se entenda
facilmente o resto; e, como dizia Mengs, a historia ha de se explicar
pelo quadro, e não o quadro pela historia.»
«Por expressão entendo a arte de patentear
convenientemente
os affectos por meio de toda a sorte de sinaes exteriores. A
união da alma com o corpo, he tal, que não
póde nella haver movimento algum, que não excite
nelle o seu movimento correspondente. Devendo pois o Pintor
[81]
dar acção ás suas figuras, estas devem
exprimir nos seus semblantes, e em todo o resto dos seus corpos
aquellas alterações, que são proprias
das paixões que lhes suppomos; rejeitando porém
as que prejudicarião a graça e a belleza, ou
fazendo-as de hum modo agradavel, visto que, entre os extremos de
todas, ha hum grande numero de gradações mais ou
menos violentas. O Laoconte, e seus filhos, exprimem a mais dolorosa
situação, que a humanidade possa soffrer, sem
prejudicar com os seus gestos, e convulsões a belleza das
formas: deixando-se ver no pai, huma grande alma superior á
sua desgraça; e nos filhos, que sentem iguaes dores, e pedem
soccorro ao pai sem movimentos, que desfigurem a belleza de seus
corpos, e sem faltar no mesmo tempo á força da
expressão. O gruppo da Niobe he outro exemplo da nobre
maneira, com que os Gregos exprimião as
situações mais violentas sem alterar a formosura
dos seus objectos: cousa
[82]
verdadeiramente grande, e
difficil! Os Gregos possuião esta arte com tal magisterio,
que nas suas estatuas, parece que elles não se
occupavão com a expressão; porque lhes
davão sempre hum tal repouso, que mostrão toda a
belleza sem alguma alteração; e com tudo, cada
huma diz o que deve dizer, pois que hum suave e doce movimento da boca,
dos olhos, ou sómente a acção, exprime
o affecto,
encantando a alma, e os sentidos. Entre os modernos houverão
muitos que só tinhão por expressivas as figuras
espritadas; fazendo com muito trabalho muito pouco effeito.»
«O celebre Winckelmann observou que os antigos
tinhão
adoptado duas regras principaes de
Composição, das quaes nunca
se affastavão, primeira a economia das figuras, segunda a
moderação nas suas attitudes. Em quanto
á primeira, parece que a regra de Sophocles de nunca
pôr na scena mais de tres figuras, era tambem a regra dos
Pintores. Os Antigos sabião exprimir muito com
[83]
pouco. Theon pintou a lucta de hum
só guerreiro contra muitos adversarios, sem pôr no
painel mais que o heroe.»
«Do baixo-relevo de Meleagro, e de varias pinturas
d'Herculano, consta
que elles sabião bem gruppar quando lhes convinha; mas
não gostavão da confusão: tambem
conhecião o contraste ou
contraposição, como os poetas, e oradores
conhecião a
antithesis; mas
fazião-a natural, como nascida do seu assumpto, e
não como filha de hum grande esforço do genio,
como fazem muitos artistas d'agora, para os quaes o contraste he tudo,
e desculpa tudo.»
«As Personagens d'huma composição
devem, em
primeiro lugar, ser discretas, e tranquillas; e não
hão de ter movimentos violentos, e convulsivos, como as do
celebre La Fage: segundo não se ha de nella introduzir cousa
alguma que seja inutil,
«As Personagens d'huma composição
devem, em
primeiro lugar, ser discretas, e tranquillas; e não
hão de ter movimentos violentos, e convulsivos, como as do
celebre La Fage: segundo não se ha de nella introduzir cousa
alguma que seja inutil, ou ociosa: terceiro tudo deve ser
diversificado, sem repetição de movimentos,
attitudes, etc.»
[84]
«Aquelle que escrevendo ao seu amigo, lhe dizia «Eu
não
tenho tempo para me exprimir mais laconicamente» sabia bem,
que o
pouco, e bom, he mais difficil, que a grande superabundancia.
Tiepolo
[10]
fazia mais em hum dia, que Mengs em huma semana; mas a obra
de Mengs, inda que menor em quantidade, valia mais.»
«O Juizo final de Miguel Angelo, e a Batalha de Constantino
de Rafael,
são duas grandes escólas de
Composição.»
«A má distribuição dos
objectos
conduzio o Caravagio, e o Hespanholeto a huma maneira negra, e mui
desagradavel: os que se collocão com intelligencia, como
recebem melhor as luzes, são mais claros e mais distinctos;
porém os máos conhecedores
[85]
daquelle tempo
admiravão aquella maneira negra, e a preferião
á dos Caraches, e á do mesmo Guido, só
porque erão claras.»
«Pedro Mignard examinando huma das Sagradas Familias de
Raphael, da
collecção Real de França, observou que
sendo a grandeza da expressão a cousa mais admiravel
daquelle Artista, e a que lhe déra o titulo de Divino,
começaria por louvar a grande modestia, e respeito que se
admira no rosto, e gesto de Nossa Senhora; o amor desta Santissima
Mãi para seu filho, e a ternura do Filho para sua
Mãi; a veneração de Santa Isabel, e a
profunda humildade de S. João; o repouso de S.
José, e o gosto acompanhado de
admiração tão bem exprimido nos
semblantes dos dois Anjos. Elle disse que naquelle quadro se via bem a
elevação do espirito, e o grande juizo do Author,
considerando de que maneira elle se conduzira naquelle trabalho, e a
escolha que fizera de quanto ha mais bello para
[86]
ornar com decóro as
suas Figuras.»
«Em quanto á
Disposição,
elle as collocou, segundo as suas dignidades. Poz o Menino Jesus no
primeiro lugar, e Nossa Senhora no segundo: inda que todas as figuras
estejão attentas a hum só objecto, e occupadas em
contemplar o Deos Menino, não ha huma só, cujo
rosto não seja visto vantajosamente, e de que as partes
todas não estejão dispostas de huma maneira a
mais agradavel. Mignard fez tambem ver que pelo meio das luzes, e
sombras, não sómente dêo a
força, ou debilidade conveniente a todos os corpos; mas fez
que a luz parecesse mais viva sobre as figuras principaes, tendo-a
espalhado mais fortemente sobre o Corpo do Menino, e depois pelas
outras, com tal discrição, que não
recebem senão a que lhes he necessaria para fazer todo o
effeito que o assumpto requer. Para illuminar superiormente o Menino
evitou Raphael todos os incidentes que pudessem interromper os raios da
luz, e
[87]
fazer-lhe alguma
sombra, a fim de não haver a menor obscuridade naquelle, que
he a fonte de toda a luz.»
Temos allegado bastantes authoridades, e trazido á
memoria hum numero de regras, e preceitos sobre a
Composição,
que parece sufficiente para encaminhar as Senhoras applicadas:
resta-nos sómente dizer alguma cousa do que ensina D.
Antonio Palomino. O officio de Polymnia, diz elle, he manifestar os
conceitos que concebe o entendimento; o que o Pintor póde
fazer, dando ás figuras pintadas tão viva
expressão de paixões e affectos, que
pareça que estão fallando.
«A composição, seja de huma ou muitas
figuras,
deve ser honesta; mas a nudeza póde ser honesta, e mesmo
edificante, como he em Jesus Christo, em Susana, nas Santas martyres,
nas Almas do Purgatorio, e em muitas outras pinturas. O Padre Siguenza,
na Historia da Ordem de S. Jeronymo, reprova muito o zelo indiscreto
dos que mandárão cobrir
[88]
huma perna nûa de Santa
Margarida em hum quadro do Ticiano, que estava no Escurial; cousa, a
que outro author chamou
sciochissima
correzione. A pintura de corpos nûs he
indifferente em grande numero de fabulas, ao mesmo tempo que em figuras
vestidas encontrão-se ás vezes actos
provocativos; e estas imagens são obscenas sem serem
nûas.»
«Palomino ensina tambem outros dois modos mais faceis de
inventar: ao
primeiro chama elle fazer por estampa; porque consiste em pintar o
painel todo por huma só estampa, ou desenho alheio, pondo o
colorido da sua invenção: ao segundo
chamão os Pintores furtar; porque he furtado de muitas
estampas. O talento de bem furtar he pouco inferior ao da total
invenção;
[11]
porque além de
[89]
ser original a
composição e colorido, he preciso grande
magisterio para arranjar os objectos furtados debaixo de huma
só e mesma luz, e de hum só ponto de vista, e de
distancia, de sorte que pareça que tudo foi feito para
aquelle lugar;
[12]
e he muito melhor copiar bem, ou compôr por
estampas, que fazer mal de pura idéa. Mas quem puder
consultar o
natural, e o souber imitar bem, esse
será mais applaudido. Tambem se póde seguir a
composição de hum quadro, ou estampa, em quanto
ás massas de luz e de sombra, mudando todas, ou algumas
figuras; estudando-as
[90]
porém do
natural, e não fazer de pura pratica;
porque conduz ao maneirado.»
Temos reduzido a poucas paginas quanto se acha de maior
interesse em muitos volumes sobre a
Composição, relativa ao
grande Genero; e se este trabalho for bem acceito, proseguiremos com
gosto o resto da obra, que será igualmente resumido e
interessante. No fim daremos tambem hum catalogo das insignes Pintoras
Portuguezas, e Estrangeiras.
FIM.
Notas:
[1] Brouwer
foi hum grande Pintor Hollandez de
Bambochatas;
mas foi tambem hum grande bebedo.
De Piles vie des Peintres,
Moreri, Houbraken, etc.
[2] Homem
facinoroso, que esteve preso na Torre de
Civitavechia; e sendo perdoado pela sua pericia na Arte, em
gratificação pintou alli algumas casas, que os
curiosos vão admirar. Falla nelle Vieira no Canto
7.º pag.
251.
[3] Pintor
facéto, que se ridicularisava em
público com as suas macaquices. Veja-se a sua vida em
Vasari, De Piles, no Bocacio, etc.
[4] O
primeiro fez o famoso Crucifixo que se affirma
fallára a Santa Brigida: o segundo era religioso de S.
Domingos, muito estimado do Papa Nicoláo V. a quem recusou o
Arcebispado de Florença: ambos viverão e
morrerão em cheiro de Santidade.
[5]
Massolino,
he o mesmo que Thomazinho.
[6] Alli
já havia huma Igreja dedicada a Santa
Martinha, que Xisto V. em 1588 deo á Academia dos Pintores,
a qual a reedificou com
grande magnificencia, e a dedicou a S. Lucas, no tempo de Urbano VIII.
[7] Cimabue,
Florentino, he considerado como o pai da Pintura
moderna, por ter sido o primeiro que deu alguma sombra de regularidade
ás figuras pintadas. Morreo em 1294 tendo 81 annos de
idade.
[8] Por
Antigo
entendem os Artistas as
mais bellas
esculpturas, que nos restão dos antigos Gregos, e Romanos;
taes como a Venus de Medicis, o Apollo, o Laoconte, o Gladiador, etc.
[9] Todas as
regras geraes tem varias
excepções.
[10]
João
Baptista Tiepolo, grande Pintor a fresco,
Veneziano, concorreo com Mengs, e Corado na pintura dos tectos do
Palacio Real de Madrid. A sua composição, e
colorido
encantavão; mas na correcção do
desenho era muito inferior a Mengs.
[11] Era
o talento de André Gonçalves, de
Ignacio de Oliveira, do Rocha, do Bruno, de Negreiros, de Roque
Vicente, do Padrão, e de quasi todos os nossos bons
Pintores; porque entre nós he mui difficultoso poder-se o
Artista servir do
natural; nem o
Público o exige.
[12] Depois
que se inventárão as
estampas, alguns artistas, mesmo da primeira ordem, se
servirão ás vezes dellas. Miguel Angelo gostou
tanto d'huma invenção de Heemskerk, que a pintou.
André del Sarto servio-se das de Alberto Durer. Muitos
habeis Pintores do tempo do Parmasão pintavão
pelas suas estampas: esta pintura agrada a muitos, porque he mais
barata; mas toda a nação que se contentar com
ella, nunca fará grandes progressos na
perfeição da Arte: terá brilhantes
crystaes; mas não terá diamantes.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se
listados todos os erros encontrados e corrigidos:
Foram adicionadas aspas onde foram necessárias
(ex: quando se iniciavam e não terminavam e vice-versa).