Project Gutenberg's O crime do padre Amaro, by José Maria Eça de Queirós

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.net


Title: O crime do padre Amaro
       scenas da vida devota

Author: José Maria Eça de Queirós

Release Date: April 13, 2010 [EBook #31971]

Language: Portuguese

Character set encoding: ISO-8859-1

*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CRIME DO PADRE AMARO ***




Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)






Nota de editor: Devido à quantidade de erros tipográficos existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com o original. No final deste livro encontrará a lista de erros corrigidos.

Rita Farinha (Abril 2010)



O CRIME

DO

PADRE AMARO




Obras do mesmo auctor:

Os Maias. 2 grossos volumes. 2$000
O Crime do Padre Amaro. Terceira edição inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma e na acção da edição primitiva. 1 grosso volume. 1$200
O Primo Bazilio. Segunda edição. 1 grosso volume. 1$000
A Reliquia. 1 grosso volume. 1$000
O Mandarim. Segunda edição. 1 volume. 500


No prelo:

Correspondencia de Fradique Mendes. 1 volume.




EÇA DE QUEIROZ


O CRIME

DO

PADRE AMARO


SCENAS DA VIDA DEVOTA



TERCEIRA EDIÇÃO

Inteiramente refundida, recomposta, e differente na fórma
e na acção da edição primitiva




PORTO
LIVRARIA INTERNACIONAL DE ERNESTO CHARDRON
Casa editora
LUGAN & GEMELIOUX, Successores
1889

Todos os direitos reservados







Porto: Typ. de A. J. da Silva Teixeira, Cancella Velha, 70




NOTA

(DA 2.ª EDIÇÃO)


O Crime do Padre Amaro recebeu no Brazil e em Portugal alguma attenção da Critica, quando foi publicado ulteriormente um romance intitulado—O Primo Bazilio. E no Brazil e em Portugal escreveu-se (sem todavia se adduzir nenhuma prova effectiva) que O Crime do Padre Amaro era uma imitação do romance do snr. E. Zola—La Faute de l'Abbé Mouret; ou que este livro do auctor do Assomoir e de outros magistraes estudos sociaes suggerira a idéa, os personagens, a intenção do Crime do Padre Amaro. [VI]

Eu tenho algumas razões para crêr que isto não é correcto. O Crime do Padre Amaro foi escripto em 1871, lido a alguns amigos em 1872, e publicado em 1874. O livro do snr. Zola, La Faute de l'Abbé Mouret (que é o quinto volume da série Rougon Macquart), foi escripto e publicado em 1875.

Mas (ainda que isto pareça sobrenatural) eu considero esta razão apenas como subalterna e insufficiente. Eu podia, emfim, ter penetrado no cerebro, no pensamento do snr. Zola, e ter avistado, entre as fórmas ainda indecisas das suas creações futuras, a figura do abbade Mouret,—exactamente como o veneravel Anchises no valle dos Elyseos podia vêr, entre as sombras das raças vindouras fluctuando na nevoa luminosa do Lethes, aquelle que um dia devia ser Marcellus. Taes coisas são possiveis. Nem o homem prudente as deve considerar mais extraordinarias que o carro de fogo que arrebatou Elias aos céos—e outros prodigios provados.

O que, segundo penso, mostra melhor que a accusação carece de exactidão, é a simples comparação dos dois romances. La Faute de [VII] l'Abbé Mouret é, no seu episodio central, o quadro allegorico da iniciação do primeiro homem e da primeira mulher no amor. O abbade Mouret (Sergio), tendo sido atacado d'uma febre cerebral, trazida principalmente pela sua exaltação mystica no culto da Virgem, na solidão d'um valle abrazado da Provença (primeira parte do livro), é levado para convalescer ao Paradou, antigo parque do seculo XVII a que o abandono refez uma virgindade selvagem, e que é a representação allegorica do Paraiso. Ahi, tendo perdido na febre a consciencia de si mesmo a ponto de se esquecer do seu sacerdocio e da existencia da aldeia, e a consciencia do universo a ponto de ter medo do sol e das arvores do Paradou como de monstros estranhos—erra, durante mezes, pelas profundidades do bosque inculto, com Albina que é o genio, a Eva d'esse logar de legenda; Albina e Sergio, semi-nús como no Paraiso, procuram sem cessar, por um instincto que os impelle, uma arvore mysteriosa, da rama da qual cae a influencia aphrodisiaca da materia procreadora; sob este symbolo da Arvore da Sciencia se possuem, depois de dias [VIII] angustiosos em que tentam descobrir, na sua innocencia paradisiaca, o meio physico de realisar o amor; depois, n'uma mutua vergonha subita, notando a sua nudez, cobrem-se de folhagens; e d'ahi os expulsa, os arranca o padre Archangins, que é a personificação theocratica do antigo Archanjo. Na ultima parte do livro o abbade Mouret recupera a consciencia de si mesmo, subtrae-se á influencia dissolvente da adoração da Virgem, obtem por um esforço da oração e um privilegio da graça a extincção da sua virilidade, e torna-se um asceta sem nada d'humano, uma sombra cahida aos pés da cruz; e, é sem que lhe mude a côr ao rosto que asperge e responsa o esquife de Albina, que se asphyxiou no Paradou sob um montão de flôres de perfumes fortes.

Os criticos intelligentes que accusaram O Crime do Padre Amaro de ser apenas uma imitação da Faute de l'Abbé Mouret não tinham infelizmente lido o romance maravilhoso do snr. Zola que foi talvez a origem de toda a sua gloria. A semelhança casual dos dois titulos induziu-os em erro.

Com conhecimento dos dois livros, só uma [IX] obtusidade cornea ou má fé cynica poderia assemelhar esta bella allegoria idyllica, a que está misturado o pathetico drama d'uma alma mystica, ao Crime do Padre Amaro que, como podem vêr n'este novo trabalho, é apenas, no fundo, uma intriga de clerigos e de beatas tramada e murmurada á sombra d'uma velha Sé de provincia portugueza.

Aproveito este momento para agradecer á Critica do Brazil e de Portugal a attenção que ella tem dado aos meus trabalhos.


Bristol, 1 de janeiro de 1880.


Eça do Queiroz.




O CRIME

DO

PADRE AMARO




I



Foi no domingo de Paschoa que se soube em Leiria que o parocho da Sé, José Migueis, tinha morrido de madrugada com uma apoplexia. O parocho era um homem sanguineo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões. Contavam-se historias singulares da sua voracidade. O Carlos da Botica—que o detestava—costumava dizer, sempre que o via sahir depois da sésta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado:

—Lá vai a giboia esmoer. Um dia estoura!

Com effeito estourou, depois d'uma ceia de peixe—á hora em que defronte, na casa do dr. Godinho que fazia annos, se polkava com alarido. Ninguem o lamentou, e foi pouca gente ao seu enterro. Em [2] geral não era estimado. Era um aldeão; tinha os modos e os pulsos d'um cavador, a voz rouca, cabellos nos ouvidos, palavras muito rudes.

Nunca fôra querido das devotas: arrotava no confessionario; e, tendo vivido sempre em freguezias da aldeia ou da serra, não comprehendia certas sensibilidades requintadas da devoção: perdera por isso, logo ao principio, quasi todas as confessadas, que tinham passado para o polido padre Gusmão, tão cheio de labia!

E quando as beatas, que lhe eram fieis, lhe iam fallar de escrupulos, de visões, José Migueis escandalisava-as, rosnando:

—Ora historias, santinha! Peça juizo a Deus! Mais miôlo na bola!

As exagerações dos jejuns sobretudo irritavam-no:

—Coma-lhe e beba-lhe, costumava gritar, coma-lhe e beba-lhe, creatura!

Era miguelista—e os partidos liberaes, as suas opiniões, os seus jornaes enchiam-no d'uma cólera irracionavel:

—Cacete! cacete! exclamava, meneando o seu enorme guardasol vermelho.

Nos ultimos annos tomára habitos sedentarios e vivia isolado—com uma criada velha e um cão, o Joli. O seu unico amigo era o chantre Valladares que governava então o bispado, porque o senhor bispo D. Joaquim gemia, havia dois annos, o seu rheumatismo n'uma quinta do alto Minho. O parocho tinha um grande respeito pelo chantre, homem sêcco, [3] de grande nariz, muito curto de vista, admirador d'Ovidio—que fallava fazendo sempre boquinhas e com allusões mythologicas.

O chantre estimava-o. Chamava-lhe Frei Hercules.

Hercules pela força, explicava sorrindo, Frei pela gula.

No seu enterro elle mesmo lhe foi aspergir a cova; e, como costumava offerecer-lhe todos os dias rapé da sua caixa d'ouro, disse aos outros conegos, baixinho, ao deixar-lhe cahir sobre o caixão, segundo o ritual, o primeiro torrão de terra:

—É a ultima pitada que lhe dou!

Todo o cabido riu muito com esta graça do senhor governador do bispado; o conego Campos contou-a á noite ao chá em casa do deputado Novaes; foi celebrada com risos deleitados, todos exaltaram as virtudes do chantre, e affirmou-se com respeito—que sua excellencia tinha muita pilheria!

Dias depois do enterro appareceu, errando pela Praça, o cão do parocho, o Joli. A criada entrára com sezões no hospital; a casa fôra fechada; o cão, abandonado, gemia a sua fome pelos portaes. Era um gôso pequeno, extremamente gordo,—que tinha vagas semelhanças com o parocho. Com o habito das batinas, avido d'um dono, apenas via um padre punha-se a seguil-o, ganindo baixo. Mas nenhum queria o infeliz Joli; enxotavam-no com as ponteiras dos guardasoes; o cão, repellido como um pretendente, toda a noite uivava pelas ruas. Uma [4] manhã appareceu morto ao pé da Misericordia; a carroça do estrume levou-o e, como ninguem tornou a vêr o cão na Praça, o parocho José Migueis foi definitivamente esquecido.

Dois mezes depois soube-se em Leiria que estava nomeado outro parocho. Dizia-se que era um homem muito novo, sahido apenas do seminario. O seu nome era Amaro Vieira. Attribuia-se a sua escolha a influencias politicas, e o jornal de Leiria, A Voz do Districto, que estava na opposição, fallou com amargura, citando o Golgotha, no favoritismo da côrte e na reacção clerical. Alguns padres tinham-se escandalisado com o artigo; conversou-se sobre isso, acremente, diante do senhor chantre.

—Não, não, lá que ha favor, ha; e que o homem tem padrinhos, tem, disse o chantre. A mim quem me escreveu para a confirmação foi o Brito Correia (Brito Correia era então ministro da justiça). Até me diz na carta que o parocho é um bello rapagão. De sorte que—acrescentou sorrindo com satisfação—depois de Frei Hercules vamos talvez ter Frei Apollo.

Em Leiria havia só uma pessoa que conhecia o parocho novo: era o conego Dias que fôra, nos primeiros annos do seminario, seu mestre de Moral. No seu tempo, dizia o conego, o parocho era um rapaz franzino, acanhado, cheio de espinhas carnaes...

—Parece que o estou a vêr com a batina muito coçada e cara de quem tem lombrigas!... De resto bom rapaz. E espertote... [5]

O conego Dias era muito conhecido em Leiria. Ultimamente engordára, o ventre saliente enchia-lhe a batina; e a sua cabecinha grisalha, as olheiras papudas, o beiço espesso faziam lembrar velhas anecdotas de frades lascivos e glotões.

O tio Patricio, o antigo, negociante da Praça, muito liberal, e que quando passava pelos padres rosnava como um velho cão de fila, dizia ás vezes ao vêl-o atravessar a Praça, pesado, ruminando a digestão, encostado ao guardachuva:

—Que maroto! Parece mesmo D. João VI!

O conego vivia só com uma irmã velha, a snr.a D. Josepha Dias, e uma criada, que todos conheciam tambem em Leiria, sempre na rua, entrouxada n'um chale tingido de negro e arrastando pesadamente as suas chinelas de ourelo. O conego Dias passava por ser rico; trazia ao pé de Leiria propriedades arrendadas, dava jantares com perú, e tinha reputação o seu vinho duque de 1815. Mas o facto saliente da sua vida—o facto commentado e murmurado—era a sua antiga amizade com a snr.a Augusta Caminha, a quem chamavam a S. Joanneira, por ser natural de S. João da Foz. A S. Joanneira morava na rua da Misericordia e recebia hospedes. Tinha uma filha, a Ameliasinha, rapariga de vinte e tres annos, bonita, forte, muito desejada.

O conego Dias mostrára um grande contentamento com a nomeação de Amaro Vieira. Na botica do Carlos, na Praça, na sacristia da Sé exaltou os seus bons estudos no seminario, a sua prudencia de [6] costumes, a sua obediencia: gabava-lhe mesmo a voz: «um timbre que é um regalo!»

—Para um bocado de sentimento nos sermões da Semana Santa está a calhar!

Predizia-lhe com emphase um destino feliz, uma conesia decerto, talvez a gloria d'um bispado!

E um dia, emfim, mostrou com satisfação ao coadjutor da Sé, creatura servil e calada, uma carta que recebera de Lisboa de Amaro Vieira.

Era uma tarde de agosto e passeavam ambos para os lados da Ponte Nova. Andava então a construir-se a estrada da Figueira: o velho passadiço de pau sobre a ribeira do Liz tinha sido destruido, já se passava sobre a Ponte Nova, muito gabada, com os seus dois largos arcos de pedra, fortes e atarracados. Para diante as obras estavam suspendidas por questões de expropriação; ainda se via o lodoso caminho da freguezia de Marrazes, que a estrada nova devia desbastar e encorporar; camadas de cascalho cobriam o chão; e os grossos cylindros de pedra, que acalcam e recamam os macadams, enterravam-se na terra negra e humida das chuvas.

Em roda da Ponte a paizagem é larga e tranquilla. Para o lado d'onde o rio vem são collinas baixas, de fórmas arredondadas, cobertas da rama verde-negra dos pinheiros novos; em baixo, na espessura dos arvoredos, estão os casaes que dão áquelles logares melancolicos uma feição mais viva e humana—com as suas alegres paredes caiadas que luzem ao sol, com os fumos das lareiras que pela [7] tarde se azulam nos ares sempre claros e lavados. Para o lado do mar, para onde o rio se arrasta nas terras baixas entre dois renques de salgueiros pallidos, estende-se até os primeiros areaes o campo de Leiria, largo, fecundo, com o aspecto de aguas abundantes, cheio de luz. Da Ponte pouco se vê da cidade; apenas uma esquina das cantarias pesadas e jesuiticas da Sé, um canto do muro do cemiterio coberto de parietarias, e pontas agudas e negras dos cyprestes; o resto está escondido pelo duro monte ouriçado de vegetações rebeldes, onde destacam as ruinas do Castello, todas envolvidas á tarde nos largos vôos circulares dos mochos, desmanteladas e com um grande ar historico.

Ao pé da Ponte, uma rampa desce para a alameda que se estende um pouco á beira do rio. É um logar recolhido, coberto de arvores antigas. Chamam-lhe a Alameda Velha. Alli, caminhando devagar, fallando baixo, o conego consultava o coadjutor sobre a carta de Amaro Vieira, e sobre «uma idéa que ella lhe dera, que lhe parecia de mestre! De mestre!» Amaro pedia-lhe com urgencia que lhe arranjasse uma casa de aluguel, barata, bem situada, e se fosse possivel mobilada; fallava sobretudo de quartos n'uma casa de hospedes respeitavel. «Bem vê o meu caro Padre-Mestre, dizia Amaro, que era isto o que verdadeiramente me convinha; eu não quero luxos, está claro: um quarto e uma saleta seria o bastante. O que é necessario é que a casa seja respeitavel, socegada, central; que a patrôa tenha [8] bom genio e que não peça mundos e fundos; deixo tudo isto á sua prudencia e capacidade, e creia que todos estes favores não cahirão em terreno ingrato. Sobretudo que a patrôa seja pessoa accommodada e de boa lingua.»

Ora a minha idéa, amigo Mendes, é esta: mettêl-o em casa da S. Joanneira! resumiu o conego com um grande contentamento. É rica idéa, hein?

—Soberba idéa! disse o coadjutor com a sua voz servil.

—Ella tem o quarto de baixo, a saleta pegada e o outro quarto que póde servir de escriptorio. Tem boa mobilia, boas roupas...

—Ricas roupas, disse o coadjutor com respeito.

O conego continuou:

—É um bello negocio para a S. Joanneira: dando os quartos, roupas, comida, criada, póde muito bem pedir os seus seis tostões por dia. E depois sempre tem o parocho de casa.

—Por causa da Ameliasinha é que eu não sei, considerou timidamente o coadjutor. Sim, póde ser reparado. Uma rapariga nova... Diz que o senhor parocho é ainda novo... Vossa senhoria sabe o que são linguas do mundo.

O conego tinha parado:

—Ora historias! Então o padre Joaquim não vive debaixo das mesmas telhas com a afilhada da mãi? E o conego Pedroso não vive com a cunhada, e uma irmã da cunhada, que é uma rapariga de dezenove annos? Ora essa! [9]

—Eu dizia... attenuou o coadjutor.

—Não, não vejo mal nenhum. A S. Joanneira aluga os seus quartos, é como se fosse uma hospedaria. Então o secretario geral não esteve lá uns poucos de mezes?

—Mas um ecclesiastico... insinuou o coadjutor.

—Mais garantias, snr. Mendes, mais garantias! exclamou o conego. E parando, com uma attitude confidencial:—E depois a mim é que me convinha, Mendes! A mim é que me convinha, meu amigo!

Houve um pequeno silencio. O coadjutor disse, baixando a voz:

—Sim, vossa senhoria faz muito bem á S. Joanneira...

—Faço o que posso, meu caro amigo, faço o que posso, disse o conego. E com uma entonação terna, risonhamente paternal:—que ella é merecedora, é merecedora. Boa até alli, meu amigo!—Parou, esgazeando os olhos:—Olhe que dia em que eu não lhe appareça pela manhã ás nove em ponto, está n'um phrenesi! «Oh creatura! digo-lhe eu, a senhora rala-se sem razão.» Mas então, é aquillo! Pois quando eu tive a colica o anno passado! Emmagreceu, snr. Mendes! E depois não ha lembrança que não tenha! Agora, pela matança do porco, o melhor do animal é para o padre santo, vossê sabe? é como ella me chama.

Fallava com os olhos luzidios, uma satisfação babosa:

—Ah, Mendes! acrescentou, é uma rica mulher! [10]

—E bonita mulher, disse o coadjutor respeitosamente.

—Lá isso! exclamou o conego parando outra vez. Lá isso! Bem conservada até alli! Pois olhe que já não é criança! Mas nem um cabello branco, nem um, nem um só! E então que côr de pelle!—E mais baixo, com um sorriso guloso:—E isto aqui! ó Mendes, e isto aqui!—Indicava o lado do pescoço debaixo do queixo, passando-lhe devagar por cima a sua mão papuda:—É uma perfeição! E depois mulher de aceio, muitissimo aceio! E que lembrançasinhas! Não ha dia que me não mande o seu presente! é o covilhete de geleia, é o pratinho d'arroz dôce, é a bella murcella d'Arouca! Hontem me mandou ella uma torta de maçã. Ora havia de vossê vêr aquillo! A maçã parecia um creme! Até a mana Josepha disse: «Está tão boa que parece que foi cozida em agua benta!»—E pondo a mão espalmada sobre o peito:—São coisas que tocam a gente cá por dentro, Mendes! Não, não é lá por dizer, mas não ha outra.

O coadjutor escutava com a taciturnidade da inveja.

—Eu bem sei, disse o conego parando de novo e tirando lentamente as palavras, eu bem sei que por ahi rosnam, rosnam... Pois é uma grandissima calumnia! O que é, é que eu tenho muito apêgo áquella gente. Já o tinha em tempo do marido. Vossê bem o sabe, Mendes.

O coadjutor teve um gesto affirmativo. [11]

—A S. Joanneira é uma pessoa de bem! olhe que é uma pessoa de bem, Mendes! exclamava o conego batendo no chão fortemente com a ponteira do guardasol.

—As linguas do mundo são venenosas, senhor conego, disse o coadjutor com uma voz chorosa. E depois d'um silencio acrescentou baixo:—Mas aquillo a vossa senhoria deve-lhe sahir caro!

—Pois ahi está, meu amigo! Imagine vossê que desde que o secretario geral se foi embora a pobre da mulher tem tido a casa vazia: eu é que tenho dado para a panella, Mendes!

—Que ella tem uma fazendita, considerou o coadjutor.

—Uma nesga de terra, meu rico senhor, uma nesga de terra! E depois as decimas, os jornaes! Por isso digo eu, o parocho é uma mina. Com os seis tostões que elle der, com o que eu ajudar, com alguma coisa que ella tire da hortaliça que vende da fazenda, já se governa. E para mim é um allivio, Mendes.

—É um allivio, senhor conego! repetiu o coadjutor.

Ficaram calados. A tarde descahia muito limpida; o alto céo tinha uma pallida côr azul; o ar estava immovel. N'aquelle tempo o rio ia muito vazio; pedaços de areia reluziam em sêcco; e a agua baixa arrastava-se com um marulho brando, toda enrugada do roçar dos seixos.

Duas vaccas, guardadas por uma rapariga, appareceram [12] então pelo caminho lodoso que do outro lado do rio, defronte da alameda, corre junto d'um silvado; entraram no rio devagar, e estendendo o pescoço pellado da canga, bebiam de leve, sem ruido; a espaços erguiam a cabeça bondosa, olhavam em redor com a passiva tranquillidade dos sêres fartos—e fios de agua, babados, luzidios á luz, pendiam-lhes dos cantos do focinho. Com a inclinação do sol a agua perdia a sua claridade espelhada, estendiam-se as sombras dos arcos da ponte. Do lado das colinas ia subindo um crepusculo esfumado, e as nuvens côr de sanguinea e côr de laranja que annunciam o calor faziam, sobre os lados do mar, uma decoração muito rica.

—Bonita tarde! disse o coadjutor.

O conego bocejou, e fazendo uma cruz sobre o bocejo:

—Vamo-nos chegando ás Ave-Marias, hein?

Quando, d'ahi a pouco, iam subindo as escadarias da Sé, o conego parou, e voltando-se para o coadjutor:

—Pois está decidido, amigo Mendes, ferro o Amaro na casa da S. Joanneira! É uma pechincha para todos.

—Uma grande pechincha! disse respeitosamente o coadjutor. Uma grande pechincha!

E entraram na igreja, persignando-se.



II



Uma semana depois soube-se que o novo parocho devia chegar pela diligencia de Chão de Maçãs, que traz o correio á tarde; e desde as seis horas o conego Dias e o coadjutor passeavam no largo do Chafariz, á espera de Amaro.

Era então nos fins de agosto. Na longa alameda macadamisada que vai junto do rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos claros de senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de casebres pobres, velhas fiavam á porta; crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando os seus enormes ventres nús; e gallinhas em redor iam picando vorazmente as immundicies esquecidas. Em redor do chafariz cheio de ruido, onde os cantaros [14] arrastam sobre a pedra, criadas ralham, soldados, com a sua fardeta suja, enormes botas cambadas, namoravam, meneando a chibata de junco; com o seu cantaro bojudo de barro equilibrado á cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares, meneando os quadris; e dois officiaes ociosos, com a farda desapertada sobre o estomago, conversavam, esperando, a vêr quem viria. A diligencia tardava. Quando o crepusculo desceu, uma lamparina luziu no nicho do santo, por cima do Arco; e defronte iam-se alumiando uma a uma, com uma luz soturna, as janellas do hospital.

Já tinha anoitecido quando a diligencia, com as lanternas accesas, entrou na Ponte ao trote esgalgado dos seus magros cavallos brancos, e veio parar ao pé do chafariz, por baixo da estalagem do Cruz; o caixeiro do tio Patricio partiu logo a correr para a Praça com o maço dos Diarios Populares; o tio Baptista, o patrão, com o cachimbo negro ao canto da boca, desatrellava, praguejando tranquillamente; e um homem que vinha na almofada, ao pé do cocheiro, de chapéo alto e comprido capote ecclesiastico, desceu cautelosamente, agarrando-se ás guardas de ferro dos assentos, bateu com os pés no chão para os desentorpecer, e olhou em redor.

—Oh, Amaro! gritou o conego que se tinha aproximado, oh, ladrão!

—Oh, Padre-Mestre! disse o outro com alegria. E abraçaram-se, emquanto o coadjutor, todo curvado, tinha o barrete na mão. [15]

D'ahi a pouco as pessoas que estavam nas lojas viram atravessar a Praça, entre a corpulencia vagarosa do conego Dias e a figura esguia do coadjutor, um homem um pouco curvado, com um capote de padre. Soube-se que era o parocho novo; e disse-se logo na botica que era uma boa figura de homem. O João Bicha levava adiante um bahú e um sacco de chita; e como áquella hora já estava bebedo, ia resmungando o Bemdito.

Eram quasi nove horas, a noite cerrára. Em redor da Praça as casas estavam já adormecidas: das lojas debaixo da arcada sahia a luz triste dos candieiros de petroleo, entreviam-se dentro figuras somnolentas, caturrando em cavaqueira, ao balcão. As ruas que vinham dar á Praça, tortuosas, tenebrosas, com um lampeão mortiço, pareciam deshabitadas. E no silencio o sino da Sé dava vagarosamente o toque das almas.

O conego Dias ia explicando pachorrentamente ao parocho «o que lhe arranjára». Não lhe tinha procurado casa: seria necessario comprar mobilia, buscar criada, despezas innumeraveis! Parecera-lhe melhor tomar-lhe quartos n'uma casa de hospedes respeitavel, de muito conchego—e n'essas condições (e alli estava o amigo coadjutor que o podia dizer), não havia como a da S. Joanneira. Era bem arejada, muito aceio, a cozinha não deitava cheiro; tinha lá estado o secretario geral e o inspector dos estudos; e a S. Joanneira (o Mendes amigo conhecia-a bem) era uma mulher temente a Deus, de boas [16] contas, muito economica e cheia de condescendencias...

—Vossê está alli como em sua casa! Tem o seu cozido, prato de meio, café...

—Vamos a saber, Padre-Mestre: preço? disse o parocho.

—Seis tostões. Que diabo, é de graça! Tem um quarto, tem uma saleta...

—Uma rica saleta, commentou o coadjutor respeitosamente.

—E é longe da Sé? perguntou Amaro.

—Dois passos. Póde-se ir dizer missa de chinelos. Na casa ha uma rapariga, continuou com a sua voz pausada o conego Dias. É a filha da S. Joanneira. Rapariga de vinte e dois annos. Bonita. Sua pontinha de genio, mas bom fundo... Aqui tem vôsse a sua rua.

Era estreita, de casas baixas e pobres, esmagada pelas altas paredes da velha Misericordia, com um lampeão lugubre ao fundo.

—E aqui tem vossê o seu palacio! disse o conego, batendo na aldraba de uma porta esguia.

No primeiro andar duas varandas de ferro, de aspecto antigo, faziam saliencia, com os seus arbustos de alecrim, que se arredondavam aos cantos em caixas de madeira; as janellas de cima, pequeninas, eram de peitoril; e a parede, pelas suas irregularidades, fazia lembrar uma lata amolgada.

A S. Joanneira esperava no alto da escada; uma criada, enfezada e sardenta, alumiava com um candieiro [17] de petroleo; e a figura da S. Joanneira destacava plenamente na luz sobre a parede caiada. Era gorda, alta, muito branca, d'aspecto pachorrento. Os seus olhos pretos tinham já em redor a pelle engelhada; os cabellos arripiados, com um enfeite escarlate, eram já raros aos cantos da testa e no começo da risca; mas percebiam-se uns braços rechonchudos, um collo copioso e roupas aceadas.

—Aqui tem a senhora o seu hospede, disse o conego subindo.

—Muita honra em receber o senhor parocho! muita honra! Ha de vir muito cansado! por força! Para aqui, tem a bondade? Cuidado com o degrausinho.

Levou-o para uma sala pequena pintada de amarello, com um vasto canapé de palhinha encostado à parede, e defronte, aberta, uma mesa forrada de baeta verde.

—É a sua sala, senhor parocho, disse a S. Joanneira. Para receber, para espairecer... Aqui—acrescentou abrindo uma porta—é o seu quarto de dormir. Tem a sua commoda, o seu guarda-roupa...—Abriu os gavetões, gabou a cama batendo a elasticidade dos colxões—Uma campainha para chamar sempre que queira... As chavinhas da commoda estão aqui... Se gosta de travesseirinho mais alto... Tem um cobertor só, mas querendo...

—Está bem, está tudo muito bem, minha senhora, disse o parocho com a sua voz baixa e suave.

—É pedir! O que ha, da melhor vontade... [18]

—Oh creatura de Deus! interrompeu o conego jovialmente, o que elle quer agora é cear!

—Tambem tem a ceiasinha prompta. Desde as seis que está o caldo a apurar...

E sahiu, para apressar a criada, dizendo logo do fundo da escada:

—Vá, Ruça, mexe-te, mexe-te!...

O conego sentou-se pesadamente no canapé, e sorvendo a sua pitada:

—É contentar, meu rico. Foi o que se pôde arranjar.

—Eu estou bem em toda a parte, Padre-Mestre, disse o parocho, calçando os seus chinelos de ourelo. Olha o seminario!... E em Feirão! Cahia-me a chuva na cama.

Para o lado da Praça, então, sentiu-se o toque de cornetas.

—Que é aquillo? perguntou Amaro, indo á janella.

—Ás nove e meia, o toque de recolher.

Amaro abriu a vidraça. Ao fim da rua um candieiro esmorecia. A noite estava muito negra. E havia sobre a cidade um silencio concavo, de abobada.

Depois das cornetas, um rufar lento de tambores afastou-se para o lado do quartel; por baixo da janella um soldado, que se demorára n'alguma viella do castello, passou correndo; e das paredes da Misericordia sahia constantemente o agudo piar das corujas. [19]

—É triste isto, disse Amaro.

Mas a S. Joanneira gritou de cima:

—Póde subir, senhor conego! Está o caldo na mesa!

—Ora vá, vá, que vossê deve estar a cahir de fome, Amaro!—disse o conego, erguendo-se muito pesado.

E detendo um momento o parocho pela manga do casaco:

—Vai vossê vêr o que é um caldo de gallinha feito cá pela senhora! Da gente se babar!...


No meio da sala de jantar, forrada de papel escuro, a claridade da mesa alegrava, com a sua toalha muito branca, a louça, os copos reluzindo á luz forte d'um candieiro d'abat-jour verde. Da terrina subia o vapor cheiroso do caldo, e na larga travessa a gallinha gorda, afogada n'um arroz humido e branco, rodeada de nacos de bom paio, tinha uma apparencia succulenta de prato morgado. No armario envidraçado, um pouco na sombra, viam-se côres claras de porcelana; a um canto, ao pé da janella, estava o piano, coberto com uma colcha de setim desbotado. Na cozinha frigia-se; e sentindo o cheiro fresco que vinha d'um taboleiro de roupa lavada, o parocho esfregou as mãos, regalado.

—Para aqui, senhor parocho, para aqui, disse a [20] S. Joanneira. D'ahi póde-lhe vir frio.—Foi fechar as portadas das janellas; chegou-lhe um caixão de areia para as pontas dos cigarros.—E o senhor conego toma um copinho de geleia, sim?

—Vá lá, para fazer companhia, disse jovialmente o conego, sentando-se e desdobrando o guardanapo.

A S. Joanneira, no emtanto, mexendo-se pela sala, ia admirando o parocho que, com a cabeça sobre o prato, comia em silencio o seu caldo, soprando a colhér. Parecia bem feito: tinha um cabello muito preto, levemente annelado. O rosto era oval, de pelle trigueira e fina, os olhos negros e grandes, com pestanas compridas.

O conego, que não o via desde o seminario, achava-o mais forte, mais viril.

—Vossê era enfezadito...

—Foi o ar da serra, dizia o parocho, fez-me bem.—Contou então a sua triste existencia em Feirão, na alta Beira, durante a aspereza do inverno, só, com pastores. O conego deitava-lhe o vinho de alto, fazendo-o espumar.

—Pois é beber-lhe, homem! é beber-lhe! D'esta gota não pilhava vossê no seminario.

Fallaram do seminario.

—Que será feito do Rabicho, o despenseiro? disse o conego.

—E do Carôcho, que roubava as batatas?

Riram; e bebendo, na alegria das reminiscencias, recordavam as historias de então, o catarrho do reitor, [21] e o mestre de canto-chão que deixára um dia cahir do bolso as poesias obscenas de Bocage.

—Como o tempo passa, como o tempo passa! diziam.

A S. Joanneira então poz na mesa um prato covo com maçãs assadas.

—Viva! Não, lá n'isso tambem eu entro! exclamou logo o conego. A bella maçã assada! nunca me escapa! Grande dona de casa, meu amigo, rica dona de casa, cá a nossa S. Joanneira! Grande dona de casa!

Ella ria; viam-se os seus dois dentes de diante, grandes e chumbados. Foi buscar uma garrafa de vinho do Porto; poz no prato do conego, com requintes devotos, uma maçã desfeita polvilhada de assucar; e batendo-lhe nas costas com a mão papuda e molle:

—Isto é um santo, senhor parocho, isto é um santo! Ai, devo-lhe muitos favores!

—Deixe fallar, deixe fallar..., dizia o conego.—Espalhava-se-lhe no rosto um contentamento baboso.—Boa gota! acrescentou, saboreando o seu calix de porto. Boa gota!

—Olhe que ainda é dos annos da Amelia, senhor conego.

—E onde está ella, a pequena?

—Foi ao Morenal com a D. Maria. Aquillo naturalmente foram para casa das Gansosos passar a noite.

—Cá esta senhora é proprietaria, explicou o conego, [22] fallando do Morenal. É um condado!—Ria com bonhomia, e os seus olhos luzidios percorriam ternamente a corpulencia da S. Joanneira.

—Ah, senhor parocho, deixe fallar, é uma nesga de terra..., disse ella.

Mas vendo a criada encostada á parede, sacudida com afflicções de tosse:

—Ó mulher, vai tossir lá p'ra dentro! credo!

A moça sahiu, pondo o avental sobre a boca.

—Parece doente, coitada, observou o parocho.

Muito achacada, muito!... A pobre de Christo era sua afilhada, orphã, e estava quasi tisica. Tinha-a tomado por piedade...

—E tambem porque a criada que cá tinha foi para o hospital, a desavergonhada... Metteu-se ahi com um soldado!...

O padre Amaro baixou devagar os olhos—e trincando migalhas perguntou se havia muitas doenças n'aquelle verão.

—Cholerinas, das fructas verdes, rosnou o conego. Mettem-se pelas melancias, depois tarraçadas de agua... E suas febritas...

Fallaram então das sezões do campo, dos ares de Leiria.

—Que eu agora, dizia o padre Amaro, ando mais forte. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo, tenho saude, tenho!

—Ai, Nosso Senhor lh'a conserve, que nem sabe o bem que é! exclamou a S. Joanneira.—Contou immediatamente a grande desgraça que tinha em casa, [23] uma irmã meia idiota entrevada havia dez annos! Ia fazer sessenta annos... No inverno viera-lhe um catarrho, e desde então, coitadinha, definhava, definhava...

—Ha bocado, ao fim da tarde, teve ella um ataque de tosse! Pensei que se ia embora. Agora descansou mais...

Continuou a fallar «d'aquella tristeza», depois da sua Ameliasinha, das Gansosos, do antigo chantre, da carestia de tudo—sentada, com o gato no collo, rolando com os dois dedos, monotonamente, bolinhas de pão. O conego, pesado, cerrava as palpebras; tudo na sala parecia ir gradualmente adormecendo; a luz do candieiro esmorecia.

—Pois senhores, disse por fim o conego mexendo-se, isto são horas!

O padre Amaro ergueu-se, e com os olhos baixos deu as graças.

—O senhor parocho quer lamparina? perguntou cuidadosamente a S. Joanneira.

—Não, minha senhora. Não uso. Boas noites!

E desceu devagar, palitando os dentes.

A S. Joanneira alumiava no patamar, com o candieiro. Mas nos primeiros degraus o parocho parou, e voltando-se, affectuosamente:

—É verdade, minha senhora, ámanhã é sexta-feira, é jejum...

—Não, não, acudiu o conego que se embrulhava na capa de lustrina, bocejando, vossê ámanhã janta commigo. Eu venho por cá, vamos ao chantre, [24] á Sé, e por ahi... E olhe que tenho lulas. É um milagre, que isto aqui nunca ha peixe.

A S. Joanneira tranquillisou logo o parocho:

—Ai, é escusado lembrar os jejuns, senhor parocho. Tenho o maior escrupulo!

—Eu dizia, explicou o parocho, porque infelizmente hoje em dia ninguem cumpre...

—Tem vossa senhoria muita razão, atalhou ella. Mas eu! credo!... A salvação da minha alma antes de tudo!

A campainha em baixo, então, retiniu fortemente.

—Ha de ser a pequena, disse a S. Joanneira. Abre, Ruça!

A porta bateu, sentiram-se vozes, risinhos.

-És tu, Amelia?

Uma voz disse adeusinho! adeusinho! E appareceu, subindo quasi a correr, com os vestidos um pouco apanhados adiante, uma bella rapariga, forte, alta, bem feita, com uma manta branca pela cabeça e na mão um ramo de alecrim.

—Sobe, filha. Aqui está o senhor parocho. Chegou agora á noitinha, sobe!

Amelia tinha parado um pouco embaraçada, olhando para os degraus de cima, onde o parocho ficára, encostado ao corrimão. Respirava fortemente de ter corrido; vinha córada; os seus olhos vivos e negros luziam; e sahia d'ella uma sensação de frescura e de prados atravessados.

O parocho desceu, cingido ao corrimão, para a deixar passar, murmurando boas noites! com a cabeça [25] baixa. O conego, que descia atraz, pesadamente, tomou o meio da escada, diante de Amelia:

—Então isto são horas, sua bréjeira!

Ella teve um risinho, encolheu-se.

—Ora vá-se encommendar a Deus, vá! disse batendo-lhe no rosto devagarinho com a sua mão grossa e cabelluda.

Ella subiu a correr, emquanto o conego, depois d'ir buscar o guardasol á saleta, sahia, dizendo á criada, que erguia o candieiro sobre a escada:

—Está bom, eu vejo, não apanhes frio, rapariga. Então ás oito, Amaro! Esteja a pé! Vai-te, rapariga, adeus! Reza á Senhora da Piedade que te seque essa catarrheira.

O parocho fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura antiga d'um Christo crucificado. Amaro abriu o seu Breviario, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima, sobre o tecto, através das orações rituaes que machinalmente ia lendo, começou a sentir o tic-tic das botinas de Amelia e o ruido das saias engommadas que ella sacudia ao despir-se.



III



Amaro Vieira nascera em Lisboa em casa da senhora marqueza d'Alegros. Seu pai era criado do marquez; a mãi era criada de quarto, quasi uma amiga da senhora marqueza. Amaro conservava ainda um livro, o Menino das selvas, com barbaras imagens coloridas, que tinha escripto na primeira pagina branca: Á minha muito estimada criada Joanna Vieira e verdadeira amiga que sempre tem sido,—Marqueza d'Alegros. Possuia tambem um daguerreotypo de sua mãi: era uma mulher forte, de sobrancelhas cerradas, a boca larga e sensualmente fendida, e uma côr ardente. O pai de Amaro tinha morrido de apoplexia; e a mãi, que fôra sempre tão sã, succumbiu, d'ahi a um anno, a uma tisica de larynge. Amaro completára então seis annos. Tinha [28] uma irmã mais velha que desde pequena vivia com a avó em Coimbra, e um tio, mercieiro abastado do bairro da Estrella. Mas a senhora marqueza ganhára amizade a Amaro; conservou-o em sua casa, por uma adopção tacita; e começou, com grandes escrupulos, a vigiar a sua educação.

A marqueza d'Alegros ficára viuva aos quarenta e tres annos e passava a maior parte do anno retirada na sua quinta de Carcavellos. Era uma pessoa passiva, de bondade indolente, com capella em casa, um respeito devoto pelos padres de S. Luiz, sempre preoccupada dos interesses da Igreja. As suas duas filhas, educadas no receio do Céo e nas preoccupações da Moda, eram beatas e faziam o chic fallando com igual fervor da humildade christã e do ultimo figurino de Bruxellas. Um jornalista de então dissera d'ellas:—Pensam todos os dias na toilette com que hão de entrar no paraiso.

No isolamento de Carcavellos, n'aquella quinta de alamedas aristocraticas onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se. A Religião, a Caridade eram então occupações avidamente aproveitadas: cosiam vestidos para os pobres da freguezia, bordavam frontaes para os altares da igreja. De maio a outubro estavam inteiramente absorvidas pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros beatos e dôces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era o seu luxo de verão.

A senhora marqueza resolvera desde logo fazer [29] entrar Amaro na vida ecclesiastica. A sua figura amarellada e magrita pedia aquelle destino recolhido: era já affeiçoado ás coisas de capella, e o seu encanto era estar aninhado ao pé de mulheres, no calor das saias unidas, ouvindo fallar de santas. A senhora marqueza não o quiz mandar ao collegio porque receava a impiedade dos tempos e as camaradagens immoraes. O capellão da casa ensinava-lhe o latim, e a filha mais velha, a snr.a D. Luiza, que tinha um nariz de cavallete e lia Chateaubriand, dava-lhe lições de francez e de geographia.

Amaro era, como diziam os criados, um mosquinha morta. Nunca brincava, nunca pulava ao sol. Se á tarde acompanhava a senhora marqueza ás alamedas da quinta quando ella descia pelo braço do padre Liset ou do respeitoso procurador Freitas, ia a seu lado, môno, muito encolhido, torcendo com as mãos humidas o forro das algibeiras—vagamente assustado das espessuras d'arvoredos e do vigor das relvas altas.

Tornou-se muito medroso. Dormia com lamparina, ao pé d'uma ama velha. As criadas de resto feminisavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no no meio d'ellas, beijocavam-no, faziam-lhe cocegas, e elle rolava por entre as saias, em contacto com os corpos, com gritinhos de contentamento. Ás vezes, quando a senhora marqueza sahia, vestiam-no de mulher, entre grandes risadas: elle abandonava-se, meio nú, com os seus modos languidos, os olhos quebrados, uma roseta escarlate nas faces. As criadas, [30] além d'isso, utilisavam-no nas suas intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tornou-se enredador, muito mentiroso.

Aos onze annos, ajudava á missa, e aos sabbados limpava a capella. Era o seu melhor dia; fechava-se por dentro, collocava os santos em plena luz em cima d'uma mesa, beijando-os com ternuras devotas e satisfações gulosas; e toda a manhã, muito atarefado, cantarolando o Santissimo, ia tirando a traça dos vestidos das Virgens e limpando com gesso e cré as auréolas dos Martyres.

No emtanto crescia; o seu aspecto era o mesmo, miudo e amarellado; nunca dava uma boa risada, trazia sempre as mãos dos bolsos. Estava constantemente mettido nos quartos das criadas, remexendo as gavetas; bolia nas saias sujas, cheirava os algodões postiços. Era extremamente preguiçoso, e custava de manhã arrancal-o a uma somnolencia doentia em que ficava amollecido, todo embrulhado nos cobertores e abraçado ao travesseiro. Já corcovava um pouco, e os criados chamavam-lhe o padreca.


N'um domingo gordo, uma manhã, depois da missa, ao chegar-se ao terraço, a senhora marqueza de repente cahiu morta com uma apoplexia. Deixava no seu testamento um legado para que Amaro, o filho da sua criada Joanna, entrasse aos quinze annos no seminario e se ordenasse. O padre Liset ficava encarregado [31] de realisar esta disposição piedosa. Amaro tinha então treze annos.

As filhas da senhora marqueza deixaram logo Carcavellos e foram para Lisboa, para casa da snr.a D. Barbara de Noronha, sua tia paterna. Amaro foi mandado para casa do tio, para a Estrella. O mercieiro era um homem obeso, casado com a filha d'um pobre empregado publico, que o aceitára para sahir da casa do pai, onde a mesa era escassa, ella devia fazer as camas e nunca ia ao theatro. Mas odiava o marido, as suas mãos cabelludas, a loja, o bairro e o seu apellido de snr.a Gonçalves. O marido esse adorava-a como a delicia da sua vida, o seu luxo; carregava-a de joias e chamava-lhe a sua duqueza.

Amaro não encontrou alli o elemento feminino e carinhoso em que estivera tepidamente envolvido em Carcavellos. A tia quasi não reparava n'elle; passava os seus dias lendo romances, as analyses dos theatros nos jornaes, vestida de sêda, coberta de pó d'arroz, o cabello em cachos, esperando a hora em que passava debaixo das janellas, puxando os punhos, o Cardoso, galan da Trindade. O mercieiro apropriou-se então de Amaro como d'uma utilidade imprevista, mandou-o para o balcão. Fazia-o erguer logo ás cinco horas da manhã; e o rapaz tremia na sua jaqueta de pano azul, molhando á pressa o pão na chavena de café, ao canto da mesa da cozinha. De resto detestavam-no; a tia chamava-lhe o cebola e o tio chamava-lhe o burro. Pesava-lhes até o magro pedaço de vacca que elle comia ao jantar. [32] Amaro emmagrecia e todas as noites chorava.

Sabia já que aos quinze annos devia entrar no seminario. O tio todos os dias lh'o lembrava:

—Não penses que ficas aqui toda a vida na vadiagem, burro! Em tendo quinze annos é para o seminario. Não tenho obrigação de carregar comtigo! Besta na argola, não está nos meus principios!

E o rapaz desejava o seminario, como um libertamento.

Nunca ninguem consultára as suas tendencias ou a sua vocação. Impunham-lhe uma sobrepelliz; a sua natureza passiva, facilmente dominavel, aceitava-a, como aceitaria uma farda. De resto não lhe desagradava ser padre. Desde que sahira das rezas perpetuas de Carcavellos conservára o seu medo do inferno, mas perdera o fervor dos santos; lembravam-lhe porém os padres que vira em casa da senhora marqueza, pessoas brancas e bem tratadas que comiam ao lado das fidalgas e tomavam rapé em caixas d'ouro; e convinha-lhe aquella profissão em que se falla baixo com as mulheres,—vivendo entre ellas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,—e se recebem presentes em bandejas de prata. Recordava o padre Liset com um annel de rubi no dedo minimo; monsenhor Sávedra com os seus bellos oculos d'ouro, bebendo aos goles o seu copo de madeira. As filhas da senhora marqueza bordavam-lhes chinelas. Um dia tinha visto um bispo que fôra padre na Bahia, viajára, estivera em Roma, era muito [33] jovial; e na sala, com as suas mãos ungidas que cheiravam a agua de colonia apoiadas ao castão d'ouro da bengala, todo rodeado de senhoras em extase e cheias d'um riso beato, cantava, para as entreter, com a sua bella voz:


Mulatinha da Bahia,
Nascida no Capujá...


Um anno antes de entrar para o seminario o tio fel-o ir a um mestre para se affirmar mais no latim, e dispensou-o de estar ao balcão. Pela primeira vez na sua existencia Amaro possuiu liberdade. Ia só á escóla, passeava pelas ruas. Viu a cidade, o exercicio de infanteria, espreitou ás portas dos cafés, leu os cartazes dos theatros. Sobretudo começára a reparar muito nas mulheres—e vinham-lhe, de tudo o que via, grandes melancolias. A sua hora triste era ao anoitecer, quando voltava da escóla, ou aos domingos depois de ter ido passear com o caixeiro ao jardim da Estrella. O seu quarto ficava em cima, na trapeira, com uma janellinha n'um vão sobre os telhados. Encostava-se alli olhando, e via parte da cidade baixa que a pouco e pouco se alumiava de pontos de gaz: parecia-lhe perceber, vindo de lá, um rumor indefinido: era a vida que não conhecia e que julgava maravilhosa, com cafés abrazados de luz e mulheres que arrastam ruge-ruges de sêdas pelos perystillos dos theatros; perdia-se em imaginações vagas, e de repente appareciam-lhe no fundo negro da noite fórmas femininas, por fragmentos, [34] uma perna com botinas de duraque e a meia muito branca, ou um braço roliço arregaçado até ao hombro... Mas em baixo, na cozinha, a criada começava a lavar a louça, cantando: era uma rapariga gorda, muito sardenta; e vinham-lhe então desejos de descer, ir roçar-se por ella, ou estar a um canto a vêl-a escaldar os pratos; lembravam-lhe outras mulheres que vira nas viellas, de saias engommadas e ruidosas, passeando em cabello, com botinas cambadas: e, da profundidade do seu sêr, subia-lhe uma preguiça, como que a vontade de abraçar alguem, de não se sentir só. Julgava-se infeliz, pensava em matar-se. Mas o tio chamava-o de baixo:

—Então tu não estudas, mariola?

E d'ahi a pouco, sobre o Tito-Livio, cabeceando de somno, sentindo-se desgraçado, roçando os joelhos um contra o outro, torturava o diccionario.

Por esse tempo começava a sentir um certo afastamento pela vida de padre, porque não poderia casar. Já as convivencias da escóla tinham introduzido na sua natureza effeminada curiosidades, corrupções. Ás escondidas fumava cigarros: emmagrecia e andava mais amarello.


Entrou no seminario. Nos primeiros dias os longos corredores de pedra um pouco humidos, as lampadas tristes, os quartos estreitos e gradeados, as batinas negras, o silencio regulamentado, o toque [35] das sinetas—deram-lhe uma tristeza lugubre, aterrada. Mas achou logo amizades; o seu rosto bonito agradou. Começaram a tratal-o por tu, a admittil-o, durante as horas de recreio ou nos passeios do domingo, ás conversas em que se contavam anecdotas dos mestres, se calumniava o reitor, e perpetuamente se lamentavam as melancolias da clausura: porque quasi todos fallavam com saudade das existencias livres que tinham deixado: os da aldeia não podiam esquecer as claras eiras batidas do sol, as esfolhadas cheias de cantigas e de abraços, as filas da boiada que recolhe, emquanto um vapor se exhala dos prados; os que vinham das pequenas villas lamentavam as ruas tortuosas e tranquillas d'onde se namoram as visinhas, os alegres dias de mercado, as grandes aventuras do tempo em que se estuda latim. Não lhes bastava o pateo do recreio lageado, com as suas arvores definhadas, os altos muros somnolentos, o monotono jogo da bola: abafavam na estreiteza dos corredores, na sala de Santo Ignacio, onde se faziam as meditações da manhã e se estudavam á noite as lições; e invejavam todos os destinos livres ainda os mais humildes—o almocreve que viam passar na estrada tocando os seus machos, o carreiro que ia cantarolando ao aspero chiar das rodas, e até os mendigos errantes, apoiados ao seu cajado, com o seu alforge escuro.

Da janella d'um corredor via-se uma volta de estrada; á tardinha uma diligencia costumava passar, levantando a poeira, entre os estalidos do chicote, ao [36] trote das tres eguas, carregada de bagagens; passageiros alegres, que levavam os joelhos bem embrulhados, sopravam o fumo dos charutos; quantos olhares os seguiam! quantos desejos iam viajando com elles para as alegres villas e para as cidades, pela frescura das madrugadas ou sob a claridade das estrellas!

E no refeitorio, diante do escasso caldo de hortaliça, quando o regente de voz grossa começava a lêr monotonamente as cartas d'algum missionario da China ou as Pastoraes do senhor Bispo, quantas saudades dos jantares de familia! As boas postas de peixe! o tempo da matança! os rojões quentes que chiam no prato! os sarrabulhos cheirosos!

Amaro não deixava coisas queridas: vinha da brutalidade do tio, do rosto enfastiado da tia coberto de pó d'arroz; mas insensivelmente poz-se tambem a ter saudades dos seus passeios aos domingos, da claridade do gaz e das voltas da escóla com os livros n'uma correia, quando parava encostado á vitrina das lojas a contemplar a nudez das bonecas!

Lentamente, porém, com a sua natureza incaracteristica, foi entrando como uma ovelha indolente na regra do seminario. Decorava com regularidade os seus compendios; tinha uma exactidão prudente nos serviços ecclesiasticos; e calado, encolhido, curvando-se muito baixo diante dos lentes—chegou a ter boas notas.

Nunca pudera comprehender os que pareciam gozar o seminario com beatitude e maceravam os joelhos, [37] ruminando, com a cabeça baixa, textos da Imitação ou de Santo Ignacio; na capella, com os olhos em alvo, empallideciam d'extase; mesmo no recréio, ou nos passeios, iam lendo algum volumesinho de Louvores a Maria; e cumpriam com delicia as regras mais miudas—até subir só um degrau de cada vez, como recommenda S. Boaventura. A esses o seminario dava um ante-gosto do céo: a elle só lhe offerecia as humilhações d'uma prisão, com os tedios d'uma escóla.

Não comprehendia tambem os ambiciosos: os que queriam ser caudatarios d'um bispo, e nas altas salas dos paços episcopaes erguer os reposteiros de velho damasco; os que desejavam viver nas cidades depois de ordenados, servir uma igreja aristocratica, e, diante das devotas ricas que se accumulam no frou-frou das sêdas sobre o tapete do altar-mór, cantar com voz sonora. Outros sonhavam até destinos fóra da Igreja: ambicionavam ser militares e arrastar nas ruas lageadas o tlim-tlim d'um sabre; ou a farta vida da lavoura, e desde a madrugada, com um chapéo desabado e bem montados, trotar pelos caminhos, dar ordens nas largas eiras cheias de medas, apear á porta das adegas. E, a não ser alguns devotos, todos, ou aspirando ao sacerdocio ou aos destinos seculares, queriam deixar a estreiteza do seminario para comer bem, ganhar dinheiro e conhecer as mulheres.

Amaro não desejava nada:

—Eu nem sei..., dizia elle melancolicamente. [38]

No entretanto, escutando por sympathia aquelles para quem o seminario era o «tempo das galés», sahia muito perturbado d'aquellas conversas cheias de impaciente ambição da vida livre. Ás vezes fallavam de fugir. Faziam planos, calculando a altura das janellas, as peripecias da noite negra pelos negros caminhos: anteviam balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes de mulheres. Amaro ficava todo nervoso: sobre o seu catre, alta noite, revolvia-se sem dormir e, no fundo das suas imaginações e dos seus sonhos, ardia, como uma braza silenciosa, o desejo da Mulher.

Na sua cella havia uma imagem da Virgem coroada de estrellas, pousada sobre a esphera, com o olhar errante pela luz immortal, calcando aos pés a serpente. Amaro voltava-se para ella como para um refugio, rezava-lhe a Salve-Rainha: mas, ficando a contemplar a lithographia, esquecia a santidade da Virgem, via apenas diante de si uma linda moça loura; amava-a; suspirava; despindo-se olhava-a de revez lubricamente; e mesmo a sua curiosidade ousava erguer as pregas castas da tunica azul da imagem e suppôr fórmas, redondezas, uma carne branca... Julgava então vêr os olhos do Tentador luzir na escuridão do quarto; aspergia a cama d'agua benta; mas não se atrevia a revelar estes delirios, no confessionario, ao domingo.

Quantas vezes ouvira, nas prédicas, o mestre de Moral fallar, com a sua voz roufenha, do Peccado, comparal-o á serpente e, com palavras unctuosas e [39] gestos arqueados, deixando cahir vagarosamente a pompa mellíflua dos seus periodos, aconselhar os seminaristas a que, imitando a Virgem, calcassem aos pés a serpente ominosa! E depois era o mestre de Theologia mystica que fallava, sorvendo o seu rapé, no dever de vencer a Natureza! E citando S. João de Damasco e S. Chrysologo, S. Cypriano e S. Jeronymo, explicava os anathemas dos santos contra a Mulher, a quem chamava, segundo as expressões da Igreja, Serpente, Dardo, Filha da mentira, Porta do inferno, Cabeça do crime, Escorpião...

—E como disse o nosso padre S. Jeronymo,—e assoava-se estrondosamente—Caminho de iniquidades, iniquitas via!

Até nos compendios encontrava a preoccupação da Mulher! Que sêr era esse, pois, que através de toda a theologia ora era collocada sobre o altar como a Rainha da Graça, ora amaldiçoada com apostrophes barbaras? Que poder era o seu, que a legião dos santos ora se arremessa ao seu encontro, n'uma paixão extatica, dando-lhe por acclamação o profundo reino dos céos,—ora vai fugindo diante d'ella como do Universal Inimigo, com soluços de terror e gritos d'odio, e escondendo-se, para a não vêr, nas thebaidas e nos claustros, vai alli morrendo do mal de a ter amado? Sentia, sem as definir, estas perturbações! ellas renasciam, desmoralisavam-no perpetuamente: e já antes de fazer os seus votos desfallecia no desejo de os quebrar.

E em redor d'elle sentia iguaes rebelliões da [40] natureza: os estudos, os jejuns, as penitencias podiam domar o corpo, dar-lhe habitos machinaes, mas dentro os desejos moviam-se silenciosamente, como n'um ninho serpentes imperturbadas. Os que mais soffriam eram os sanguineos, tão doloridamente apertados na Regra como os seus grossos pulsos plebeus nos punhos das camisas. Assim, quando estavam sós, o temperamento irrompia: luctavam, faziam forças, provocavam desordens. Nos lymphaticos a natureza comprimida produzia as grandes tristezas, os silencios molles: desforravam-se então no amor dos pequenos vícios: jogar com um velho baralho, lêr um romance, obter de intrigas demoradas um maço de cigarros—quantos encantos do peccado!

Amaro por fim quasi invejava os estudiosos; ao menos esses estavam contentes, estudavam perpetuamente, escrevinhavam notas no silencio da alta livraria, eram respeitados, usavam oculos, tomavam rapé. Elle mesmo tinha ás vezes ambições repentinas da sciencia; mas diante dos vastos in-folios vinha-lhe um tedio insuperavel. Era no emtanto devoto: rezava, tinha fé illimitada em certos santos, um terror angustioso de Deus. Mas odiava a clausura do seminario! A capella, os chorões do pateo, as comidas monotonas do longo refeitorio lageado, os cheiros dos corredores, tudo lhe dava uma tristeza irritada: parecia-lhe que seria bom, puro, crente, se estivesse na liberdade d'uma rua ou na paz d'um quintal, fóra d'aquellas negras paredes. Emmagrecia, tinha suores eticos: e mesmo no ultimo anno, depois [41] do serviço pesado da Semana Santa, como começavam os calores, entrou na enfermaria com uma febre nervosa.


Ordenou-se emfim pelas temporas de S. Matheus; e pouco tempo depois recebeu, ainda no seminario, esta carta do snr. padre Liset:

«Meu querido filho e novo collega.—Agora que está ordenado, entendo em minha consciencia que devo dar-lhe conta do estado dos seus negocios, pois quero cumprir até ao fim o encargo com que carregou os meus hombros debeis a nossa chorada marqueza, attribuindo-me a honra de administrar o legado que lhe deixou. Porque, ainda que os bens mundanos pouco deviam importar a uma alma votada ao sacerdocio, são sempre as boas contas que fazem os bons amigos. Saberá, pois, meu querido filho, que o legado da querida marqueza—para quem deve erguer em sua alma uma gratidão eterna—está inteiramente exhausto. Aproveito esta occasião para lhe dizer que depois da morte de seu tio, sua tia, tendo liquidado o estabelecimento, se entregou a um caminho que o respeito me impede de qualificar: cahiu sob o imperio das paixões, e tendo-se ligado illegitimamente, viu os seus bens perdidos juntamente com a sua pureza, e hoje estabeleceu uma casa de hospedes na rua dos Calafates n.º 53. Se toco n'estas impurezas, tão improprias de que um tenro levita [42] como o meu querido filho tenha d'ellas conhecimento, é porque lhe quero dar cabal relação da sua respeitavel familia. Sua irmã, como decerto sabe, casou rica em Coimbra, e ainda que no casamento não é o ouro que devemos apreciar, é todavia importante, para futuras circumstancias, que o meu querido filho esteja de posse d'este facto. Do que me escreveu o nosso querido reitor a respeito de o mandarmos para a freguezia de Feirão, na Gralheira, vou fallar com algumas pessoas importantes que têm a extrema bondade de attender um pobre padre que só pede a Deus misericordia. Espero, todavia, conseguir. Persevere, meu querido filho, nos caminhos da virtude, de que sei que a sua boa alma está repleta, e creia que se encontra a felicidade n'este nosso santo ministerio quando sabemos comprehender quantos são os balsamos que derrama no peito e quantos os refrigerios que dá—o serviço de Deus! Adeus, meu querido filho e novo collega. Creia que sempre o meu pensamento estará com o pupillo da nossa chorada marqueza, que decerto do céo, onde a elevaram as suas virtudes, supplica á Virgem, que ella tanto serviu e amou, a felicidade do seu caro pupillo.» Liset.

«P. S.—O appellido do marido de sua irmã é Trigoso.» Liset.

Dois mezes depois Amaro foi nomeado parocho de Feirão, na Gralheira, serra da Beira-Alta. Esteve alli desde outubro até ao fim das neves.

Feirão é uma parochia pobre de pastores e [43] n'aquella época quasi deshabitada. Amaro passou o tempo muito ocioso, ruminando o seu tedio á lareira, ouvindo fóra o inverno bramir na serra. Pela primavera vagaram nos districtos de Santarem e de Leiria parochias populosas, com boas congruas. Amaro escreveu logo á irmã contando a sua pobreza em Feirão; ella mandou-lhe, com recommendações de economia, doze moedas para ir a Lisboa requerer. Amaro partiu immediatamente. Os ares lavados e vivos da serra tinham-lhe fortificado o sangue; voltava robusto, direito, sympathico, com uma boa côr na pelle trigueira.

Logo que chegou a Lisboa foi á rua dos Calafates n.º 53, a casa da tia: achou-a velha, com laços vermelhos n'uma cuia enorme, toda coberta de pó d'arroz. Tinha-se feito devota, e foi com uma alegria piedosa que abriu os seus magros braços a Amaro.

-Como estás bonito! Ora não ha! Quem te viu! Ih, Jesus! que mudança!

Admirava-lhe a batina, a corôa: e contando-lhe as suas desgraças, com exclamações sobre a salvação da sua alma e sobre a carestia dos generos, foi-o levando para o terceiro andar, a um quarto que dava para o saguão.

—Ficas aqui como um abbade, disse-lhe ella. E baratinho!... Ai! ter-te de graça queria eu, mas... Tenho sido muito infeliz, Joãosinho!... Ai! desculpa, Amaro! Estou sempre com o Joãosinho na cabeça...

Amaro procurou logo ao outro dia o padre Liset em S. Luiz. Tinha ido para França. Lembrou-se então [44] da filha mais nova da senhora marqueza d'Alegros, a snr.a D. Luiza, que estava casada com o conde de Ribamar, conselheiro d'Estado, com influencia, regenerador fiel desde cincoenta e um e duas vezes ministro do reino.

E, por conselho da tia, Amaro, logo que metteu o seu requerimento, foi uma manhã a casa da snr.a condessa de Ribamar, a Buenos-Ayres. Á porta um coupé esperava.

—A senhora condessa vai sahir, disse um criado de gravata branca e quinzena de alpaca, encostado á hombreira do pateo, de cigarro na boca.

N'esse momento, d'uma porta de batentes de baena verde, sobre um degrau de pedra, ao fundo do pateo lageado, uma senhora sahia, vestida de claro. Era alta, magra, loura, com pequeninos cabellos frisados sobre a testa, lunetas d'ouro n'um nariz comprido e agudo, e no queixo um signalzinho de cabellos claros.

—A senhora condessa já me não conhece..., disse Amaro com o chapéo na mão, adiantando-se curvado. Sou o Amaro.

—O Amaro!? disse ella como estranha ao nome. Ah! bom Jesus, quem elle é! Ora não ha! Está um homem! Quem diria!

Amaro sorria-se.

—Eu podia lá esperar! continuou ella admirada. E está agora em Lisboa?

Amaro contou a sua nomeação para Feirão, a pobreza da parochia... [45]

—De maneira que vim requerer, senhora condessa.

Ella escutava-o com as mãos apoiadas n'uma alta sombrinha de sêda clara, e Amaro sentia vir d'ella um perfume de pó d'arroz e uma frescura de cambraias.

—Pois deixe estar, disse ella, fique descansado. Meu marido ha de fallar. Eu me encarrego d'isso. Olhe, venha por cá.—E com o dedo sobre o canto da boca:—Espere, ámanhã vou para Cintra. Domingo, não. O melhor é d'aqui a quinze dias. D'aqui a quinze dias pela manhã, sou certa.—E rindo com os seus largos dentes frescos:—Parece que o estou a vêr traduzir Chateaubriand com a mana Luiza! Como o tempo passa!

—Passa bem a senhora sua mana? perguntou Amaro.

—Sim, bem. Está n'uma quinta em Santarem.

Deu-lhe a mão, calçada de peau de suède, n'um aperto sacudido que fez tilintar os seus braceletes d'ouro, e saltou para o coupé, magra e ligeira, com um movimento que levantou brancuras de saias.

Amaro começou então a esperar. Era em julho, no pleno calor. Dizia missa pela manhã em S. Domingos, e durante o dia, de chinelos e casaco de ganga, arrastava a sua ociosidade pela casa. Ás vezes ia conversar com a tia para a sala de jantar; as janellas estavam cerradas, na penumbra zumbia a monotona susurração das moscas; a tia a um canto do [46] velho canapé de palhinha fazia crochet, com a luneta encavallada na ponta do nariz; Amaro, bocejando, folheava um antigo volume do Panorama.

Á noitinha sahia, a dar duas voltas no Rocio. Abafava-se, no ar pesado e immovel: a todos os cantos se apregoava monotonamente agua fresca! Pelos bancos, debaixo das arvores, vadios remendados dormitavam; em redor da praça, sem cessar, caleches de aluguel vazias rodavam vagarosamente; as claridades dos cafés reluziam; e gente encalmada, sem destino, movia, bocejando, a sua preguiça pelos passeios das ruas.

Amaro então recolhia, e no seu quarto, com a janella aberta ao calor da noite, estirado em cima da cama, em mangas de camisa, sem botas, fumava cigarros, ruminava as suas esperanças. A cada momento lhe acudiam, com rebates de alegria, as palavras da senhora condessa: fique descansado, meu marido ha de fallar! E via-se já parocho n'uma bonita villa, n'uma casa com quintal cheio de couves e de saladas frescas, tranquillo e importante, recebendo bandejas de dôce das devotas ricas.

Vivia então n'um estado de espirito muito repousado. As exaltações, que no seminario lhe causava a continencia, tinham-se acalmado com as satisfações que lhe dera em Feirão uma grossa pastora, que elle gostava de vêr ao domingo tocar á missa, dependurada da corda do sino, rolando nas saias de saragoça, e a face a estourar de sangue. Agora, sereno, pagava pontualmente ao céo as orações que manda [47] o ritual, trazia a carne contente e calada, e procurava estabelecer-se regaladamente.

No fim de quinze dias foi a casa da senhora condessa.

—Não está, disse-lhe um criado da cavallariça.

Ao outro dia voltou, já inquieto. Os batentes verdes estavam abertos; e Amaro subiu devagar, pisando, muito acanhado, o largo tapete vermelho fixado com varões de metal. Da alta claraboia cahia uma luz suave; ao cimo da escada, no patamar, sentado n'uma banqueta de marroquim escarlate, um criado encostado á parede branca envernizada, com a cabeça pendente e o beiço cahido, dormia. Fazia um grande calor; aquelle alto silencio aristocratico aterrava Amaro; esteve um momento com o seu guardasol pendente do dedo minimo, hesitando; tossiu devagarinho, para acordar o criado que lhe pareceia terrivel com a sua bella suiça preta, o seu rico grilhão d'ouro; e ia descer quando ouviu por detraz d'um reposteiro um riso grosso de homem. Sacudiu com o lenço o pó esbranquiçado dos sapatos, puxou os punhos, e entrou muito vermelho n'uma larga sala com estofos de damasco amarello; uma grande luz entrava das varandas abertas, e viam-se arvoredos de jardim. No meio da sala tres homens de pé conversavam. Amaro adiantou-se, balbuciou:

—Não sei se incommódo...

Um homem alto, de bigode grisalho e oculos de ouro, voltou-se surprehendido, com o charuto ao canto [48] da boca e as mãos nos bolsos. Era o senhor conde.

—Sou Amaro...

—Ah, disse o conde, o senhor padre Amaro! Conheço muito bem! Tem a bondade... Minha mulher fallou-me. Tem a bondade...

E dirigindo-se a um homem baixo e repleto, quasi calvo, de calças brancas muito curtas:

—É a pessoa de quem lhe fallei.—Voltou-se para Amaro:—É o senhor ministro.

Amaro curvou-se, servilmente.

—O senhor padre Amaro, disse o conde de Ribamar, foi creado de pequeno em casa de minha sogra. Nasceu lá, creio eu...

—Saiba o senhor conde que sim, disse Amaro que se conservava afastado, com o guardasol na mão.

—Minha sogra, que era toda devota e uma completa senhora,—já não ha d'isso!—fel-o padre. Houve até um legado, creio eu... Emfim, aqui o temos parocho... Onde, senhor padre Amaro?

—Feirão, excellentissimo senhor.

—Feirão!?... disse o ministro estranhando o nome.

—Na serra da Gralheira, informou logo o outro sujeito, ao lado. Era um homem magro, entalado n'uma sobrecasaca azul, muito branco de pelle, com soberbas suiças d'um negro de tinta e um admiravel cabello lustroso de pomada, apartado até ao cachaço n'uma risca perfeita. [49]

—Emfim, resumiu o conde, um horror! Na serra, uma freguezia pobre, sem distracções, com um clima horrivel...

—Eu metti já requerimento, excellentissimo senhor, arriscou Amaro timidamente.

—Bem, bem, affirmou o ministro. Ha de arranjar-se.—E mascava o seu charuto.

—É uma justiça, disse o conde. Mais, é uma necessidade! Os homens novos e activos devem estar nas parochias difficeis, nas cidades... É claro! Mas não: olhe, lá ao pé da minha quinta, em Alcobaça, ha um velho, um gottoso, um padre-mestre antigo, um imbecil!... Assim perde-se a fé.

—É verdade, disse o ministro, mas essas collocações nas boas parochias devem naturalmente ser recompensas dos bons serviços. É necessario o estimulo...

—Perfeitamente, replicou o conde; mas serviços religiosos, profissionaes, serviços á Igreja, não serviços aos governos.

O homem das soberbas suiças negras teve um gesto d'objecção.

—Não acha? perguntou-lhe o conde.

—Respeito muito a opinião de vossa excellencia, mas se me permitte... Sim, digo eu, os parochos na cidade são-nos d'um grande serviço nas crises eleitoraes. D'um grande serviço!

—Pois sim. Mas...

—Olhe vossa excellencia, continuou elle, sôfrego da palavra. Olhe vossa excellencia em Thomar. [50] Porque perdemos? Pela attitude dos parochos. Nada mais.

O conde acudiu:

—Mas perdão, não deve ser assim; a religião, o clero não são agentes eleitoraes.

—Perdão... queria interromper o outro.

O conde suspendeu-o, com um gesto firme; e gravemente, em palavras pausadas, cheias da auctoridade d'um vasto entendimento:

—A religião, disse elle, póde, deve mesmo auxiliar os governos no seu estabelecimento, operando, por assim dizer, como freio...

—Isso, isso! murmurou arrastadamente o ministro, cuspindo pelliculas mascadas de charuto.

—Mas descer ás intrigas, continuou o conde devagar, aos imbroglios... Perdôe-me, meu caro amigo, mas não é d'um christão.

—Pois sou-o, senhor conde! exclamou o homem das suiças soberbas. Sou-o a valer! Mas tambem sou liberal. E entendo que no governo representativo... Sim, digo eu... com as garantias mais solidas...

—Olhe, interrompeu o conde, sabe o que isso faz? desacredita o clero e desacredita a politica.

—Mas são ou não as maiorias um principio sagrado? gritava rubro o das suiças, accentuando o adjectivo.

—São um principio respeitavel.

—Upa! upa, excellentissimo senhor! upa!

O padre Amaro escutava, immovel.

—Minha mulher ha de querer vêl-o, disse-lhe [51] então o conde. E dirigindo-se a um reposteiro que levantou:—Entre. É o senhor padre Amaro, Joanna!

Era uma sala forrada de papel branco assetinado, com moveis estofados de casimira clara. Nos vãos das janellas, entre as cortinas de pregas largas d'uma fazenda adamascada côr de leite, apanhadas quasi junto do chão por faxas de sêda, arbustos delgados, sem flôr, erguiam em vasos brancos a sua folhagem fina. Uma meia luz fresca dava a todas aquellas alvuras um tom delicado de nuvem. Nas costas d'uma cadeira uma arara empoleirada, firme n'um só pé negro, coçava vagarosamente, com contracções aduncas, a sua cabeça verde. Amaro, embaraçado, curvou-se logo para um canto do sofá, onde viu os cabellinhos louros e frisados da senhora condessa que lhe enchiam vaporosamente a testa, e os aros de ouro da sua luneta reluzindo. Um rapaz gordo, de face rechonchuda, sentado diante d'ella n'uma cadeira baixa, com os cotovêlos sobre os joelhos abertos, occupava-se em balançar, como um pendulo, um pince-nez de tartaruga. A condessa tinha no regaço uma cadellinha, e com a sua mão sêcca e fina, cheia de veias, acamava-lhe o pêllo branco como algodão.

—Como está, snr. Amaro?—A cadella rosnou.—Quieta, Joia... Sabe que já fallei no seu negocio? Quieta, Joia... O ministro está alli.

—Sim, minha senhora, disse Amaro, de pé.

—Sente-se aqui, senhor padre Amaro.

Amaro pousou-se á beira d'um fauteil, com o [52] seu guardasol na mão—e reparou então n'uma senhora alta que estava de pé, junto do piano, fallando com um rapaz louro.

—Que tem feito estes dias, snr. Amaro? disse a condessa. Diga-me uma coisa: sua irmã?

—Está em Coimbra, casou.

—Ah! casou! disse a condessa, fazendo girar os seus anneis.

Houve um silencio. Amaro, d'olhos baixos, passava, com um gesto embaraçado e errante, os dedos pelos beiços.

—O senhor padre Liset está para fóra? perguntou.

—Está em Nantes. Tinha uma irmã a morrer, disse a condessa. Está o mesmo sempre; muito amavel, muito dôce. É a alma mais virtuosa!...

—Eu prefiro o padre Felix, disse o rapaz gordo estirando as pernas.

—Não diga isso, primo! Jesus, brada aos céos! Pois então o padre Liset, tão respeitavel!... E depois outras maneiras de dizer as coisas, com uma bondade... Vê-se que é um coração delicado...

—Pois sim, mas o padre Felix...

—Ai, nem diga isso! Que o padre Felix é uma pessoa de muita virtude, decerto; mas o padre Liset tem uma religião mais...—E com um gesto delicado procurava a palavra:—mais fina, mais distincta... Emfim, vive com outra gente.—E sorrindo para Amaro:—Pois não acha?

Amaro não conhecia o padre Felix, não se recordava do padre Liset. [53]

—Já é velho o senhor padre Liset, observou ao acaso.

—Crê? disse a condessa. Mas muito bem conservado! E que vivacidade, que enthusiasmo!... Ai, é outra coisa!—E voltando-se para a senhora que estava junto do piano:—Pois não achas, Thereza?

—Já vou, respondeu Thereza, toda absorvida.

Amaro afirmou-se então n'ella. Pareceu-lhe uma rainha, ou uma deusa, com a sua alta e forte estatura, uma linha de hombros e de seio magnifica; os cabellos pretos um pouco ondeados destacavam sobre a pallidez do rosto aquilino semelhante ao perfil dominador de Marie Antoinette; o seu vestido preto, de mangas curtas e decote quadrado, quebrava, com as pregas da cauda muito longa toda adornada de rendas negras, o tom monotono das alvuras da sala; o collo, os braços estavam cobertos por uma gaze preta, que fazia apparecer através a brancura da carne; e sentia-se nas suas fórmas a firmeza dos marmores antigos, com o calor d'um sangue rico.

Fallava baixo, sorrindo, n'uma lingua aspera que Amaro não comprehendia, cerrando e abrindo o seu leque preto—e o rapaz louro, bonito, escutava-a retorcendo a ponta d'um bigode fino, com um quadrado de vidro entalado no olho.

—Havia muita devoção na sua parochia, snr. Amaro? perguntava no emtanto a condessa.

—Muita, muito boa gente.

—É onde ainda se encontra alguma fé, é nas aldeias, [54] considerou ella com um tom piedoso.—Queixou-se da obrigação de viver na cidade, nos captiveiros do luxo: desejaria habitar sempre na sua quinta de Carcavellos, rezar na pequena capella antiga, conversar com as boas almas da aldeia!—e a sua voz tornára-se terna.

O rapaz rechonchudo ria-se:

—Ora, prima! dizia; ora, prima!—Não, elle, se o obrigassem a ouvir missa n'uma capellinha de aldeia, até lhe parecia que perdia a fé!... Não comprehendia, por exemplo, a religião sem musica... Era lá possivel uma festa religiosa sem uma boa voz de contralto!?

—Sempre é mais bonito, disse Amaro.

—Está claro que é. É outra coisa! Tem cachet! Ó prima, lembra-se d'aquelle tenor... como se chamava elle? O Vidalti. Lembra-se do Vidalti, na quinta-feira de Endoenças, nos Inglezinhos? O tantum ergo?

—Eu preferia-o no Baile de mascaras, disse a condessa.

—Olhe que não sei, prima, olhe que não sei!

No emtanto o rapaz louro viera apertar a mão á senhora condessa, fallando-lhe baixo, muito risonho. Amaro admirava a nobreza da sua estatura, a doçura do seu olhar azul; reparou que lhe cahira uma luva, e apanhou-lh'a servilmente. Quando elle sahiu Thereza, depois de se ter aproximado vagarosamente da janella e olhado para a rua—foi sentar-se n'uma causeuse com um abandono que punha em relêvo a [55] magnifica esculptura do seu corpo; e voltando-se preguiçosamente para o rapaz rechonchudo:

—Vamo-nos, João?

A condessa disse-lhe então:

—Sabes que o senhor padre Amaro foi creado commigo em Bemfica?

Amaro fez-se vermelho: sentia que Thereza pousava sobre elle os seus bellos olhos d'um negro humido como o setim preto coberto de agua.

—Está na provincia agora? perguntou ella, bocejando um pouco.

—Sim, minha senhora, vim ha dias.

—Na aldeia? continuou ella, abrindo e cerrando vagarosamente o seu leque.

Amaro via pedras preciosas reluzirem nos seus dedos finos; disse, acariciando o cabo do guardasol:

—Na serra, minha senhora.

—Imagina tu, acudiu a condessa, é um horror! Ha sempre neve, diz que a igreja não tem telhado, são tudo pastores. Uma desgraça! Eu pedi ao ministro a vêr se o mudavamos. Pede-lhe tu tambem...

—O quê? disse Thereza.

A condessa contou que Amaro requerera para uma parochia melhor. Fallou de sua mãi, da amizade que ella tinha a Amaro...

—Morria-se por elle. Ora um nome que ella lhe dava... Não se lembra?

—Não sei, minha senhora.

—Frei Maleitas!... Tem graça! Como o snr. Amaro era amarellito, sempre mettido na capella... [56]

Mas Thereza, dirigindo-se á condessa:

—Sabes com que se parece este senhor?

A condessa affirmou-se, o rapaz rechonchudo fincou a luneta.

—Não se parece com aquelle pianista do anno passado? continuou Thereza. Não me lembra agora o nome...

—Bem sei, o Jalette, disse a condessa. Bastante. No cabello, não.

—Está visto, o outro não tinha corôa!

Amaro fez-se escarlate. Thereza ergueu-se arrastando a sua soberba cauda, sentou-se ao piano.

—Sabe musica? perguntou, voltando-se para Amaro.

—A gente aprende no seminario, minha senhora.

Ella correu a mão, um momento, sobre o teclado de sonoridades profundas, e tocou a phrase do Rigoleto, parecida com o Minuete de Mozart, que diz Francisco I, despedindo-se, no sarau do primeiro acto, da senhora de Crécy—e cujo rhythmo desolado tem a abandonada tristeza de amores que findam, e de braços que se desenlaçam em despedidas supremas.

Amaro estava enlevado. Aquella sala rica com as suas alvuras de nuvem, o piano apaixonado, o collo de Thereza que elle via sob a negra transparencia da gaze, as suas tranças de deusa, os tranquillos arvoredos de jardim fidalgo davam-lhe vagamente a idéa d'uma existencia superior, de romance, passada [57] sobre alcatifas preciosas, em coupés acolchoados, com arias de operas, melancolias de bom gosto e amores d'um gozo raro. Enterrado na elasticidade da causeuse, sentindo a musica chorar aristocraticamente, lembrava-lhe a sala de jantar da tia e o seu cheiro de refogado: e era como o mendigo que prova um creme fino, e, assustado, demora o seu prazer—pensando que vai voltar á dureza das côdeas sêccas e á poeira dos caminhos.

No emtanto Thereza, mudando bruscamente de melodia, cantou a antiga aria inglesa de Haydn, que diz tão finamente as melancolias da separação:


The village seems dead and asleep
When Lubin is away!...


—Bravo! bravo! exclamou o ministro da justiça apparecendo á porta, batendo dôcemente as palmas. Muito bem, muito bem! Deliciosamente!

—Tenho um pedido a fazer-lhe, snr. Correia, disse Thereza erguendo-se logo.

O ministro veio, com uma pressa galante:

—Que é, minha senhora? que é?

O conde e o sujeito de magnificas suiças tinham entrado discutindo ainda.

—A Joanna e eu temos que lhe pedir, disse Thereza ao ministro.

—Eu já pedi! já pedi mesmo duas vezes! acudiu a condessa.

—Mas, minhas senhoras, disse o ministro sentando-se confortavelmente, com as pernas muito estiradas, [58] a face satisfeita: de que se trata? É uma coisa grave? meu Deus! prometto, prometto solemnemente...

—Bem, disse Thereza batendo-lhe com o leque no braço. Então qual é a melhor parochia vaga?

—Ah! disse o ministro comprehendendo e olhando para Amaro, que vergou os hombros, córado.

O homem das suiças, que estava de pé fazendo saltar circumspectamente os berloques, adiantou-se, cheio de informações:

—Das vagas, minha senhora, é Leiria, capital do districto e séde do bispado.

—Leiria? disse Thereza. Bem sei, é onde ha umas ruinas?

—Um castello, minha senhora, edificado por D. Diniz.

—Leiria é excellente!

—Mas perdão, perdão! disse o ministro, Leiria, séde do bispado, uma cidade... O senhor padre Amaro é um ecclesiastico novo...

—Ora, snr. Correia! exclamou Thereza, e o senhor não é novo?

O ministro sorriu, curvando-se.

—Dize alguma coisa, tu, disse a condessa a seu marido, que coçava ternamente a cabeça da arara.

—Parece-me inutil, o pobre Correia está vencido! A prima Thereza chamou-lhe novo!

—Mas perdão, protestou o ministro. Não me parece que seja uma lisonja excepcional; eu não sou tambem tão antigo... [59]

—Oh, desgraçado! gritou o conde, lembra-te que já conspiravas em 1820!

—Era meu pai, calumniador, era meu pai!

Todos riram.

—Snr. Correia, disse Thereza, está entendido. O senhor padre Amaro vai para Leiria!

—Bem, bem, succumbo, disse o ministro com gesto resignado. Mas é uma tyrannia!

Thank you, fez Thereza, estendendo-lhe a mão.

—Mas, minha senhora, estou a estranhal-a, disse o ministro fixando-a.

—Estou contente hoje, disse ella. Olhou um momento para o chão, distrahida, dando pequeninas pancadas no vestido de sêda, levantou-se, foi sentar-se ao piano bruscamente, e recomeçou a dôce aria ingleza:


The village seems dead and asleep
When Lubin is away!...


Entretanto o conde tinha-se aproximado de Amaro, que se erguera.

—É negocio feito, disse-lhe elle. O Correia entende-se com o bispo. D'aqui a uma semana está nomeado. Póde ir descansado.

Amaro fez uma cortezia e, servil, foi dizer ao ministro que estava junto do piano:

—Senhor ministro, eu agradeço...

—Á senhora condessa, á senhora condessa, disse o ministro sorrindo. [60]

—Minha senhora, eu agradeço, veio elle dizer á condessa, todo curvado.

—Ai, agradeça a Thereza! Ella quer ganhar indulgencias, parece.

—Minha senhora... foi elle dizer a Thereza.

—Lembre-me nas suas orações, senhor padre Amaro, disse ella. E continuou, com a sua voz magoada, dizendo ao piano—as tristezas da aldeia quando Lubin esta ausente!


Amaro d'ahi a uma semana soube o seu despacho. Mas não tornára a esquecer aquella manhã em casa da senhora condessa de Ribamar,—o ministro de calças muito curtas, enterrado na poltrona, promettendo o seu despacho; a luz clara e calma do jardim entrevisto; o rapaz alto e louro que dizia yes...Cantava-lhe sempre no cerebro aquella aria triste do Rigoleto; e perseguia-o a brancura dos braços de Thereza sob a gaze negra! Instinctivamente via-os enlaçarem-se devagar, devagar, em torno do pescoço airoso do rapaz louro:—detestava-o então, e a língua barbara que fallava, e a terra heretica d'onde viera; e latejavam-lhe as fontes á idéa de que um dia poderia confessar aquella mulher divina e sentir o seu vestido de sêda preta roçar pela sua batina de lustrina velha, na escura intimidade do confessionario.

Um dia, ao amanhecer, depois de grandes abraços [61] da tia, partiu para Santa Apolonia, com um gallego que lhe levava o bahú. A madrugada rompia. A cidade estava silenciosa, os candieiros apagavam-se. Ás vezes uma carroça passava rolando, abalando a calçada; as ruas pareciam-lhe interminaveis; saloios começavam a chegar montados nos seus burros, com as pernas balouçadas, cobertas de altas botas enlameadas; n'uma ou n'outra rua uma voz aguda já apregoava os jornaes; e os moços dos theatros corriam com o pote da massa, pregando nas esquinas os cartazes.

Quando chegou a Santa Apolonia a claridade do sol alaranjava o ar por detraz dos montes da Outra-Banda: o rio estendia-se, immovel, riscado de correntes de côr de aço sem lustre; e já alguma vela de falua passava, vagarosa e branca.



IV



Ao outro dia, na cidade, fallava-se da chegada do parocho novo, e todos sabiam já que tinha trazido um bahú de lata, que era magro e alto, e que chamava Padre-Mestre ao conego Dias.

As amigas da S. Joanneira,—as intimas—a D. Maria da Assumpção, as Gansosos, tinham ido logo pela manhã a casa d'ella para se pôrem ao facto... Eram nove horas; Amaro sahira com o conego. A S. Joanneira, radiosa, importante, recebeu-as no alto da escada, de mangas arregaçadas, nos arranjos da manhã; e immediatamente, com animação, contou a chegada do parocho, as suas boas maneiras, o que tinha dito...

—Mas venham vossês cá abaixo, sempre quero que vejam. [64]

Foi-lhes mostrar o quarto do padre, o bahú de lata, uma prateleira que lhe arranjára para os livros.

—Está muito bem, está tudo muito bem, diziam as velhas andando pelo quarto, devagar, com respeito, como n'uma igreja.

—Rico capote! observou D. Joaquina Gansoso apalpando o panno das largas bandas que pendiam ao comprido do cabide.—É obra para um par de moedas!

—E a boa roupa branca! disse a S. Joanneira erguendo a tampa do bahú.

O grupo das velhas curvou-se com admiração.

—A mim o que me consola é que elle seja um rapaz novo, disse D. Maria da Assumpção, piedosamente.

—Tambem a mim, disse com auctoridade a D. Joaquina Gansoso. Estar a gente a confessar-se e a vêr o pingo do rapé, como era com o Raposo, credo! até se perde a devoção! E o bruto do José Migueis! Não, lá isso Deus me mate com gente nova!

A S. Joaneira ia mostrando as outras maravilhas do parocho,—um crucifixo que estava ainda embrulhado n'um jornal velho, o album de retratos, onde o primeiro cartão era uma photographia do Papa abençoando a christandade. Todas se extasiaram.

—É o mais que se póde, diziam, é o mais que se póde!

Ao sahir, beijando muito a S. Joanneira, felicitaram-na porque adquirira, hospedando o parocho, uma auctoridade quasi ecclesiastica.

—Vossês apparecem á noite, disse ella do alto da escada.

—Pudera!... gritou D. Maria da Assumpção, já á porta da rua, traçando o seu mantelete.—Pudera!... Para o vermos á vontade!

Ao meio dia veio o Libaninho, o beato mais activo de Leiria; e subindo a correr os degraus, já gritava com a sua voz fina:

—Ó S. Joanneira!

—Sobe, Libaninho, sobe, disse ella, que costurava á janella.

—Então o senhor parocho veio, hein? perguntou o Libaninho, mostrando á porta da sala de jantar o seu rosto gordinho côr de limão, a calva luzidia; e vindo para ella com o passinho miudo, um gingar de quadris:

—Então que tal, que tal? tem bom feitio?

A S. Joaneira recomeçou a glorificação de Amaro: a sua mocidade, o seu ar piedoso, a brancura dos seus dentes...

—Coitadinho! coitadinho! dizia o Libaninho, babando-se de ternura devota.—Mas não se podia demorar, ia para a repartição!—Adeus, filhinha, adeus!—E batia com a sua mão papuda no hombro da S. Joanneira.—Estás cada vez mais gordinha! Olha que rezei hontem a Salve-Rainha que tu me pediste, ingrata!

A criada tinha entrado.

—Adeus, Ruça! Estás magrinha: pega-te com a Senhora Mãi dos Homens.—E avistando Amelia [66] pela porta do quarto entreaberta:—Ai, que estás mesmo uma flôr, Mélinha! Quem se salvava na tua graça bem eu sei!

E apressado, saracoteando-se, com um pigarrinho agudo, desceu a escada rapidamente, ganindo:

—Adeusinho! adeusinho, pequenas!

—Ó Libaninho, vens á noite?

—Ai, não posso, filha, não posso!—E a sua vozinha era quasi chorosa.—Olha que ámanhã é Santa Barbara: tem seis Padre-Nossos de direito!


Amaro fôra visitar o chantre com o conego Dias, e tinha-lhe entregado uma carta de recommendação do senhor conde de Ribamar.

—Conheci muito o senhor conde de Ribamar, disse o chantre. Em quarenta e seis, no Porto. Somos amigos velhos! Era eu cura de Santo Ildefonso: ha que annos isso vai!

E, reclinando-se na velha poltrona de damasco, fallou com satisfação do seu tempo: contou anecdotas da Junta, apreciou os homens de então, imitou-lhes a voz (era uma especialidade de sua excellencia), os tics, as caturrices—sobretudo Manoel Passos, que elle descrevia passeando na Praça Nova, com o comprido casaco pardo e o chapéo de grandes abas, dizendo:

Animo, patriotas! o Xavier aguenta-se! [67]

Os senhores ecclesiasticos da camara riram com gozo. Houve uma grande cordialidade. Amaro sahiu muito lisonjeado.

Depois jantou em casa do conego Dias, e foram passear ambos pela estrada de Marrazes. Uma luz dôce e esbatida alargava-se por todo o campo; havia nos outeiros, no azul do ar, um aspecto de repouso, de meiga tranquilidade; fumos esbranquiçados sahiam dos casaes, e sentiam-se os chocalhos melancolicos dos gados que recolhem. Amaro parou junto da ponte, e disse, olhando em redor a paizagem suave:

—Pois senhores, parece-me que me hei de dar bem aqui!

—Ha de se dar regaladamente, affirmou o conego, sorvendo o seu rapé.

Eram oito horas quando recolheram a casa da S. Joanneira.

As velhas amigas estavam já na sala de jantar. Ao pé do candieiro de petroleo, Amelia costurava.

A snr.a D. Maria da Assumpção vestira-se, como nos domingos, de sêda preta: o seu chinó, d'um louro avermelhado, estava coberto com as rendas d'um enfeite negro; as mãos descarnadas, calçadas de mitenes, solemnemente pousadas no regaço, reluziam de anneis; do broche sobre o pescoço até ao cinto, um grosso grilhão d'ouro cahia com passadores lavrados. Conservava-se direita e ceremoniosa, com a cabeça um pouco de lado, os oculos d'ouro assentes sobre o nariz acavallado: tinha no queixo um grande [68] signal cabelludo; e quando se fallava de devoções ou de milagres dava um geito ao pescoço, e abria um sorriso mudo que descobria os seus enormes dentes esverdeados, cravados nas gengivas como cunhas. Era viuva e rica, e soffria d'um catarrho chronico.

—Aqui tem o senhor parocho novo, D. Maria, disse-lhe a S. Joanneira.

Ella ergueu-se, fez uma mesura com um movimento de quadris, commovida.

—Estas são as senhoras Gansosos, ha de ter ouvido..., disse a S. Joanneira ao parocho.

Amaro comprimentou timidamente. Eram duas irmãs. Passavam por ter algum dinheiro, mas costumavam receber hospedes. A mais velha, a snr.a D. Joaquina Gansoso, era uma pessoa sêcca, com uma testa enorme e larga, dois olhinhos vivos, o nariz arrebitado, a boca muito espremida. Embrulhada no seu chale, direita, com os braços cruzados, fallava perpetuamente, n'uma voz dominante e aguda, cheia de opiniões. Dizia mal dos homens e dava-se toda á Igreja.

A irmã, a snr.a D. Anna, era extremamente surda. Nunca fallava, e com os dedos cruzados sobre o regaço, os olhos baixos, fazia girar tranquillamente os dois pollegares. Nutrida, com o seu perpetuo vestido preto de riscas amarellas, um rolo de arminho ao pescoço, dormitava toda a noite, e só accentuava a sua presença de vez em quando por suspiros agudos: dizia-se que tinha uma paixão funesta pelo recebedor do correio. Todos a lastimavam, e admirava-se a sua [69] habilidade em recortar papeis para caixas de dôce.

Estava tambem a snr.a D. Josepha, a irmã do conego Dias. Tinha a alcunha de castanha pilada. Era uma creaturinha mirrada, de linhas aduncas, pelle engelhada e côr de cidra, voz sibilante; vivia n'um perpetuo estado de irritação, os olhinhos sempre assanhados, contracções nervosas de birra, toda saturada de fel. Era temida. O maligno doutor Godinho chamava-lhe a estação central das intrigas de Leiria.

—Então passeou muito, senhor parocho? perguntou ella logo impertigando-se.

—Fomos quasi até lá ao fim da estrada de Marrazes, disse o conego, sentando-se pesadamente por detraz da S. Joanneira.

—Não achou bonito, senhor parocho? acudiu snr.a D. Joaquina Gansoso.

—Muito bonito.

Fallaram das lindas paizagens de Leiria, das boas vistas: a snr.a D. Josepha gostava muito do passeio ao pé do rio; até já ouvira dizer que nem em Lisboa havia coisa assim. D. Joaquina Gansoso preferia a igreja da Encarnação, no alto.

—Desfruta-se muito d'alli.

Amelia disse sorrindo:

—Eu por mim gósto d'aquelle bocado ao pé da ponte, debaixo dos chorões.—E partindo com os dentes o fio da costura:—É tão triste!

Amaro olhou para ella, então, pela primeira vez. Tinha um vestido azul muito justo ao seio bonito; [70] pescoço branco e cheio sahia d'um collarinho voltado; entre os beiços vermelhos e frescos o esmalte dos dentes brilhava; e pareceu ao parocho que um buçosinho lhe punha aos cantos da boca uma sombra subtil e dôce.

Houve um pequeno silencio—o conego Dias com o beiço descahido ia já cerrando as palpebras.

—Que será feito do senhor padre Brito? perguntou D. Joaquina Gansoso.

—Está talvez com a enxaqueca, pobre de Christo! lembrou piedosamente a snr.a D. Maria da Assumpção.

Um rapaz que estava junto do aparador disse então:

—Eu vi-o hoje a cavallo, ia para os lados da Barrosa.

—Homem! disse logo com azedume a irmã do conego, a snr.a D. Josepha Dias, é milagre ter o senhor reparado!

—Porquê, minha senhora? disse elle erguendo-se e chegando-se ao grupo das velhas.

Era alto, todo vestido de preto: sobre o rosto de pelle branca, regular, um pouco fatigado, destacava bem um bigode pequeno muito negro, cahido aos cantos, que elle costumava mordicar com os dentes.

—Ainda elle o pergunta! exclamou a snr.a D. Josepha Dias. O senhor, que nem lhe tira o chapéo!

—Eu!?

—Disse-m'o elle, affirmou ella com uma voz cortante. [71] E acrescentou: Ai, senhor parocho, bem póde chamar o snr. João Eduardo para o bom caminho!—E teve um risinho maligno.

—Mas eu parece-me que não ando no mau caminho, disse elle rindo, com as mãos nos bolsos. E a cada momento os seus olhos se voltavam para Amelia.

—É uma graça! exclamou a snr.a D. Joaquina Gansoso. Olhe, com o que o senhor disse hoje lá em casa, de tarde, da Santa da Arregassa, não ha de ganhar o céo!

—Ora essa! gritou a irmã do conego voltando-se bruscamente para João Eduardo. Então o que tem o senhor a dizer da Santa? Acha talvez que é uma impostora?

—Credo, Jesus! disse a snr.a D. Maria da Assumpção apertando as mãos e fitando João Eduardo com um terror piedoso. Pois elle havia de dizer isso? Cruzes!

—Não, o snr. João Eduardo, affirmou gravemente o conego, que espertára, desdobrando o seu lenço vermelho—não era capaz de dizer uma d'essas.

Amaro perguntou então:

—Quem é a Santa da Arregassa?

—Credo! Pois não tem ouvido fallar, senhor parocho? exclamou n'uma admiração a snr.a D. Maria da Assumpção.

—Ha de ter ouvido, affirmava a snr.a D. Josepha Dias com auctoridade. Diz que os jornaes de Lisboa vem cheios d'isso! [72]

—É com effeito uma coisa bem extraordinaria, ponderou com um tom profundo o conego.

A S. Joanneira interrompeu a meia, e tirando a luneta:

—Ai, não imagina, senhor parocho, é o milagre dos milagres!

—Se é! se é! disseram.

Houve um recolhimento devoto.

—Mas então...? perguntou Amaro, todo curioso.

—Olhe, senhor parocho, começou a snr.a D. Joaquina Gansoso endireitando-se no chale, fallando com solemnidade: a Santa é uma mulher que aqui ha n'uma freguezia perto, que está ha vinte annos na cama...

—Vinte e cinco, advertiu-lhe baixo D. Maria da Assumpção, tocando-lhe com o leque no braço.

—Vinte e cinco? Pois olha, ao senhor chantre ouvi eu dizer vinte.

—Vinte e cinco, vinte e cinco, affirmou a S. Joanneira. E o conego apoiou-a, oscillando gravemente a cabeça.

—Está entrevadinha de todo, senhor parocho! rompeu a irmã do conego, avida de fallar. Parece uma alminha de Deus! Os bracinhos são isto!—E mostrava o dedo minimo.—Para a gente a ouvir é necessario pôr-lhe a orelha ao pé da boca!

—Pois se ella se sustenta da graça de Deus! disse lamentosamente a snr.a D. Maria da Assumpção. Coitadinha! que até a gente lembrar-se...

Houve entre as velhas um silencio commovido. [73] João Eduardo, que por traz das velhas, de pé, com as mãos nos bolsos, sorria mordicando o bigode, disse então:

—Olhe, senhor parocho, a coisa é o que os medicos dizem: é que aquillo é uma doença nervosa.

Aquella irreverencia fez, entre as velhas devotas, um escandalo; a snr.a D. Maria da Assumpção persignou-se logo «á cautela».

—Pelo amor de Deus! gritou a snr.a D. Josepha Dias, o senhor diga isso diante de quem quizer, menos de mim! É uma affronta!

—É que até póde cahir um raio, dizia para os lados, baixo, a snr.a D. Maria da Assumpção, muito aterrada.

—Olhe, tambem lh'o digo, exclamou a snr.a D. Josepha Dias, o senhor é um homem sem religião e sem respeito pelas coisas santas.—E voltando-se para o lado de Amelia, muito azeda:—Olhe, filha minha é que eu lhe não dava!

Amelia córou; e João Eduardo, fazendo-se vermelho tambem, curvou-se sarcasticamente:

—Eu digo o que dizem os medicos. E de resto, acredite que não tenho prentenções a casar com pessoa da sua familia! Nem mesmo comsigo, snr.a D. Josepha!

O conego deu uma risada muito pesada.

—Arreda! Cruzes! gritou ella, furiosa.

—Mas que faz então a Santa? perguntou o padre Amaro, para pacificar.

—Tudo, senhor parocho, disse a snr.a D. Joaquina [74] Gansoso: está sempre de cama, sabe rezas para tudo; pessoa por quem ella peça tem a graça do Senhor; é a gente apegar-se com ella e cura-se de toda a molestia. E depois, quando communga, começa a erguer-se, e fica com o corpo todo no ar, com os olhos erguidos para o céo, que até chega a fazer terror.

Mas n'este momento uma voz disse á porta da sala:

—Ora viva a sociedade! Isto hoje está de truz!

Era um rapaz extremamente alto, amarello, com as faces cavadas, uma grenha riçada, um bigode á D. Quixote; quando ria tinha uma sombra na boca, porque lhe faltavam quasi todos os dentes de diante; e nos seus olhos encovados, de grandes olheiras, errava um sentimentalismo piegas. Trazia uma guitarra na mão.

—Então como vai isso hoje? perguntaram-lhe logo.

—Mal, respondeu elle com voz triste, sentando-se. Sempre as dôres no peito, a tossesita ...

Então não se dava bem com o oleo de figados de bacalhau?

—Qual! fez elle desconsoladamente.

—Uma viagem á Madeira, isso é que era, isso é que era! disse a snr.a D. Joaquina Gansoso com auctoridade.

Elle riu, com uma jovialidade subita:

—Uma viagem á Madeira! Não está má! A D. Joaquina Gansoso tem-nas boas! Um pobre amanuense [75] de administração com dezoito vintens por dia, mulher e quatro filhos... Para a Madeira!

—E como vai ella, a Joannita?

—Coitadita, lá vai! Tem saude, graças a Deus! Gorda, sempre com bom appetite. Os pequenos, os dois mais velhos é que estão doentes; de mais a mais agora a criada tambem cahiu de cama! É o diacho! Paciencia! paciencia!—E encolhia os hombros.

Mas voltando-se para a S. Joanneira, dando-lhe uma palmada no joelho:

—E como vai a nossa Madre-Abbadessa?

Todos riram: e a snr.a D. Joaquina Gansoso informou o parocho que aquelle rapaz, o Arthur Couceiro, era muito engraçado e tinha uma bella voz. Era a melhor da cidade para modinhas.

A Ruça tinha então entrado com o chá; a S. Joanneira, enchendo as chavenas d'alto, dizia:

—Cheguem-se, cheguem-se, filhas, que este é do bom! É da loja do Sousa...

E Arthur offerecia assucar com o seu antigo gracejo:

—Se está azedinho é carregar-lhe no sal!

As velhas sorviam a pequenos goles pelos pires, escolhiam cuidadosamente as torradas, sentia-se o mastigar ruminado dos queixos; e por causa dos pingos da manteiga e das nodoas do chá estendiam prudentemente os lenços sobre o regaço.

—Vai um docinho, senhor parocho? disse Amelia, apresentando-lhe o prato. São da Encarnação, muito fresquinhos. [76]

—Obrigado.

—Aquelle alli. É toucinho do céo.

—Ah! se é do céo... disse elle todo risonho. E olhou para ella, tomando o bolo com a ponta dos dedos.

O snr. Arthur costumava cantar depois do chá. Sobre o piano uma vela alumiava o caderno de musica; e Amelia, logo que a Ruça levou a bandeja, accommodou-se, correu os dedos sobre o teclado amarello.

—Então hoje que ha de ser? perguntou Arthur.

Os pedidos cruzaram-se:

O guerrilheiro! O noivado do sepulchro! O descrido! o Nunca mais!

O conego Dias disse do seu canto, pesadamente:

—Ó Couceiro, vá lá aquella do Tio Cosme, meu bréjeiro!

As mulheres reprovaram:

—Credo! por quem é, senhor conego! Que lembrança!

E a snr.a D. Joaquina Gansoso resumiu:

—Nada: uma coisa de sentimento para o senhor parocho fazer idéa.

—Isso, isso! disseram: uma coisa de sentimento, ó Arthur, uma coisa de sentimento!

Arthur pigarreou, cuspilhou; e dando subitamente á face uma expressão dolorosa, ergueu a voz, cantou lugubremente:


Adeus, meu anjo! eu vou partir sem ti! [77]


Era uma canção dos tempos romanticos de 51, o Adeus! Dizia uma suprema despedida, n'um bosque, por uma tarde pallida d'outono; depois, o homem solitario e precito, que inspirára um amor funesto, ia errar desgrenhado á beira do mar; havia uma sepultura esquecida n'um valle distante, brancas virgens vinham chorar á claridade do luar!

—Muito bonito, muito bonito! murmuravam.

Arthur cantava enternecido, o olhar vago; mas nos intervallos, durante o acompanhamento, sorria em redor—e na sua boca cheia de sombra viam-se os restos de dentes pôdres. O padre Amaro, ao pé da janella, fumando, contemplava Amelia, enlevado n'aquella melodia sentimental e morbida: o seu perfil fino, de encontro á luz, tinha uma linha luminosa; destacava harmoniosamente a curva do seu peito; e elle seguia as suas palpebras de grandes pestanas, que do teclado para a musica se erguiam e se abaixavam com um movimento dôce. João Eduardo, junto d'ella, voltava-lhe as folhas da musica.

Mas Arthur, com a mão sobre o peito, a outra erguida no ar, n'um gesto desolado e vehemente, soltou a ultima estrophe:


E um dia, emfim, d'este viver fatal,
Repousarei na escuridão da campa!


—Bravo! bravo! exclamaram.

E o conego Dias commentou baixo ao parocho:

—Ah! para coisas de sentimento não ha outro.—E [78] bocejando enormemente: Pois menino, tenho tido toda a noite as lulas a conversar cá por dentro.

Mas chegára a hora do loto. Cada um escolhia os seus cartões habituaes; e a snr.a D. Josepha Dias, com o seu olho d'avara a luzir, chocalhava já vivamente o grosso sacco dos numeros.

—Aqui tem um logar, senhor parocho, disse Amelia.

Era junto d'ella. Elle hesitou; mas tinham aberto espaço, e veio sentar-se um pouco córado, ageitando timidamente a volta.

Fez-se logo um grande silencio; e, com a voz dormente, o conego começou a tirar os numeros. A snr.a D. Anna Gansoso dormitava ao seu canto, resonando ligeiramente.

Com o abat-jour as cabeças estavam na penumbra; e a luz crua, cahindo sobre o chale escuro que cobria a mesa, fazia destacar os cartões ennegrecidos do uso e as mãos sêccas das velhas, pousadas em attitudes aduncas, remexendo as marcas de vidro. Sobre o piano aberto a vela derretia-se com uma chamma alta e direita.

O conego rosnava os numeros com as pilherias veneraveis da tradição: 1, cabeça de porco!—3, figura de entremez!

—Precisa-se o vinte e um, dizia uma voz.

—Ternei, murmurava outra com gozo.

E a irmã do conego, sôfrega:

—Chocalhe esses numeros, mano Placido! Vá! [79]

—E traga-me esse quarenta e sete ainda que seja de rastos, dizia o Arthur Couceiro, com a cabeça entre os punhos.

Emfim o conego quinou. E Amelia olhando em redor pela sala:

—Então não joga, snr. João Eduardo? disse ella. Onde está?

João Eduardo sahiu da sombra da janella, por traz da cortina.

—Tome lá este cartão, ande, jogue.

—E receba as entradas, já que está de pé, disse a S. Joanneira. Seja o senhor recebedor!

João Eduardo foi em roda com o pires de porcelana. No fim faltavam dez reis.

—Eu já dei, eu já dei! exclamavam todos, excitados.

Fôra a irmã do conego que não tocára no seu cobre acastellado. João Eduardo disse, curvando-se:

—Parece-me que a snr.a D. Josepha não entrou.

—Eu!? gritou ella, furiosa. Olha uma d'estas! Até fui a primeira! Credo! Duas moedas de cinco reis, por signal! Que tal está o homem!

—Ah! bem, disse elle então, fui eu que me esqueci! Cá ponho.—E rosnou: Beata e ladra!

E a irmã do conego dizia no emtanto baixo á snr.a D. Maria da Assumpção:

—Queria vêr se escapava, o melro! Falta de temor a Deus!

—Só quem não está feliz é o senhor parocho, observaram. [80]

Amaro sorriu. Estava distrahido, e fatigado; ás vezes mesmo esquecia-se de marcar, e Amelia dizia-lhe, tocando-lhe no cotovêlo:

—Olhe que não marcou, senhor parocho!

Tinham já apostado dois ternos: ella ganhára; depois faltou a ambos para quinarem o numero trinta e seis.

Em roda repararam.

—Ora vamos a vêr se quinam ambos, disse a snr.a D. Maria da Assumpção, envolvendo-os no mesmo olhar baboso.

Mas o trinta e seis não sahía; havia outras quadras nos cartões alheios; Amelia receava que quinasse a snr.a D. Joaquina Gansoso, que se mexia muito na cadeira, pedindo o quarenta e oito. Amaro ria, involuntariamente interessado.

O conego tirava os numeros com uma pachorra maliciosa.

—Vá! vá! ande com isso, senhor conego! diziam-lhe.

Amelia, debruçada, os olhos vivos, murmurou:

—Dava tudo para que sahisse o trinta e seis!

—Sim? Ahi o tem... Trinta e seis! disse o conego.

Quinamos! gritou ella, triumphante; e tomando o cartão do parocho e o seu mostrava-os, para conferirem, orgulhosa, muito córada.

—Ora Deus os abençôe, disse o conego, jovial, entornando-lhes diante o pires cheio de moedas de dez reis. [81]

—Parece milagre! considerou a snr.a D. Maria da Assumpção, piedosamente.

Mas tinham dado onze horas; e depois da tumba final as velhas começaram a agasalhar-se. Amelia sentou-se ao piano, tocando ao de leve uma polka. João Eduardo aproximou-se d'ella, e baixando a voz:

—Muitos parabens por ter quinado com o senhor parocho. Que enthusiasmo!—E como ella ia responder:—Boa noite! disse elle sêccamente, embrulhando-se no seu chale-manta com despeito.

A Ruça alumiava. As velhas, pela escada, empacotadas nos abafos, iam ganindo adeusinhos. O snr. Arthur harpejava a guitarra, cantarolando o Descrido.

Amaro foi para o seu quarto, começou a rezar no Breviario; mas distrahia-se, lembravam-lhe as figuras das velhas, os dentes pôdres de Arthur, sobretudo o perfil de Amelia. Sentado á beira da cama, com o Breviario aberto, fitando a luz, via o seu penteado, as suas mãos pequenas com os dedos um pouco trigueiros picados da agulha, o seu buçosinho gracioso...

Sentia a cabeça pesada do jantar do conego e da monotonia do quino, com uma grande sêde além d'isso das lulas e do vinhito do Porto. Quiz beber, mas não tinha agua no quarto. Lembrou-se então que na sala de jantar havia uma bilha d'Extremoz com agua fresca, muito boa, da nascente do Morenal. Calçou as chinelas, tomou o castiçal, subiu devagarinho. Havia luz na sala, estava o reposteiro [82] corrido: ergueu-o e recuou com um ah! Vira n'um relance Amelia, em saia branca, a desfazer o atacador do collete: estava junto do candieiro e as mangas curtas, o decote da camisa deixavam vêr os seus braços brancos, o seio delicioso. Ella deu um pequeno grito, correu para o quarto.

Amaro ficou immovel, com um suor á raiz dos cabellos. Poderiam suspeitar uma offensa! Palavras indignadas iam sahir decerto através do reposteiro do quarto, que ainda se balouçava agitado!

Mas a voz de Amelia, serena, perguntou de dentro:

—Que queria, senhor parocho?

—Vinha buscar agua... balbuciou elle.

—Aquella Ruça! aquella desleixada! Desculpe, senhor parocho, desculpe. Olhe ahi ao pé da mesa, a bilha. Achou?

—Achei! achei!

Desceu devagar com o copo cheio: a mão tremia-lhe, a agua escorria-lhe pelos dedos.

Deitou-se sem rezar. Alta noite Amelia sentiu por baixo passos nervosos pisarem o soalho: era Amaro que, com o capote aos hombros e em chinelas, fumava, excitado, pelo quarto.



V



Ella, em cima, não dormia tambem. Sobre a commoda, dentro de uma bacia, a lamparina extinguia-se, com um mau cheiro de murrão de azeite; brancuras de saias cahidas no chão destacavam; e os olhos do gato, que não socegava, reluziam pela escuridão do quarto com uma claridade phosphorica verde.

Na casa visinha uma criança chorava sem cessar, Amelia sentia a mãi embalar-lhe o berço, cantar-lhe baixo:


Dorme, dorme, meu menino,
Que a tua mãi foi á fonte!


Era a pobre Catharina engommadeira, que o tenente Sousa deixára com um filho no berço, e gravida [84] d'outro—para ir casar a Extremoz! Tão bonita era, tão loura—e mirrada agora, tão chupada!


Dorme, dorme, meu menino.
Que a tua mãi foi á fonte!


Como ella conhecia aquella cantiga! Quando tinha sete annos sua mãi dizia-a, nas longas noites de inverno, ao irmãosinho que morrera!

Lembrava-se bem! Moravam então n'outra casa, ao pé da estrada de Lisboa; á janella do seu quarto havia um limoeiro e a mãi punha, na sua ramagem luzidia, os coeiros do Joãosinho a seccarem ao sol. Não conhecera o papá. Fôra militar, morrera novo; e a mãi ainda suspirava ao fallar da sua bella figura com o uniforme de cavallaria. Aos oito annos ella foi para a mestra. Como se lembrava! A mestra era uma velhita roliça e branca, que fôra tacho das freiras de Santa Joanna d'Aveiro; com os seus oculos redondos, junto á janella, empurrando a agulha, morria-se por contar historias do convento: as perrices da escrivã, sempre a escabichar os dentes furados; a madre rodeira, preguiçosa e pacata, com uma pronuncia minhota; a mestra de cantochão, admiradora de Bocage e que se dizia descendente dos Tavoras; e a legenda de uma freira que morrera de amor, e cuja alma ainda em certas noites percorria os corredores, soltando gemidos dolorosos e clamando:—Augusto! Augusto!

Amelia ouvia aquellas historias, encantada. Gostava então tanto de festas d'igreja e da convivencia [85] dos santos, que desejava ser uma «freirinha, muito bonita, com um véosinho muito branco.» A mamã era muito visitada por padres. O chantre Carvalhosa, um homem velho e robusto, que soprava de asthma ao subir a escada e tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo da casa. Amelia chamava-lhe padrinho. Quando ella voltava da mestra, á tarde, encontrava-o sempre a palestrar com a mãi, na sala, de batina desabotoada, deixando vêr o longo collete de velludo preto com raminhos bordados a amarello. O senhor chantre perguntava-lhe pelas lições e fazia-a dizer a taboada.

Á noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o conego Cruz; e um velhito calvo, de perfil de passaro, com oculos azues, que fôra frade franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas da mãi, com as suas meias; e um capitão Couceiro, de caçadores, que tinha os dedos negros do cigarro e trazia sempre a sua viola. Mas ás nove horas mandavam-na deitar; pela frincha do quarto ella via a luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silencio, e o capitão, repenicando a guitarra, cantava o lundum da Figueira.

Foi assim crescendo entre padres. Mas alguns eram-lhe antipathicos: sobretudo o padre Valente, tão gordo, tão suado, com umas mãos papudas e molles, d'unhas pequenas! Gostava de a ter entre os joelhos, torcer-lhe devagarinho a orelha, e ella sentia o seu halito impregnado de cebola e de cigarro. O seu amiguinho era o conego Cruz, magro, com o [86] cabello todo branco, a volta sempre aceada, as fivelas luzidias; entrava devagarinho, comprimentando com a mão sobre o peito e uma voz suave cheia de ss. Já então sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em casa, por qualquer «bagatella» fallavam-lhe sempre dos castigos do céo; de tal sorte que Deus apparecia-lhe como um sêr que só sabe dar o soffrimento e a morte e que é necessario abrandar, rezando e jejuando, ouvindo novenas, amimando os padres. Por isso, se ás vezes ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitencia no outro dia, porque temia que Deus lhe mandasse sezões ou a fizesse cahir na escada.

Mas o seu melhor tempo foi quando começou a tomar lições de musica. A mãi tinha na sala de jantar, ao canto, um velho piano, coberto com um pano verde, tão desafinado, que servia de aparador! Amelia costumava cantarolar pela casa; a sua voz fina e fresca agradava ao senhor chantre, e as amigas da mãi diziam-lhe:

—Tu tens ahi um piano, porque não mandas ensinar a rapariga? Sempre é uma prenda! olha que lhe póde servir de muito!

O chantre conhecia um bom mestre, antigo organista da Sé d'Evora, extremamente infeliz: a filha unica, muito linda, fugira-lhe com um alferes para Lisboa; e, passados dois annos, o Silvestre da Praça, que ia muito á capital, vira-a descer a rua do Norte, de garibaldi escarlate e alvaiade n'um olho, com um marinheiro inglez. O velho cahira em grande [87] melancolia e grande miseria; e por piedade tinham-lhe dado um emprego no cartorio da camara ecclesiastica. Era uma figura triste de romance picaresco. Muito magro, alto como um pinheiro, deixava crescer até aos hombros os seus cabellos brancos e finos; os olhos, cansados, lagrimejavam-lhe sempre; mas o seu sorriso resignado e bom enternecia: e parecia muito transido, no seu capote côr de vinho que só lhe chegava á cintura e que tinha uma gola d'astrakan. Chamavam-lhe o Tio Cegonha pela sua alta magreza e o seu ar solitario. Amelia um dia tinha-lhe chamado Tio Cegonha; mas mordeu logo o beiço, toda envergonhada.

O velho poz-se a sorrir:

—Ai, chame, minha rica menina, chame! Tio Cegonha?... ora, que tem? Cegonha sou eu, e bem cegonha!

Era então no inverno. As grandes chuvas com os sudoestes não cessavam; a aspera estação opprimia os pobres. Viam-se n'aquelle anno familias esfomeadas indo á camara pedir pão. O Tio Cegonha vinha sempre ao meio-dia dar a lição; o seu guardachuva azul deixava um ribeiro na escada; tiritava; e quando se sentava escondia, na sua vergonha de velho, as botas encharcadas com a sola aberta. Queixava-se sobretudo do frio das mãos, que o impedia de ferir com justeza o teclado e não o deixava escrever no cartorio.

—Prendem-se-me os dedos... dizia tristemente.

Mas quando a S. Joanneira lhe pagou o primeiro [88] mez das lições, o velho appareceu muito contente, com umas grossas luvas de lã.

—Ah, Tio Cegonha, como vem quentinho! disse-lhe Amelia.

—Foi o seu dinheiro, minha rica menina. Agora ando a juntar para umas meias de lã. Deus a abençôe, minha menina, Deus a abençôe!

E tinham-se-lhe arrasado os olhos de lagrimas. Amelia tornára-se a «sua rica amiguinha». Já lhe fazia confidencias: contava-lhe as suas necessidades, as saudades da filha, as suas glorias na Sé d'Evora, quando diante do senhor arcebispo, vistoso na sua sobrepelliz escarlate, acompanhava o Lausperenne.

Amelia não se esqueceu das meias de lã do Tio Cegonha. Pediu ao chantre que lhe désse umas meias de lã.

—Ora essa! para quê? para ti? disse elle com o seu riso grosso.

—Para mim, sim senhor.

—Deixe fallar, senhor chantre! disse a S. Joanneira. Olha a idéa!

—Não deixe fallar, não! dê, sim?

Lançou-lhe os braços ao pescoço, fez-lhe olhinhos dôces.

—Ah, sereia! dizia o chantre rindo: que esperanças! ha de ser o diabo!... Pois sim, ahi tens.—E deu-lhe dois pintos para umas meias de lã.

No dia seguinte tinha-os ella embrulhados n'um papel, que dizia por fóra em letras garrafaes: Ao meu rico amigo Tio Cegonha, a sua discipula. [89]

Uma manhã, depois, viu-o mais amarello, mais chupado:

—Ó Tio Cegonha, disse de repente, quanto lhe dão lá no cartorio?

O velho sorriu-se:

—Ora, minha rica menina, quanto me hão de dar? uma bagatella. Quatro vintens por dia. Mas o snr. Netto faz-me algum bem...

—E chegam-lhe, quatro vintens?

—Ora! como hão de chegar!

Sentiram-se os passos da mãi; e Amelia, retomando gravemente a attitude de lição, começou a solfejar alto, com um ar profundo.

E desde esse dia tanto pediu, tanto exclamou, que levou a mãi a dar de almoçar e de jantar ao Tio Cegonha nos dias de lição. Assim se estabeleceu entre ella e o velho uma grande intimidade. E o pobre Tio Cegonha, sahindo do seu frio isolamento, acolhia-se áquella amizade inesperada, como a um conchego tepido. Encontrava n'ella o elemento feminino que amam os velhos, com as caricias, as suavidades de voz, as delicadezas de enfermeira; achava n'ella a unica admiradora da sua musica; e via-a sempre attenta ás historias do seu tempo, ás recordações da velha Sé d'Evora que elle amava tanto, e que lhe fazia dizer, quando se fallava de procissões ou de festas de igreja:

—Para isso Evora! em Evora é que é!

Amelia applicava-se muito ao piano: era a coisa boa e delicada da sua vida: já tocava contradansas [90] e antigas arias de velhos compositores; a snr.a D. Maria da Assumpção estranhava que o mestre lhe não ensinasse o Trovador.

—Coisa mais linda! dizia.

Mas o Tio Cegonha só conhecia a musica classica, arias ingenuas e dôces de Lully, motivos de minuetes, motetes floridos e piedosos dos dôces tempos freiraticos.

Uma manhã o Tio Cegonha encontrou Amelia muito amarella e triste. Desde a vespera queixava-se de «mal-estar». Era um dia nublado, muito frio. O velho queria ir-se embora.

—Não, não, Tio Cegonha, disse ella, toque alguma coisa para eu me entreter.

Elle tirou o seu capote, sentou-se, tocou uma melodia simples, mas extremamente melancolica.

—Que lindo! que lindo! dizia Amelia, de pé junto ao piano.

E quando o velho deu as ultimas notas:

—O que é? perguntou ella.

O Tio Cegonha contou-lhe que era o começo de uma Meditação feita por um frade seu amigo.

—Coitado, disse, teve bem o seu tormento!

Amelia quiz logo saber a historia; e sentando-se no mocho do piano, embrulhando-se no seu chale:

—Diga, Tio Cegonha, diga!

Era um homem que tivera em novo uma grande paixão por uma freira; ella morrera no convento d'aquelle amor infeliz; e elle, de dôr e de saudade, fizera-se frade franciscano... [91]

—Parece que o estou a vêr...

—Era bonito?

—Se era! Um rapaz na flôr da vida, rico... Um dia veio ter commigo ao orgão: «Olha o que eu fiz», disse-me elle. Era um papel de musica. Abria em ré menor. Poz-se a tocar, a tocar... Ai, minha rica menina, que musica! Mas não me lembra o resto!

E o velho, commovido, repetiu no piano as notas plangentes da Meditação em ré menor.

Amelia todo o dia pensou n'aquella historia. De noite veio-lhe uma grande febre, com sonhos espessos, em que dominava a figura do frade frasciscano, na sombra do orgão da Sé d'Evora. Via os seus olhos profundos reluzirem n'uma face encovada: e, longe, a freira pallida, nos seus habitos brancos, encostada ás grades negras do mosteiro, sacudida pelos prantos do amor! Depois, no longo claustro, a ala dos frades franciscanos caminhava para o côro: elle ia no fim de todos, curvado, com o capuz sobre o rosto, arrastando as sandalias, emquanto um grande sino, no ar nublado, tocava o dobre dos finados. Então o sonho mudava: era um vasto céo negro, onde duas almas enlaçadas e amantes, com habitos de convento e um ruido ineffavel de beijos insaciaveis, giravam, levadas por um vento mystico; mas desvaneciam-se como nevoas, e na vasta escuridão ella via apparecer um grande coração em carne viva, todo trespassado de espadas—e as gotas de sangue que cahiam d'elle enchiam o céo d'uma chuva escarlate. [92]

Ao outro dia a febre acalmou. O doutor Gouvêa tranquillisou a S. Joanneira com uma simples palavra:

—Nada de sustos, minha rica senhora, são os quinze annos da rapariga. Hão de lhe vir ámanhã as vertigens e os enjôos... Depois acabou-se. Temol-a mulher.

A S. Joanneira comprehendeu.

—Esta rapariga tem o sangue vivo e ha de ter as paixões fortes! acrescentou o velho pratico, sorrindo e sorvendo a sua pitada.

Por esse tempo o senhor chantre, uma manhã, depois do seu almoço d'açorda, cahiu de repente morto com uma apoplexia. Que consternação inesperada para a S. Joanneira! Durante dois dias, esguedelhada, em saias brancas, chorou, gemeu pelos quartos. D. Maria da Assumpção, as snr.as Gansosos vieram acalmar, amansar a sua dôr: e a snr.a D. Josepha Dias resumiu as consolações de todas, dizendo:

—Deixa, filha, que te não ha de faltar quem te ampare!

Era então no começo de setembro; a snr.a D. Maria da Assumpção, que tinha uma casa na praia da Vieira, propôz levar a S. Joanneira e Amelia para a estação dos banhos, para ella espalhar, nos bons ares saudaveis, em logar differente, aquella dôr.

—É uma esmola que me fazes, dissera a S. Joanneira. Sempre me lembra que era alli que elle punha o guardachuva... Alli que elle se sentava a vêr-me costurar!

—Está bom, está bom, deixa-te d'isso. Come e [93] bebe, toma os teus banhos, e o que lá vai lá vai. Olha que elle tinha bem os seus sessenta.

—Ah, minha rica! a gente é pela amizade que lhes ganha!

Amelia tinha então quinze annos, mas era já alta e de bonitas fórmas. Foi uma alegria para ella a estação na Vieira! Nunca vira o mar; e não se fartava de estar sentada na areia, fascinada pela vasta agua azul, muito mansa, cheia de sol; ás vezes no horisonte passava um fumo delgado de paquete; a monotona e gemente cadencia da vaga adormentava-a; e em redor o areal faiscava, a perder de vista, sob o céo azul-ferrete.

Como se lembrava bem! Logo pela manhã estava a pé. Era a hora do banho: as barracas de lona alinhavam-se ao comprido da praia; as senhoras, sentadas em cadeirinhas de pau, de sombrinhas abertas, olhavam o mar, palrando; os homens, de sapatos brancos, estendidos em esteiras, chupavam o cigarro, riscavam emblemas na areia; emquanto o poeta Carlos Alcoforado, muito fatal, muito olhado, passeava só, soturno, junto da vaga, seguido do seu Terra-Nova. Ella sahia então da barraca com o seu vestido de flanella azul, a toalha no braço, tiritando de susto e de frio: tinha-se persignado ás escondidas e toda tremula, agarrada á mão do banheiro, escorregando na areia, entrava na agua, rompendo a custo a maresia esverdeada que fervia em redor. A onda vinha espumando, ella mergulhava, e ficava aos saltos, suffocada e nervosa, cuspindo a agua salgada. [94] Mas, quando sahia do mar, como vinha satisfeita! Arfava, com a toalha pela cabeça, arrastando-se para a barraca, mal podendo com o peso do vestido encharcado, risonha, cheia de reacção; e em redor vozes amigas perguntavam:

—Então que tal, que tal? Mais fresquinha, hein?

Depois, de tarde, eram os passeios à beira-mar, a apanhar conchinhas; o recolher das redes, onde a sardinha toda viva ferve aos milheiros, luzidia sobre a areia molhada; e que longas perspectivas de occasos ricamente dourados, sobre a vastidão do mar triste, que escurece e geme!

D. Maria da Assumpção tinha sido visitada, logo ao chegar, por um rapaz, filho do snr. Brito de Alcobaça, seu parente. Chamava-se Agostinho, ia frequentar o quinto anno de direito na Universidade. Era um moço delgado, de bigode castanho, pera, cabello comprido deitado para traz, e luneta: recitava versos, sabia tocar guitarra, contava anecdotas de caloiros, fazia partidas, e era famoso na Vieira, entre os homens, «por saber conversar com senhoras».

—O Agostinho, patife! diziam. É chalaça a esta, chalaça áquella. Lá para sociedade não ha outro!

Logo desde os primeiros dias Amelia reparou que os olhos do snr. Agostinho Brito se fitavam constantemente n'ella, «p'ra namoro». Amelia córava muito, sentia o seio alargar-se-lhe dentro do vestido; e admirava-o, achava-o muito «dengueiro».

Um dia em casa da snr.a D. Maria da Assumpção pediram a Agostinho para recitar. [95]

—Oh, minhas senhoras, isto aqui não é forja de ferreiro! exclamou elle, jovial.

—Ora vá! não se faça rogado, disseram, insistindo.

—Bem, bem, por isso não nos havemos de zangar.

—A Judia, Brito, lembrou o recebedor de Alcobaça.

—Qual Judia! disse elle, ha de ser mas ha do ser a Morena!—E olhou para Amelia.—Foi uma poesia que fiz hontem.

—Valeu, valeu!

—E cá o rapaz acompanha, disse um sargento do 6 de caçadores, tomando logo a guitarra.

Fez-se um silencio: o snr. Agostinho deitou o cabello para traz, fincou a luneta, apoiou as duas mãos ás costas d'uma cadeira, e fitando Amelia:

—Á Morena de Leiria! disse.


Nasceste nos verdes campos
Onde Leiria é famosa,
Tens a frescura da rosa,
E o teu nome sabe a mel...


—Perdão! exclamou o recebedor, a snr.a D. Juliana não está boa...

Era a filha do escrivão de direito de Alcobaça; tinha-se feito muito pallida, e, lentamente, desmaiava na cadeira, com os braços pendentes, o queixo sobre o peito. Borrifaram-na de agua, levaram-n'a para o quarto de Amelia; quando lhe desapertaram [96] o vestido e lhe deram vinagre a respirar, ergueu-se sobre o cotovêlo, olhou em redor, começaram a tremer-lhe os beiços e rompeu a chorar. Fóra, os homens em grupo, commentavam:

—Foi o calor, diziam.

—O calor que ella tinha sei eu... rosnou o sargento de caçadores.

O snr. Agostinho torcia o bigode, contrariado. Algumas senhoras foram a casa acompanhar a snr.a D. Juliana. D. Maria da Assumpção e a S. Joanneira, atabafadas nos seus chales, iam tambem. Havia vento, um criado levava um lampeão, e todos caminhavam na areia, calados.

—Tudo isto é teu proveito, disse a snr.a D. Maria da Assumpção baixo á S. Joanneira, demorando-se um pouco atraz.

—Meu!?

—Teu. Pois tu não percebeste? A Juliana, em Alcobaça, era namoro do Agostinho. Mas o rapaz aqui anda pelo beiço pela Amelia. A Juliana percebeu, viu-o recitar aquelles versos, olhar para ella, zás!

—Ora essa!... disse a S. Joanneira.

—Deixa lá, o Agostinho tem um par de mil cruzados que lhe deixam as tias. É um partidão!

Ao outro dia, á hora do banho, a S. Joanneira vestia-se na sua barraca, e Amelia, sentada na areia, esperava, pasmada para o mar.

—Olá! sósinha! disse uma voz por detraz.

Era Agostinho. Amelia, calada, começou a riscar a areia com a sombrinha. O snr. Agostinho suspirou, [97] alisou outro pedaço d'areia com o pé, escreveu—Amelia. Ella, muito vermelha, quiz apagar com a mão.

—Então! disse elle. E debruçando-se, baixo:—É o nome da Morena, bem vê. O seu nome sabe a mel!...

Ella sorriu:

—Ande que fez hontem desmaiar aquella pobre Juliana, disse.

—Ora! importa-me a mim bem com ella! Estou farto d'aquelle estafermo! Então que quer? Eu cá sou assim. Tanto digo que me não importo com ella, como digo que ha uma pessoa por quem dava tudo... Eu sei...

—Quem é? É a snr.a D. Bernarda?

Era uma velha hedionda, viuva de um coronel.

—É, disse elle rindo. É justamente por quem eu ando apaixonado, é pela D. Bernarda.

—Ah! o senhor anda apaixonado! disse ella devagar, com os olhos baixos, riscando a areia.

—Diga-me uma coisa, está a mangar commigo? exclamou Agostinho puxando uma cadeirinha, sentando-se junto d'ella.

Amelia pôz-se de pé.

—Não quer que eu me sente ao pé de si? perguntou elle offendido.

—Eu é que estava cansada de estar sentada.

Calaram-se um momento.

—Já tomou banho? disse ella.

—Já. [98]

—Estava frio hoje?

—Estava.

As palavras de Agostinho eram agora muito sêccas.

—Zangou-se? disse ella dôcemente, pondo-lhe de leve a mão no hombro.

Agostinho ergueu os olhos, e vendo o bonito rosto trigueiro, todo risonho, exclamou com vehemencia:

—Estou mesmo doido por si!

—Chut!... disse ella.

A mãi de Amelia, levantando o pano da barraca, sahia, muito abafada, de lenço amarrado na cabeça.

—Mais fresquinha, hein? perguntou logo Agostinho, tirando o chapéo de palha.

—Estava por aqui?

—Vim dar uma vista d'olhos. E agora toca ao almocinho, hein?

—Se é servido... disse a S. Joanneira.

Agostinho, muito galante, offereceu o braço á mamã.

E desde então seguia sempre Amelia, de manhã no banho, de tarde á beira-mar; apanhava-lhe conchas; e tinha-lhe feito outros versos—o Sonho. Uma estrophe era violenta:


Senti-te contra o meu peito
Tremer, palpitar, ceder...


Ella murmurava-os com grande commoção, de noite, suspirando, abraçando o travesseiro. [99]

Outubro findava, as férias tinham acabado. Uma noite o alegre rancho da snr.a D. Maria da Assumpção e das amigas fôra dar um passeio ao luar. Á volta, porém, erguera-se vento, nuvens pesadas empastaram o céo, cahíram gotas d'agua. Estavam então junto a um pequeno pinheiral, e as senhoras, aos gritinhos, quizeram abrigar-se. Agostinho, com Amelia pelo braço, rindo alto, foi penetrando longe dos outros na espessura; e então, sob o monotono e gemente rumor das ramas, disse-lhe baixo, cerrando os dentes:

—Estou doido por ti, filha!

—Creio lá n'isso! murmurou ella.

Mas Agostinho, tomando subitamente um tom grave:

—Sabes? talvez eu tenha de me ir ámanhã embora.

—Vai-se?

—Talvez; não sei ainda. Além d'ámanhã é a matricula.

—Vai-se... suspirou Amelia.

Elle então tomou-lhe a mão, apertou-lh'a com furor:

—Escreve-me! disse.

—E a mim escreve-me? disse ella.

Agostinho agarrou-a pelos hombros e machucou-lhe a boca de beijos vorazes.

—Deixe-me! deixe-me! dizia ella suffocada.

De repente teve um gemido dôce como um arrulho de ave, e abandonava-se—quando a voz aguda de D. Joaquina Gansoso gritou: [100]

—Ha uma aberta. É andar! é andar!

E Amelia, desprendendo-se, atarantada, correu a agachar-se sob o guardachuva da mamã.

Ao outro dia, com effeito, o snr. Agostinho partiu. Vieram as primeiras chuvas, e dentro em pouco tambem Amelia, a mãi, a snr.a D. Maria da Assumpção voltaram para Leiria.

Passou o inverno.

E um dia, em casa da S. Joanneira, D. Maria da Assumpção deu parte que o Agostinho Brito, segundo lhe escreviam de Alcobaça, tinha o casamento justo com a menina do Vimeiro.

—Caspitè! exclamou D. Joaquina Gansoso, apanha nada menos que os seus trinta contos! Olha o méco!

E diante de todos Amelia rompeu a chorar.

Amava Agostinho; e não podia esquecer aquelles beijos de noite no pinheiral cerrado. Pareceu-lhe então que não tornaria a ter alegria! Ainda lembrada d'aquelle moço da historia do Tio Cegonha, que por amor se escondera na solidão de um convento, começou a pensar em ser freira: deu-se a uma forte devoção, manifestação exagerada das tendencias que desde pequenina as convivencias de padres tinham lentamente creado na sua natureza sensivel; lia todo o dia livros de rezas; encheu as paredes do quarto de lithographias coloridas de santos; passava longas horas na igreja, accumulando Salve-Rainhas á Senhora da Encarnação. Ouvia todos os dias missa, quiz commungar todas as semanas—e as amigas [101] da mãi achavam-na «um modêlo, de dar virtude a incredulos»!

Foi por esse tempo que o conego Dias e sua irmã, a snr.a D. Josepha Dias, começaram a frequentar a casa da S. Joanneira. Dentro em pouco o conego tornou-se o «amigo da familia». Depois do almoço era certo com a sua cadellinha, como outr'ora o chantre com o seu guardachuva.

—Tenho-lhe muita amizade, faz-me muito bem, dizia a S. Joanneira. Mas o senhor chantre não ha dia nenhum que me não lembre d'elle!

A irmã do conego tinha então organisado com a S. Joanneira a Associação das Servas da Senhora da Piedade. A snr.a D. Maria da Assumpção, as Gansosos «filiaram-se»; e a casa da S. Joanneira tornou-se um centro ecclesiastico. Foi esse o momento melhor da vida da S. Joanneira; «a Sé, como dizia com tedio o Carlos da botica, era agora na rua da Misericordia». Parte dos conegos, o novo chantre vinham todas as sextas-feiras. Havia imagens de santos na sala de jantar e na cozinha. As criadas, por escrupulo, eram examinadas em doutrina antes de serem aceitas. Alli muito tempo fizeram-se as reputações: se se dizia de um homem—não é temente a Deus, havia o dever de o desacreditar santamente. As nomeações de sineiros, coveiros, serventes de sacristia arranjavam-se alli por intrigas subtis e palavras piedosas. Tinham tomado um certo vestuario entre o preto e o rôxo: toda a casa cheirava a cera e a incenso; [102] e a S. Joanneira, mesmo, monopolisára o commercio das hostias.

Assim passaram annos. Pouco a pouco, porém, o grupo devoto dispersou-se: a ligação do conego Dias e da S. Joanneira, muito commentada, afastou os padres do cabido; o novo chantre morrera de apoplexia tambem—como era de tradição n'aquella diocese, fatal aos chantres; e já não eram divertidos os quinos das sextas-feiras. Amelia mudára muito; crescera: fizera-se uma bella moça de vinte e dois annos, d'olhar avelludado, beiços muito frescos—e achava a sua paixão pelo Agostinho uma «tontice de criança». A sua devoção subsistia, mas alterada: o que amava agora na religião e na igreja era o apparato, a festa—as bellas missas cantadas ao orgão, as capas recamadas de ouro, reluzindo entre os tocheiros, o altar-mór na gloria das flôres cheirosas, o roçar das correntes dos incensadores de prata, os unisonos que rompem briosamente no côro das alleluias. Tomava a Sé como a sua Opera: Deus era o seu luxo. Nos domingos de missa gostava de se vestir, de se perfumar com agua de colonia, de se ir aninhar sobre o tapete do altar-mór, sorrindo ao padre Brito ou ao conego Saldanha.—Mas em certos dias, como dizia a mãi, «murchava»: voltavam então os abatimentos d'outr'ora, que a amarellavam, lhe punham duas rugas velhas ao canto dos labios: tinha n'essas occasiões horas d'uma vaga saudade parva e morbida, em que só a consolava cantar pela casa o [103] Santissimo ou as notas lugubres do toque da Agonia. Com a alegria voltava-lhe o gosto do culto alegre—e lamentava então que a Sé fosse uma ampla estructura de pedra d'um estylo frio e jesuitico: quereria uma igreja pequenina, muito dourada, tapetada, forrada de papel, illuminada a gaz; e padres bonitos officiando a um altar ornado como uma étagère.

Fizera vinte e tres annos quando conheceu João Eduardo, no dia da procissão de Corpus-Christi, em casa do tabellião Nunes Ferral, onde elle era escrevente. Amelia, a mãi, a snr.a D. Josepha Dias tinham ido vêr a procissão da bella varanda do tabellião, guarnecida de colchas de damasco amarello. João Eduardo estava lá, modesto, sério, todo vestido de preto. Havia muito que Amelia o conhecia; mas n'aquella tarde, reparando na brancura da sua pelle e na gravidade com que ajoelhava, pareceu-lhe «muito bom rapaz».

Á noite, depois do chá, o gordalhufo Nunes, de collete branco, foi pela sala exclamando, enthusiasmado, com a sua voz de grillo:—É tirar pares, é tirar pares!—emquanto a filha mais velha ao piano tocava com brio estridente uma mazurka franceza. João Eduardo aproximou-se de Amelia:

—Ai, eu não danso!... disse ella logo com ar sêcco.

João Eduardo não dansou tambem, foi encostar-se a uma hombreira com a mão na abertura do collete, os olhos fitos em Amelia. Ella percebia, desviava [104] o rosto, mas estava contente; e quando João Eduardo, vendo uma cadeira vazia, veio sentar-se ao pé d'ella, Amelia fez-lhe logo logar accommodando os folhos de sêda, agradada. O escrevente, embaraçado, torcia o bigode com a mão tremula. Por fim Amelia voltando-se para elle:

—Então o senhor não dansa tambem?

—E a snr.a D. Amelia? disse elle baixo.

Ella inclinou-se para traz, e batendo nas pregas do vestido:

—Ai! eu estou velha para estes divertimentos, sou uma pessoa séria.

—Nunca se ri? perguntou elle, pondo na voz uma intenção fina.

—Ás vezes rio quando ha de quê, disse ella olhando-o de lado.

—De mim, por exemplo.

—De si!? ora essa! Está a caçoar commigo? Porque me hei de eu rir do senhor? Boa!... Então o senhor que tem que faça rir?—E agitava o seu leque de sêda preta.

Elle calou-se, procurando as idéas, as delicadezas.

—Então sério, sério, não dansa?

—Já lhe disse que não. Ai, que é tão perguntador!

—É porque me interesso por si.

—Ora, deixe lá! disse ella fazendo um indolente gesto de negativa.

—Palavra!

Mas a snr.a D. Josepha Dias, que os vigiava, [105] aproximou-se, de testa muito franzida—e João Eduardo levantou-se, intimidado.

Á sahida, quando Amelia no corredor punha os seus agasalhos, João Eduardo veio dizer-lhe, de chapéo na mão:

—Cubra-se bem, não apanhe frio!

—Então continúa a interessar-se por mim? disse ella apertando em redor do pescoço as pontas da sua manta de lã.

—O mais possivel, creia.

Duas semanas depois veio a Leiria uma companhia ambulante de zarzuela. Fallava-se muito da contralto, a Gamacho. A snr.a D. Maria da Assumpção tinha um camarote, levou a S. Joanneira e Amelia—que duas noites antes estivera costurando, com uma pressa commovida, um vestido de cassa todo florido de laços de sêda azul. João Eduardo na platéa—emquanto a Gamacho, empastada de pó de arroz sob a sua mantilha valenciana, vibrando com uma graça decrepita o leque de lentejoulas, garganteava malaguenhas agudas—não se fartou de contemplar, de desejar Amelia. Á sahida veio comprimental-a, offerecer-lhe o braço até á rua da Misericordia: a S. Joanneira, a snr.a D. Maria da Assumpção seguiam atraz com o tabellião Nunes.

—Então gostou da Gamacho, snr. João Eduardo?

—A fallar-lhe a verdade nem sequer reparei n'ella.

—Então que fez?

—Olhei para si, respondeu elle resolutamente. [106]

Ella parou immediatamente, disse com a voz um pouco alterada:

—Onde vem a mamã?

—Deixe lá a mamã!

E João Eduardo, então, fallando-lhe junto do rosto, disse-lhe «a sua grande paixão». Tomou-lhe a mão, repetia todo perturbado:

—Gósto tanto de si! Gósto tanto de si!

Amelia estava nervosa da musica do theatro; a noite quente de verão, com a sua vasta scintillação de estrellas, tornava-a toda languida. Abandonou a mão, suspirou baixinho.

—Gosta de mim, não é verdade? perguntou elle.

—Sim, respondeu ella—e apertou os dedos de João Eduardo, com paixão.

Mas, como ella pensou, «fôra decerto um fogacho»—porque, dias depois, quando conheceu mais João Eduardo, quando pôde fallar livremente com elle, reconheceu que «não tinha nenhuma inclinação pelo rapaz». Estimava-o, achava-o sympathico, bom moço; poderia ser um bom marido; mas sentia dentro em si o coração adormecido.

O escrevente porém começou a ir á rua da Misericordia quasi todas as noites. A S. Joanneira estimava-o pelo seu «proposito» e pela sua honradez. Mas Amelia ia-se mostrando «fria»: esperava-o á janella pela manhã quando elle passava para o cartorio, fazia-lhe olhos dôces á noite,—mas só para o não descontentar, para ter na sua existencia desoccupada um interessesinho amoroso. [107]

João Eduardo um dia fallou à mãi em casamento:

—Como a Amelia quizer, eu por mim... disse a S. Joanneira.

E Amelia, consultada, respondeu ambiguamente:

—Mais tarde, por ora não me parece, veremos.

Emfim accordou-se tacitamente em esperar, até que elle obtivesse o lugar de amanuense do governo civil, rasgadamente promettido pelo doutor Godinho—o temido doutor Godinho!

Assim vivera Amelia até à chegada d'Amaro: e, durante a noite, estas recordações vinham-lhe por fragmentos, como pedaços de nuvens que o vento vai trazendo e desmanchando. Adormeceu tarde, acordou já o sol ia alto: e espreguiçava-se, quando ouviu dizer a Ruça na sala de jantar:

—É o senhor parocho que vai sahir com o senhor conego; vão á Sé.

Amelia saltou da cama, correu á janella em camisa, ergueu uma pontinha da cortina de cassa, olhou. A manhã resplandecia: e o padre Amaro pelo meio da rua conversando com o conego, assoava-se ao seu lenço branco, muito airoso na sua batina de pano fino.



VI



Logo desde os primeiros dias, envolvido suavemente em commodidades, Amaro sentiu-se feliz. A S. Joanneira, muito maternal, tomava um grande cuidado na sua roupa branca, preparava-lhe petiscos, e o «quarto do senhor parocho andava que nem um brinco»! Amelia tinha com elle uma familiaridade picante de parenta bonita: «tinham calhado um com outro», como dissera, encantada, D. Maria da Assumpção. Os dias iam assim passando para Amaro, faceis, com boa mesa, colchões macios e a convivencia meiga de mulheres. A estação ia tão linda que até as tilias floresceram no jardim do Paço: «quasi milagre»! disse-se: o senhor chantre, contemplando-as todas as manhãs da janella do seu quarto, em robe-de-chambre, citava versos das Eclogas. E depois das longas tristezas da casa do tio da Estrella, [110] dos desconsolos do seminario e do aspero inverno na Gralheira—aquella vida em Leiria era para Amaro como uma casa sêcca e abrigada onde o alegre lume estala e a sôpa cheirosa fumega, depois d'uma noite de jornada na serra, sob trovões e chuveiros.

Ia cedo dizer missa à Sé, bem embrulhado no seu grande capote, com luvas de casimira, meias de lã por baixo das botas de alto cano vermelho. As manhãs estavam frias: e àquella hora só algumas devotas, com o mantéo escuro pela cabeça, rezavam aqui e além, ao pé d'um altar envernizado de branco.

Entrava logo na sacristia, revestia-se depressa batendo os pés no lagedo, emquanto o sacristão, pachorrento, contava «as novidades do dia».

Depois, com o calice na mão, d'olhos baixos, passava á igreja; e tendo dobrado o joelho rapidamente diante do Santissimo Sacramento, subia devagar ao altar onde as duas velas de cera esmoreciam com uma claridade pallida na larga luz da manhã, juntava as mãos, murmurava, curvado:

Introibo ad altare Dei.

Ad Deum qui lætificat juventutem meam, resmungava, n'um latim syllabado, o sacristão.

Amaro já não celebrava a missa como nos primeiros tempos, com uma devoção enternecida. «Estava agora habituado», dizia. E como não ceava, e áquella hora, em jejum, com a frescura cortante do ar, já sentia appetite, engorolava depressa, monotonamente, as santas leituras da Epístola e dos Evangelhos. [111] Por traz o sacristão, com os braços cruzados, passava vagarosamente a mão pela sua espessa barba bem rapada, olhando de revez para a Casimira França, mulher do carpinteiro da Sé, muito devota, que elle «trazía d'olho» desde a Paschoa. Largas resteas de sol cahiam das janellas lateraes. Um vago aroma de junquilhos sêccos adocicava o ar.

Amaro, depois de recitar rapidamente o Offertorio, limpava o calice com o purificador; o sacristão, um pouco vergado dos rins, ia buscar as galhetas, apresentava-as, curvado—e Amaro sentia o cheiro do oleo rançoso que lhe reluzia no cabello. N'aquella parte da missa, por um antigo habito de emoção mystica, Amaro tinha um recolhimento sentido: com os braços abertos, voltava-se para a igreja, clamava, com largueza, a exhortação universal á oração—Orate, fratres! E as velhas encostadas aos pilares de pedra, com o aspecto idiota, a boca babosa, apertavam mais as mãos contra o peito, d'onde pendiam grandes rosarios negros. Então o sacristão ia ajoelhar-se por traz d'elle, sustentando ligeiramente com uma das mãos a capa, erguendo na outra a sineta. Amaro consagrava o vinho, levantava a hostia—Hoc est enim corpus meum!—elevando alto os braços para o Christo cheio de chagas rôxas sobre a sua cruz de pau preto; a campainha tocava devagar; as mãos batiam concavamente nos peitos; e no silencio sentiam-se os carros de bois rolando, com solavancos, sobre o largo lageado da Sé, à volta do mercado. [112]

Ite, missa est! dizia Amaro emfim.

Deo gratias! respondia o sacristão respirando alto, com o allivio da obrigação finda.

E quando, depois de ter beijado o altar, Amaro vinha do alto dos degraus dar a benção, era já pensando na alegria do almoço, na clara sala de jantar da S. Joanneira e nas boas torradas. Áquella hora já Amelia o esperava com o cabello cahido sobre o penteador, tendo na pelle fresca um bom cheiro de sabão d'amendoas.


Pelo meio do dia ordinariamente Amaro subia à sala de jantar onde a S. Joanneira e Amelia costuravam. «Estava aborrecido em baixo, vinha um bocado para o cavaco», dizia. A S. Joanneira, n'uma cadeira pequena, ao pé da janella, com o gato aninhado na roda do vestido de merino, cosia de luneta na ponta do nariz. Amelia, junto da mesa, trabalhava com o cesto da costura ao lado: a cabeça inclinada sobre o trabalho mostrava a sua risca fina, nitida, um pouco afogada na abundancia do cabello; os seus grandes brincos de ouro, em fórma de pingos de cera, oscillavam, faziam tremer e crescer sobre a finura do pescoço uma pequenina sombra; as olheiras leves côr de bistre esbatiam-se delicadamente sobre a pelle de um trigueiro mimoso, que um sangue forte aviventava; e o seu peito cheio respirava devagar. Ás vezes, cravando a agulha na fazenda, [113] espreguiçava-se devagarinho, sorria, cansada. Então Amaro gracejava:

—Ah preguiçosa, preguiçosa! Olha que mulher de casa!

Ella ria; conversavam. A S. Joanneira sabia as coisas interessantes do dia: o major despedira a criada; ou havia quem offerecesse dez moedas pelo porco do Carlos do correio. De vez em quando a Ruça vinha ao armario buscar um prato ou uma colhér: então fallava-se do preço dos generos, do que havia para o jantar. A S. Joanneira tirava as lunetas, traçava a perna e, balouçando o pé calçado n'uma chinela d'ourelo, punha-se a dizer os pratos:

—Hoje temos grão de bico. Não sei se o senhor parocho gostará, foi para variar...

Mas Amaro gostava de tudo; e mesmo em certas comidas descobria affinidade de gostos com Amelia.

Depois, animando-se, bolia-lhe no cesto da costura. Um dia encontrára uma carta; perguntou-lhe pelo derriço; ella respondeu, picando vivamente o posponto:

—Ai! a mim ninguem me quer, senhor parocho...

—Não é tanto assim, acudiu elle.—Mas suspendeu-se, muito vermelho, affectando tossir.

Amelia ás vezes fazia-se muito familiar; um dia mesmo pediu-lhe para sustentar nas mãos uma meadinha de retroz que ella ia dobar.

—Deixe fallar, senhor parocho! exclamou a S. [114] Joanneira. Ora a tolice! Isto, em se lhe dando confiança!...

Mas Amaro promptificou-se, rindo, todo contente:—elle estava alli para o que quizessem, até para dobadoura! Era mandarem, era mandarem! E as duas mulheres riam, d'um riso calido, enlevadas n'aquellas maneiras do senhor parocho, «que até tocavam o coração»! Ás vezes Amelia pousava a costura e tomava o gato no collo; Amaro chegava-se, corria a mão pela espinha do Maltez que se arredondava, fazendo um ron-ron de gozo.

—Gostas? dizia ella ao gato, um pouco córada, com os olhos muito ternos.

E a voz de Amaro murmurava, perturbada:

—Bichaninho gato! bichaninho gato!

Depois a S. Joanneira erguia-se para dar o remedio á idiota ou ir palrar á cozinha. Elles ficavam sós; não fallavam, mas os seus olhos tinham um longo dialogo mudo, que os ia penetrando da mesma languidez dormente. Então Amelia cantarolava baixo o Adeus ou o Descrente: Amaro accendia o seu cigarro, e escutava bamboleando a perna.

—É tão bonito isso! dizia.

Amelia cantava mais accentuadamente, cosendo depressa; e a espaços, erguendo o busto, mirava o alinhavado ou o posponto, passando-lhe por cima, para o assentar, a sua unha polida e larga.

Amaro achava aquellas unhas admiraveis, porque tudo que era ella ou vinha d'ella lhe parecia perfeito: gostava da côr dos seus vestidos, do seu andar, [115] do modo de passar os dedos pelos cabellos, e olhava até com ternura para as saias brancas que ella punha a seccar á janella do seu quarto, enfiadas n'uma cana. Nunca estivera assim na intimidade d'uma mulher. Quando percebia a porta do quarto d'ella entreaberta, ia resvalar para dentro olhares gulosos, como para perspectivas d'um paraiso: um saiote pendurado, uma meia estendida, uma liga que ficára sobre o bahú, eram como revelações da sua nudez, que lhe faziam cerrar os dentes, todo pallido. E não se saciava de a vêr fallar, rir, andar com as saias muito engommadas que batiam as hombreiras das portas estreitas. Ao pé d'ella, muito fraco, muito langoroso, não lhe lembrava que era padre: o Sacerdocio, Deus, a Sé, o Peccado ficavam em baixo, longe; via-os muito esbatidos do alto do seu enlevo, como d'um monte se vêem as casas desapparecer no nevoeiro dos valles; e só pensava então na doçura infinita de lhe dar um beijo na brancura do pescoço, ou mordicar-lhe a orelhinha.

Ás vezes revoltava-se contra estes desfallecimentos, batia o pé:

—Que diabo, é necessario ter juizo! é necessario ser homem!

Descia, ia folhear o seu Breviario; mas a voz de Amelia fallava em cima, o tic-tic das suas botinas batia o soalho... Adeus! a devoção cahia como uma vela a que falta o vento; as boas resoluções fugiam, e lá voltavam as tentações em bando a apoderar-se do seu cerebro, frementes, arrulhando, roçando-se umas [116] pelas outras como um bando de pombas que recolhem ao pombal. Ficava todo subjugado, soffria. E lamentava então a sua liberdade perdida: como desejaria não a vêr, estar longe de Leiria, n'uma aldeia solitaria, entre gente pacifica, com uma criada velha cheia de proverbios e de economia, e passear pela sua horta quando as alfaces verdejam e os gallos cacarejam ao sol! Mas Amelia, de cima, chamava-o—e o encanto recomeçava, mais penetrante.

A hora do jantar, sobretudo, era a sua hora perigosa e feliz, a melhor do dia. A S. Joanneira trinchava, emquanto Amaro conversava cuspindo os caroços das azeitonas na palma da mão e enfileirando-os sobre a toalha. A Ruça, cada dia mais etica, servia mal, sempre a tossir: Amelia ás vezes erguia-se para ir buscar uma faca, um prato ao aparador. Amaro queria levantar-se logo, attencioso.

—Deixe-se estar, deixe-se estar, senhor parocho! dizia ella. E punha-lhe a mão no hombro, e os seus olhos encontravam-se.

Amaro, com as pernas estendidas e o guardanapo sobre o estomago, sentia-se regalado, gozava muito no bom calor da sala; depois do segundo copo da Bairrada tornava-se expansivo, tinha gracinhas; ás vezes mesmo, com um brilho terno no olho, tocava fugitivamente o pé de Amelia debaixo da mesa; ou, fazendo um ar sentido, dizia «que muito lhe pezava não ter uma irmãzinha assim»! [117]

Amelia gostava de ensopar o miolo de pão no môlho do guisado; a mãi dizia-lhe sempre:

—Embirro que faças isso diante do senhor parocho.

E elle então rindo:

—Pois olhe, também eu gósto. Sympathia! magnetismo!

E molhavam ambos o pão, e sem razão davam grandes risadas. Mas o crepusculo crescia, a Ruça trazia o candieiro. O brilho dos copos e das louças alegrava Amaro, enternecia-o mais; chamava á S. Joanneira mamã; Amelia sorria, d'olhos baixos, trincando com a ponta dos dentes cascas de tangerina. D'ahi a pouco vinha o café; o o padre Amaro ficava muito tempo partindo nozes com as costas da faca e quebrando a cinza do cigarro na borda do pires.

Áquella hora apparecia sempre o conego Dias; sentiam-no subir pesadamente, dizendo da escada:

—Licença para dois!

Era elle e a cadella, a Trigueira.

—Ora Nosso Senhor nos dê muito boas noites! dizia assomando á porta.

—Vai a gotinha de café, senhor conego? perguntava logo a S. Joanneira.

Elle sentava-se, exhalando um profundo uff!—Vá lá a gotinha do café! E batendo no hombro do parocho, olhando para a S. Joanneira:

—Então como vai cá o seu menino?

Riam; vinham as historias do dia. O conego costumava trazer no bolso o Diario Popular; Amelia [118] interessava-se pelo romance, a S. Joanneira pelas correspondencias amorosas nos annuncios.

—Ora vejam que pouca vergonha!... dizia ella, deliciando-se.

Amaro então fallava de Lisboa, de escandalos que lhe contára a tia, dos fidalgos que conhecera «em casa do senhor conde de Ribamar». Amelia, enlevada, escutava-o com os cotovêlos sobre a mesa, roendo vagarosamente a ponta do palito.

Depois do jantar iam visitar a entrevada. A lamparina esmorecia à cabeceira da cama: e a pobre velha, com uma medonha touca de rendas negras que tornava mais lívida a sua carinha engelhada como uma maçã raineta, fazendo debaixo da roupa uma saliencia quasí imperceptivel, fixava em todos, com custo, os seus olhinhos concavos e chorosos.

—É o senhor parocho, tia Gertrudes! gritava-lhe Amelia ao ouvido. Vem vêr como está.

A velha fazia um esforço, e com uma voz gemida:

—Ah! é o menino!

—É o menino, é, diziam rindo.

E a velha ficava a murmurar, espantada:

—É o menino, é o menino!

—Pobre de Christo! dizia Amaro. Pobre de Christo! Deus lhe dê uma boa morte!

E voltavam para a sala de jantar onde o conego Dias, todo enterrado na velha poltrona de chita verde, com as mãos cruzadas sobre o ventre, dizia logo:

—Ora vá um bocadinho de musica, pequena! [119]

Amelia ia sentar-se ao piano.

—Ó filha, toca o Adeus! recommendava a S. Joanneira começando a sua meia.

E Amelia, ferindo o teclado:


Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado...


A sua voz arrastava-se com melancolia; e Amaro, soprando o fumo do cigarro, sentia-se todo enleado n'um sentimentalismo agradavel.


Quando descia para o seu quarto, à noite, ia sempre exaltado. Punha-se então a lêr os Canticos a Jesus, traducção do francez publicada pela sociedade das Escravas de Jesus. É uma obrasinha beata, escripta com um lyrismo equivoco, quasi torpe—que dá á oração a linguagem da luxuria: Jesus é invocado, reclamado com as sofreguidões balbuciantes d'uma concupiscencia allucinada: «Oh! vem, amado do meu coração, corpo adoravel, minha alma impaciente quer-te! Amo-te com paixão e desespero! Abraza-me! queima-me! Vem! esmaga-me! possue-me!» E um amor divino, ora grotesco pela intenção, ora obsceno pela materialidade, geme, ruge, declama assim em cem paginas inflammadas onde as palavras gozo, delicia, delírio, extase, voltam a cada momento, com uma persistencia hysterica. E depois de monologos phreneticos d'onde se exhala um bafo de cio mystico, vêm então imbecilidades de sacristia, [120] notasinhas beatas resolvendo casos difficeis de jejuns, e orações para as dôres de parto! Um bispo approvou aquelle livrinho bem impresso; as educandas lêem-n'o no convento. É beato e excitante; tem as eloquencias do erotismo, todas as pieguices da devoção; encaderna-se em marroquim e dá-se ás confessadas: é a cantharida canonica!

Amaro lia até tarde, um pouco perturbado por aquelles periodos sonoros, tumidos de desejo; e no silencio, por vezes, sentia em cima ranger o leito de Amelia: o livro escorregava-lhe das mãos, encostava a cabeça ás costas da poltrona, cerrava os olhos, e parecia-lhe vêl-a em collete diante do toucador desfazendo as trancas; ou, curvada, desapertando as ligas, e o decote da sua camisa entreaberta descobria os dois seios muito brancos. Erguia-se, cerrando os dentes, com uma decisão brutal de a possuir.

Começára então a recommendar-lhe a leitura dos Canticos a Jesus.

—Verá, é muito bonito, de muita devoção! disse elle, deixando-lhe o livrinho uma noite no cesto da costura.

Ao outro dia, ao almoço, Amelia estava pallida, com as olheiras até ao meio da face. Queixou-se de insomnia, de palpitações.

—E então, gostou dos Canticos?

—Muito. Orações lindas! respondeu.

Durante lodo esse dia não ergueu os olhos para Amaro. Parecia triste—e sem razão, ás vezes, o rosto abrazava-se-lhe de sangue. [121]


Os peores momentos para Amaro eram as segundas e quartas-feiras, quando João Eduardo vinha passar as noites «em familia». Até ás nove horas o parocho não sahia do quarto; e quando subia para o chá desesperava-se de vêr o escrevente embrulhado no seu chale-manta, sentado junto de Amelia.

—Ai o que estes dois têm para ahi palrado, senhor parocho! dizia a S. Joanneira.

Amaro tinha um sorriso livido, partindo devagar a sua torrada, com os olhos fitos na chavena.

Amelia, na presença de João Eduardo, agora, não tinha com o parocho a mesma familiaridade alegre, mal levantava os olhos da costura; o escrevente calado chupava o cigarro; e havia grandes silencios em que se sentia o vento uivar, encanado na rua.

—Olha quem andar agora nas aguas do mar! dizia a S. Joanneira fazendo devagar a sua meia.

—Safa!... acrescentava João Eduardo.

As suas palavras, os seus modos irritavam o padre Amaro: detestava-o pela sua pouca devoção, pelo seu bonito bigode preto. E diante d'elle sentia-se mais enleado no seu acanhamento de padre.

—Toca alguma coisa, filha, dizia a S. Joanneira.

—Estou tão cansada! respondia Amelia apoiando-se nas costas da cadeira, com um suspirosinho de fadiga.

A S. Joanneira, então, que não gostava de «vêr [122] gente mona», propunha uma bisca de tres; e o padre Amaro, tomando o seu candieiro de latão, descia para o quarto, muito infeliz.

N'essas noites quasi detestava Amelia; achava-a casmurra. A intimidade do escrevente na casa parecia-lhe escandalosa: decidia mesmo fallar á S. Joanneira, dizer-lhe «que aquelle namoro de portas a dentro não podia ser agradavel a Deus». Depois, mais razoavel, resolvia esquecel-a, pensava em sahir da casa, da parochia. Representava-se então Amelia com a sua corôa de flôres de laranjeira, e João Eduardo, muito vermelho, de casaca, voltando da Sé, casados... Via a cama de noivado com os seus lençoes de renda... e todas as provas, as certezas do amor d'ella pelo «idiota do escrevente» cravavam-se-lhe no peito como punhaes...

—Pois que casem, e que os leve o diabo!...

Odiava-a então. Fechava violentamente a porta à chave como para impedir que lhe penetrasse no quarto o rumor da sua voz ou o frou-frou das suas saias. Mas d'ahi a pouco, como todas as noites, escutava com o coração aos saltos, immovel e ancioso, os ruidos que ella fazia em cima ao despir-se, palrando ainda com a mãi.


Um dia Amaro jantára em casa da snr.a D. Maria da Assumpção; fôra depois passear pela estrada de Marrases, e á volta, ao fim da tarde, encontrou, ao [123] entrar em casa, a porta da rua aberta; sobre o capacho, no patamar, estavam os chinelos de ourelo da Ruça.

—Tonta de rapariga! pensou Amaro, foi á fonte e esqueceu-se de fechar a porta.

Lembrou-se que Amelia tinha ido passar a tarde com a snr.a D. Joaquina Gansoso, n'uma fazenda ao pé da Piedade, e que a S. Joanneira fallára em ir á irmã do conego. Fechou devagar a cancella, subiu á cozinha a accender o seu candieiro; como as ruas estavam molhadas da chuva da manhã, trazia ainda galochas de borracha; os seus passos não faziam rumor no soalho; ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S. Joanneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surprehendido, afastou subtilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou.—Oh Deus de Misericordia! a S. Joanneira, em saia branca, atacava o collete; e, sentado á beira da cama, em mangas de camisa, o conego Dias resfolegava grosso!

Amaro desceu, collado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados da Sé. O céo ennevoára-se, leves gotas de chuva cahiam.

—E esta! E esta! dizia elle assombrado.

Nunca suspeitára um tal escandalo! A S. Joanneira, a pachorrenta S. Joanneira! O conego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os impetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição, as dignidades ecclesiasticas! [124] Que faria então um homem novo e forte, que sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder!... Era, pois, verdade o que se cochichava no seminario, o que lhe dizia o velho padre Sequeira, cincoenta annos parocho da Gralheira:—«Todos são do mesmo barro!» Todos são do mesmo barro,—sobem em dignidades, entram nos cabidos, regem os seminarios, dirigem as consciencias envoltos em Deus como n'uma absolvição permanente, e têm no emtanto, n'uma viella, uma mulher pacata e gorda, em casa de quem vão repousar das attitudes devotas e da austeridade do officio, fumando cigarros de estanco e palpando uns braços rechonchudos!

Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquella, a S. Joanneira e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho conego? A S. Joanneira fora decerto bonita, bem feita, desejavel—outr'ora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, áquelles amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hospedes, viviam da concubinagem. Amelia ia sósinha á igreja, ás compras, á fazenda; e com aquelles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante!—Resumia, filiava certas recordações: um dia que ella lhe estivera mostrando na janella da cozinha um vaso de rainunculos, tinham ficado sós, e ella, muito córada, puzera-lhe a mão sobre o hombro e os seus olhos reluziam e pediam; outra occasião [125] ella roçára-lhe o peito pelo braço! A noite cahira, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só idéa deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o conego era o amante da mãi! Imaginava já a boa vida escandalosa e regalada; emquanto em cima a grossa S. Joanneira beijocasse o seu conego cheio de difficuldades asthmaticas,—Amelia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um chale sobre os hombros nús... Com que phrenesi a esperaria! E já não sentia por ella o mesmo amor sentimental, quasi doloroso: agora a idéa muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panellinha, dava áquelle homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua.—Que pechincha de casa!

A chuva cahía, grossa. Quando entrou havia já luz na sala de jantar. Subiu.

—Ih, como vem frio! disse-lhe Amelia sentindo, ao apertar-lhe a mão, a humidade da nevoa.

Sentada á mesa, costurava com um chale-manta pelos hombros: João Eduardo, ao pé, jogava a bisca com a S. Joanneira.

Amaro sentou-se um pouco embaraçado; a presença do escrevente dera-lhe de repente, sem saber porque, o duro choque d'uma realidade antipathica: e todas as esperanças, que lhe tinham vindo a dansar uma sarabanda na imaginação, encolhiam-se uma a uma, murchavam—vendo alli Amelia ao pé [126] do noivo, curvada sobre uma costura honesta, com o seu escuro vestido afogado, junto do candieiro de familia!

E tudo em redor lhe apparecia como mais recatado, as paredes com o seu papel de ramagens verdes, o armario cheio de louça luzidia da Vista-Alegre, o sympathico e bojudo pote d'agua, o velho piano mal firme nos seus tres pés torneados; o paliteiro tão querido de todos—um Cupido rechonchudo com um guardachuva aberto erriçado de palitos, e aquella tranquilla bisca jogada com os dichotes classicos. Tudo tão decente!

Affirmava-se então nas grossas roscas do pescoço da S. Joanneira, como para descobrir n'ellas as marcas das beijocas do conego: ah! tu, não ha duvida, és «uma barregã de clerigo ». Mas Amelia! com aquellas longas pestanas descidas, o beiço tão fresco!... Ignorava decerto as libertinagens da mãi; ou, experiente, estava bem resolvida a estabelecer-se solidamente na segurança d'um amor legal!—E Amaro, da sombra, examinava-a longamente como para se certificar, na placidez do seu rosto, da virgindade do seu passado.

—Cansadinho, senhor parocho, hein? disse a S. Joanneira. E para João Eduardo:—Trunfo, faz favor, seu cabeça no ar?

O escrevente, namorado, distrahia-se.

—É o senhor a jogar, dizia-lhe a S. Joanneira a cada momento.

Depois elle esquecia-se de comprar cartas. [127]

—Ah menino, menino! dizia ella com a sua voz pachorrenta, que lhe puxo essas orelhas!

Amelia ia cosendo com a cabeça baixa: tinha um pequeno casabeque preto com botões de vidro, que lhe disfarçava a fórma do seio.

E Amaro irritava-se d'aquelles olhos fixos na costura, d'aquelle casaco amplo escondendo a belleza que mais appetecia n'ella! E nada a esperar! Nada d'ella lhe pertenceria, nem a luz d'aquellas pupillas, nem a brancura d'aquelles peitos! Queria casar—e guardava tudo para o outro, o idiota, que sorria baboso, jogando paus! Odiou-o então, d'um odio complicado d'inveja ao seu bigode negro e ao seu direito d'amar...

—Está incommodado, senhor parocho? perguntou Amelia, vendo-o mexer-se bruscamente na cadeira.

—Não, disse elle sêccamente.

—Ah! fez ella com um leve suspiro, picando rapidamente o posponto.

O escrevente, baralhando as cartas, começára a fallar de uma casa que queria alugar; a conversa cahiu sobre arranjos domesticos.

—Traze-me luz! gritou Amaro à Ruça.

Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôz a vela sobre a commoda; o espelho estava defronte, e a sua imagem appareceu-lhe; sentiu-se feio, ridiculo com a sua cara rapada, a volta hirta como uma colleira, e por traz a corôa hedionda. Comparou-se instinctivamente com o outro que tinha um bigode, [128] o seu cabello todo, a sua liberdade! Para que hei de eu estar a ralar-me? pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; elle só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do peccado! Ella sympathisava talvez com elle, apesar de padre; mas antes de tudo, acima de tudo, queria casar; nada mais natural! Via-se pobre, bonita, só: cubiçava uma situação legitima e duradoura, o respeito das visinhas, a consideração dos lojistas, todos os proveitos da honra!

Odiou-a então, e o seu vestido afogado, e a sua honestidade! A estupida, que não percebia que ao pé d'ella, sob uma negra batina, uma paixão devota a espreitava, a seguia, tremia e morria de impaciencia! Desejou que ella fosse como a mãi,—ou peor, toda livre, com vestidos garridos, uma cuia impudente, traçando a perna e fitando os homens, uma femea facil como uma porta aberta ...

—Boa! Estou a desejar que a rapariga fosse uma desavergonhada!—pensou, recahíndo em si um pouco envergonhado. Está claro: não podemos pensar em mulheres decentes, temos que reclamar prostitutas! Bonito dogma!

Abafava. Abriu a janella. O céo estava tenebroso; a chuva cessára; o piar das corujas na Misericordia cortava só o silencio.

Enterneceu-se, então, com aquella escuridão, aquella mudez de villa adormecida. E sentiu subir outra vez, das profundidades do seu sêr, o amor que sentira ao principio por ella, muito puro, d'um sentimentalismo [129] devoto: via a sua linda cabeça, d'uma belleza transfigurada e luminosa, destacar da negrura espessa do ar; e toda a sua alma foi para ella n'um desfallecimento d'adoração, como no culto a Maria e na Saudação Angelica; pediu-lhe perdão anciosamente de a ter offendido; disse-lhe alto: És uma santa! perdôa!—Foi um momento muito dôce, de renunciamento carnal...

E, espantado quasi d'aquellas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôz-se a pensar com saudade—que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amoravel, dedicado, dengueiro, sempre de joelhos, todo d'adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! Á idéa d'aquellas felicidades inaccessiveis, os olhos arrazaram-se-lhe de lagrimas. Amaldiçoou, n'um desespero, «a pêga da marqueza que o fizera padre», e o bispo que o confirmára!

—Perderam-me! perderam-me! diria, um pouco desvairado.

Sentiu então os passos de João Eduardo que descia, e o rumor das saias de Amelia. Correu a espreitar pela fechadura, cravando os dentes no beiço, de ciume. A cancella bateu, Amelia subiu cantarolando baixo.—Mas a sensação d'amor mystico que o penetrára um momento, olhando a noite, passára; e deitou-se, com um desejo furioso d'ella e dos seus beijos.



VII



Dias depois o padre Amaro e o conego Dias tinham ido jantar com o abbade da Cortegassa.—Era um velho jovial, muito caridoso, que vivia ha trinta annos n'aquella freguezia e passava por ser o melhor cozinheiro da diocese. Todo o clero das visinhanças conhecia a sua famosa cabedella de caça. O abbade fazia annos, havia outros convidados—o padre Natario e o padre Brito: o padre Natario era uma creaturinha biliosa, sêcca, com dois olhos encovados, muito malignos, a pelle picada das bexigas e extremamente irritavel. Chamavam-lhe o Furão. Era esperto e questionador; tinha fama de ser grande latinista, e ter uma logica de ferro; e dizia-se d'elle: é uma lingua de vibora! Vivia com duas sobrinhas orphãs, declarava-se extremoso por ellas, gabava-lhes [132] sempre a virtude, e costumava chamar-lhes as duas rosas do seu canteiro. O padre Brito era o padre mais estupido e mais forte da diocese; tinha o aspecto, os modos, a forte vida de um robusto beirão que maneja bem o cajado, emborca um almude de vinho, péga alegremente á rabiça do arado, serve de trolha nos arranjos de um alpendre, e nas séstas quentes de junho atira brutalmente as raparigas para cima das medas de milho. O senhor chantre, sempre correcto nas suas comparações mythologicas, chamava-lhe—o leão de Nemeia.

A sua cabeça era enorme, de cabello lanigero que lhe descia até ás sobrancelhas: a pelle cortida tinha um tom azulado, do esforço da navalha de barba; e, nas suas risadas bestiaes, mostrava dentinhos muito miudos e muito brancos do uso da brôa.

Quando iam sentar-se á mesa chegou o Libaninho todo azafamado, gingando muito, com a calva suada, exclamando logo em tons agudos:

—Ai, filhos! desculpem-me, demorei-me mais um bocadinho. Passei pela igreja de Nossa Senhora da Ermida, estava o padre Nunes a dizer uma missa de intenção. Ai, filhos! papei-a logo, venho mesmo consoladinho!

A Gertrudes, a velha e possante ama do abbade, entrou então com a vasta terrina do caldo de gallinha; e o Libaninho, saltitando em roda d'ella, começou os seus gracejos:

—Ai, Gertrudinhas! quem tu fazias feliz bem eu sei! [133]

A velha aldeã ria com o seu espesso riso bondoso, que lhe sacudia a massa do seio.

—Olhe que arranjo me apparece agora pela tarde!...

—Ai, filha! as mulheres querem-se como as peras, maduras e de sete cotovêlos. Então é que é chupal-as!

Os padres gargalharam; e, alegremente, accommodaram-se á mesa.

O jantar fôra todo cozinhado pelo abbade: logo á sopa as exclamações começaram:

—Sim, senhor, famoso! D'isto nem no céo! Bella coisa!

O excellente abbade estava escarlate de satisfação. Era, como dizia o senhor chantre, «um divino artista»! Lera todos os Cozinheiros completos, sabia innumeras receitas: era inventivo—e, como elle affirmava dando martelladinhas no craneo, «tinha-lhe sahido muito petisco d'aquella cachimonia»! Vivia tão absorvido pela sua «arte» que lhe acontecia, nos sermões de domingo, dar aos fieis ajoelhados para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho. E alli vivia feliz, com a sua velha Gertrudes, de muito bom paladar tambem, com o seu quintal de ricos legumes, sentindo uma só ambição na vida—ter um dia a jantar o bispo!

—Oh, senhor parocho! dizia elle a Amaro, por quem é! mais um bocadinho de cabedella, faça favor! Essas côdeasinhas de pão ensopadas no môlho! [134] Isso! isso! Que tal, hein?—E com um aspecto modesto:—Não é lá por dizer, mas a cabedella hoje sahiu-me boa!

Estava com effeito, como disse o conego Dias, de tentar Santo Antonio no deserto! Todos tinham tirado as capas, e, só com as batinas, as voltas alargadas, comiam devagar, fallando pouco. Como no dia seguinte era a festa da Senhora da Alegria, os sinos na capella, ao lado, repicavam; e o bom sol do meio-dia dava tons muito alegres á louça, ás bojudas canecas azues com vinho da Bairrada, aos pires de pimentões escarlates, ás frescas malgas de azeitonas pretas—emquanto o bom abbade, d'olho arregalado, mordendo o beiço, ia cortando com cuidado nacos brancos do peito do capão recheado.

As janellas abriam para o quintal. Viam-se dois largos pés de camelias vermelhas crescendo junto ao peitoril, e para além das copas das macieiras um pedaço muito vivo de céo azul-ferrete. Uma nora chiava ao longe, lavadeiras batiam a roupa.

Sobre a commoda, entre in-folios, na sua peanha um Christo perfilava tristemente contra a parede o seu corpo amarello, coberto de chagas escarlates: e, aos lados, sympathicos santos sob redomas de vidro, lembravam legendas mais dôces de religião amavel: o bom gigante S. Christovão atravessando o rio com o divino pequerrucho que sorri, e faz saltar o mundo sobre a sua mãosinha como uma pella; o dôce pastor S. Joãosinho coberto com uma pelle de ovelha, e guardando os seus rebanhos, não [135] com um cajado, mas com uma cruz; o bom porteiro S. Pedro, tendo na sua mão de barro as duas santas chaves que servem nas fechaduras do céo! Nas paredes, em lithographias de coloridos crueis, o patriarcha S. José apoiava-se ao seu cajado onde florescem lirios brancos; o cavallo empinado do bravo S. Jorge pisava o ventre d'um dragão surprehendido; e o bom Santo Antonio, á beira d'um regato, sorria, fallando a um tubarão. O tlim-tlim dos copos, o ruido das facas animavam a velha sala de tecto de carvalho defumado, d'uma alegria desusada. E Libaninho devorava, dizendo pilherias:

—Gertrudinhas, flôr do caniço, passa-me as vagens. Não me olhes assim, magana, que me fazes revolver os intestinos!

—O diabo é o homem! dizia a velha. Olha p'r'ó que lhe deu! Fallasse-me aqui ha trinta annos, seu perdido!

—Ai, filha! exclamava revirando os olhos, nem me digas isso que sinto coisas pela espinha acima!

Os padres engasgavam-se de riso. Já duas canecas de vinho estavam vazias: e o padre Brito desabotoára a batina, deixando vêr a sua grossa camisola de lã da Covilhã, onde a marca da fabrica, feita de linha azul, era uma cruz sobre um coração.

Um pobre então viera á porta rosnar lamentosamente Padre-Nossos; e emquanto Gertrudes lhe mettia no alforge metade d'uma brôa, os padres fallaram dos bandos de mendigos que agora percorriam as freguezias. [136]

—Muita pobreza por aqui, muita pobreza! dizia o bom abbade. Ó Dias, mais este bocadinho da aza?

—Muita pobreza, mas muita preguiça, considerou duramente o padre Natario.—Em muitas fazendas sabia elle que havia falta de jornaleiros, e viam-se marmanjos, rijos como pinheiros, a choramingar Padre-Nossos pelas portas.—Sucia de mariolas! resumiu.

—Deixe lá, padre Natario, deixe lá! disse o abbade. Olhe que ha pobreza devéras. Por aqui ha familias, homem, mulher e cinco filhos, que dormem no chão como porcos e não comem senão hervas.

—Então que diabo querias tu que elles comessem? exclamou o conego Dias lambendo os dedos depois de ter esburgado a aza do capão. Querias que comessem perú? Cada um como quem é!

O bom abbade puxou, repoltreando-se, o guardanapo para o estomago, e disse com affecto:

—A pobreza agrada a Deus Nosso Senhor.

—Ai, filhos! acudiu o Libaninho n'um tom choroso, se houvesse só pobresinhos isto era o reininho dos céos!

O padre Amaro considerou com gravidade:

—É bom que haja quem tenha cabedaes para legados pios, edificações de capellas...

—A propriedade devia estar na mão da Igreja, interrompeu Natario com auctoridade.

O conego Dias arrotou com estrondo e acrescentou:

—Para o esplendor do culto e propagação da fé. [137]

Mas a grande causa da miseria, dizia Natario com uma voz pedante, era a grande immoralidade.

—Ah! lá isso não fallemos! exclamou o abbade com desgosto. N'este momento ha só aqui na freguezia mais de doze raparigas solteiras gravidas! Pois senhores, se as chamo, se as reprehendo, põem-se-me a fungar de riso!

—Lá nos meus sitios, disse o padre Brito, quando foi pela apanha da azeitona, como ha falta de braços, vieram as maltas trabalhar. Pois agora o verás! Que desafôro!—Contou a historia das maltas, trabalhadores errantes, homens e mulheres, que andam offerecendo os braços pelas fazendas, vivem na promiscuidade e morrem na miseria.—Era necessario andar sempre de cajado em cima d'elles!

—Ai! disse o Libaninho para os lados apertando as mãos na cabeça. Ai, o peccado que vai pelo mundo! Até se me estão a erriçar os cabellos!

Mas a freguezia de Santa Catharina era a peor! As mulheres casadas tinham perdido todo o escrupulo.

—Peores que cabras, dizia o padre Natario alargando a fivela do collete.

E o padre Brito fallou de um caso na freguezia de Amor: raparigas de dezeseis e dezoito annos que costumavam reunir-se n'um palheiro—o palheiro do Silverio—e passavam lá a noite com um bando de marmanjos!

Então o padre Natario, que já tinha os olhos luzidios, a língua solta, disse, repoltreando-se na cadeira e espaçando as palavras: [138]

—Eu não sei o que se passa lá na tua freguezia, Brito; mas se ha alguma coisa o exemplo vem de alto... A mim têm-me dito que tu e a mulher do regedor...

—É mentira! exclamou o Brito fazendo-se todo escarlate.

—Oh, Brito! oh, Brito! disseram em redor, reprehendendo-o com bondade.

—É mentira! berrou elle.

—E aqui para nós, meus ricos, disse o conego Dias baixando a voz, com o olhinho acceso n'uma malicia confidencial, sempre lhes digo que é uma mulher de mão cheia!

—É mentira! clamou o Brito. E fallando de um jacto:—Quem anda a espalhar isso é o morgado da Cumiada, porque o regedor não votou com elle na eleição... Mas tão certo como eu estar aqui, quebro-lhe os ossos!—Tinha os olhos injectados, brandia o punho:—Quebro-lhe os ossos!

—O caso não é para tanto, homem, considerou Natario.

—Quebro-lhe os ossos! Não lhe deixo um inteiro!

—Ai, socega, leãosinho! disse o Libaninho com ternura. Não te percas, filhinho!

Mas recordando a influencia do morgado da Cumiada, que era então opposição e que levava duzentos votos á urna, os padres fallaram de eleições e dos seus episodios. Todos alli, a não ser o padre Amaro, sabiam, como disse Natario, «cozinhar um deputadosinho». [139] Vieram anecdotas; cada um celebrou as suas façanhas.

O padre Natario na ultima eleição tinha arranjado oitenta votos!

—Caspitè! disseram.

—Imaginam vossês como? Com um milagre!

—Com um milagre!? repetiram espantados.

—Sim, senhores.

Tinha-se entendido com um missionario, e na vespera da eleição receberam-se na freguezia cartas vindas do céo e assignadas pela Virgem Maria, pedindo, com promessas de salvação e ameaças do inferno, voto para o candidato do governo. De chupeta, hein?

—De mão cheia! disseram todos.

Só Amaro parecia surprehendido.

—Homem! disse o abbade com ingenuidade, d'isso é que eu cá precisava. Eu então tenho de andar ahi a estafar-me de porta em porta.—E sorrindo bondosamente:—Com o que se faz ainda alguma coisita é com o relaxe da congrua!

—E com a confissão, disse o padre Natario. A coisa então vai pelas mulheres, mas vai segura! Da confissão tira-se grande partido.

O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:

—Mas emfim a confissão é um acto muito sério, e servir assim para eleições...

O padre Natario, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos excitados, soltou uma palavra imprudente: [140]

—Pois o senhor toma a confissão a sério?

Houve uma grande surpreza.

—Se tomo a confissão a serio!? gritou o padre Amaro recuando a cadeira, com os olhos arregalados.

—Ora essa! exclamaram. Oh, Natario! Oh, menino!

O padre Natario exaltado queria explicar, attenuar:

—Escutem, creaturas de Deus! Eu não quero dizer que a confissão seja uma brincadeira! Irra! Eu não sou pedreiro-livre! O que eu quero dizer é que é um meio de persuasão, de saber o que se passa, de dirigir o rebanho para aqui ou para alli... E quando é para o serviço de Deus, é uma arma. Ahi está o que é—a absolvição é uma arma!

—Uma arma! exclamaram.

O abbade protestava, dizendo:

-Oh, Natario! oh, filho! isso não!

O Libaninho tinha-se benzido; e, dizia, «tinha já um tal terror que até lhe tremiam as pernas»!

Natario irritou-se:

—Então talvez me queiram dizer, gritou, que qualquer de nós, pelo facto de ser padre, porque o bispo lhe impoz tres vezes as mãos e porque lhe disse o accipe, tem missão directa de Deus,—é Deus mesmo para absolver?!

—Decerto! exclamaram, decerto!

E o conego Dias disse, meneando uma garfada de vagens: [141]

Quorum remiseris peccata, remittuntur eis. É a fórmula. A fórmula é tudo, menino...

—A confissão é a essencia mesma do sacerdocio, soltou o padre Amaro com gestos escolares, fulminando Natario. Leia Santo Ignacio! leia S. Thomaz!

—Anda-me com elle! gritava o Libaninho pulando na cadeira, apoiando Amaro.—Anda-me com elle, amigo parocho! Salta-me no cachaço do impio!

—Oh, senhores! berrou Natario furioso com a contradicção, o que eu quero é que me respondam a isto. E voltando-se para Amaro:—O senhor, por exemplo, que acaba de almoçar, que comeu o seu pão torrado, tomou o seu café, fumou o seu cigarro, e que depois se vai sentar no confessionario, ás vezes preoccupado com negocios de familia ou com faltas de dinheiro, ou com dôres de cabeça ou com dôres de barriga, imagina o senhor que está alli como um Deus para absolver?

O argumento surprehendeu.

O conego Dias, pousando o talher, ergueu os braços, e com uma solemnidade comica exclamou:

Hereticus est! É hereje!

Hereticus est! tambem eu digo, rosnou o padre Amaro.

Mas a Gertrudes entrava com a larga travessa do arroz dôce.

—Não fallemos n'essas coisas, não fallemos n'essas coisas, disse logo prudentemente o abbade. Vamos ao arrozinho. Gertrudes, dá cá a garrafinha do Porto! [142]

Natario, debruçado sobre a mesa, ainda arremessava argumentos a Amaro:

—Absolver é exercer a graça. A graça só é attributo de Deus: em nenhum auctor encontra que a graça seja transmissivel. Logo...

—Ponho duas objecções... gritou Amaro com o dedo em riste, em attitude de polemica.

—Oh, filhos! oh, filhos! acudiu o bom abbade afflicto. Deixem a sabbatina, que até nem lhes sabe o arrozinho!

Serviu o vinho do Porto, para os acalmar, enchendo os copos devagar, com as precauções classicas:

—Mil oitocentos e quinze! dizia. D'isto não se bebe todos os dias.

Para o saborear, depois de o fazer reluzir á luz na transparencia dos copos, repoltreavam-se nas velhas cadeiras de couro; começaram as saudes! A primeira foi ao abbade, que murmurava:—Muita honra... muita honra... Tinha os olhos chorosos de satisfação.

—A sua santidade Pio IX! gritou então o Libaninho brandindo o calix. Ao martyr!

Todos beberam commovidos. Libaninho entoou em voz de falsete o hymno de Pio IX: o abbade, prudente, fêl-o calar por causa do hortelão que no quintal aparava o buxo.

A sobremesa foi longa, muito saboreada. Natario tornára-se terno, fallava das suas sobrinhas, «as suas duas rosas», e citava Virgilio, molhando as castanhas em vinho. Amaro, todo deitado para traz na cadeira, [143] as mãos nos bolsos, olhava machinalmente as arvores do jardim, pensando vagamente em Amelia, nas suas fórmas: suspirou mesmo com um desejo d'ella—emquanto o padre Brito, rubro, queria convencer os republicanos a marmeleiro.

—Viva o marmeleiro do padre Brito! gritou enthusiasmado o Libaninho.

Mas Natario começára a discutir com o conego historia ecclesiastica: e, muito questionador, voltou aos seus argumentos vagos sobre a doutrina da Graça: affirmava que um assassino, um parricida poderia ser canonisado—se se tivesse revelado o estado de Graça! Divagava, com phrases d'escóla em que se lhe pegava a lingua. Citou santos que tinham sido escandalosos; outros que pela sua profissão deviam ter conhecido, praticado, amado o vicio. Exclamou com as mãos na cinta:

—Santo Ignacio foi militar!

—Militar!? gritou o Libaninho.—E erguendo-se correndo a Natario, lançando-lhe um braço ao pescoço com uma ternura pueril e avinhada:—Militar!? E que era elle? Que era elle, o meu devoto Santo Ignacio?

Natario repelliu-o:

—Deixa-me, homem! Era sargento de caçadores.

Houve uma enorme risada.

O Libaninho ficára extatico.

—Sargento de caçadores! dizia erguendo as mãos n'um impeto beato. Meu rico Santo Ignacio! Bemdito e louvado seja elle por toda a eternidade! [144]

E então o abbade propôz que fossem tomar café para debaixo da parreira.

Eram tres horas. Ao erguer-se todos cambaleavam um pouco, arrotando formidavelmente, com risadas espessas; só Amaro tinha a cabeça lucida, as pernas firmes—e sentia-se muito terno.

—Pois agora, collegas, disse o abbade sorvendo o ultimo gole de café, o que está a calhar é um passeio à fazenda.

—Para esmoer, rosnou o conego erguendo-se com difficuldade. Vamos lá á fazenda do abbade!

Foram pelo atalho da Barroca, um caminho estreito de carros. O dia estava muito azul, d'um sol tepido. A vereda seguia entre vallados erriçados de silvas; para além as terras lisas estendiam-se cobertas de rastolho; a espaços as oliveiras destacavam, com grande nitidez, na sua folhagem fina; para o horisonte arredondavam-se collinas cobertas da rama verde-negra dos pinheiros; havia um grande silencio; só ás vezes, ao longe, n'um caminho, um carro chiava. E n'aquella serenidade da paizagem e da luz, os padres iam caminhando devagar, tropeçando um pouco, d'olho acceso, estomago enfartado, chacoteando e achando a vida boa.

O conego Dias e o abbade, de braço dado, caturravam. O Brito, ao lado de Amaro, jurava que havia de beber o sangue ao morgado da Cumiada.

—Prudencia, collega Brito, prudencia, dizia Amaro chupando o cigarro.

E o Brito, com passadas de carretão, rosnava: [145]

—Hei de comer-lhe os figados!

O Libaninho atraz, só, cantarolava em falsete:


—Passarinho trigueiro,
Salta cá fóra...


Adiante de todos ia o padre Natario: levava a capa no braço, arrastando pelo chão; a batina desabotoada por traz deixava vêr o forro immundo do collete; e as suas pernas escanifradas, com as meias pretas de lã cheias de passagens, faziam bordos que o atiravam contra o silvado.

E no emtanto Brito, com grandes bafos de vinho, roncava:

—Eu só me contentava em agarrar n'um cajado e correr tudo! tudo!—E gesticulava com um gesto immenso que abrangia o mundo.


—Tem as azas quebradas,
Não póde agora...


gania atraz o Libaninho.

Mas pararam de repente: Natario adiante gritava com uma voz furiosa:

—Seu burro, vossê não vê? Sua bêsta!

Era á volta do atalho. Tropeçára com um velho que conduzia uma ovelha; ia cahindo; e ameaçava-o com o punho fechado n'uma raiva avinhada.

—Queira vossa senhoria perdoar, dizia humildemente o homem.

—Sua bêsta! berrava Natario com os olhos chammejantes. Que o racho!

O homem balbuciava, tinha tirado o chapéo; [146] viam-se os seus cabellos brancos; parecia ser um antigo criado de lavoura envelhecido no trabalho; era talvez avô—e curvado, vermelho de vergonha, encolhia-se com as sebes para deixar passar no estreito caminho de carros os senhores padres joviaes e excitados da vinhaça!


Amaro não os quiz acompanhar até á fazenda. Ao fim da aldeia, no cruzeiro, tomou pelo caminho de Sobros, voltou para Leiria.

—Olhe que é uma legoa á cidade, dizia o abbade. Eu mando-lhe apparelhar a egoa, collega.

—Qual historia, abbade, a perninha é rija!—E, traçando alegremente a capa, partiu cantarolando o Adeus.

Ao pé da Cortegassa o atalho de Sobros alarga-se, ao comprido d'um muro de quinta coberto de musgos e erriçado no alto de luzidios fundos de garrafas. Quando Amaro chegou proximo ao portão de carros, baixo e pintado de vermelho, encontrou no meio do caminho, parada, uma grande vacca malhada; Amaro divertido espicaçou-a com o guarda-chuva; a vacca trotou balouçando a papeira—e Amaro ao voltar-se viu Amelia, ao portão, que saudava, dizendo toda risonha:

—Então está-me a espantar o gado, senhor parocho?

—É a menina! Que milagre é este? [147]

Ella fez-se um pouco vermelha:

—Vim á quinta com a D. Maria da Assumpção. Vim dar uma vista d'olhos á fazenda.

Ao pé de Amelia uma rapariga acamava couves n'uma canastra.

—Então esta é que é a quinta da D. Maria?

E Amaro deu um passo para dentro do portão.

Uma rua larga de velhos sobreiros, dando uma sombra dôce, estendia-se até á casa que se entrevia no fundo, branquejando ao sol.

—É. A nossa fazenda fica do outro lado, mas entra-se tambem por aqui. Vá, Joanna, avia-te!

A rapariga pôz a canastra á cabeça, deu as boas tardes, metteu pelo caminho de Sobros, batendo muito os quadris.

—Sim, senhor! sim, senhor! Parece uma boa propriedade... considerava o parocho.

—Venha vêr a nossa fazenda! disse Amelia. É uma migalhinha de terra, mas para fazer uma idéa. Vai-se por aqui mesmo... Olhe, vamos ter lá baixo com a D. Maria, quer?

—Valeu. Vamos lá á D. Maria, disse Amaro.

Foram subindo a rua dos sobreiros, calados. O chão estava cheio de folhas sêccas, e, entre os troncos espaçados, moitas de hortensias pendiam abatidas, amarelladas dos chuveiros; ao fundo a casa baixa, velha, de um andar só, assentava pesadamente. Ao longo da parede grandes aboboras amadureciam ao sol, e no telhado, todo negro do inverno, esvoaçavam pombos. Por traz o laranjal formava [148] uma massa de folhagens verde-escuras; uma nora chiava monotonamente.

Um rapazito passou com um balde de lavagem.

—Para onde foi a senhora, João? perguntou Amelia.

—Foi p'r'ó olival, disse o rapaz com a sua vozinha arrastada.

O olival era longe, no fundo da quinta: havia ainda grandes lamas, não se podia ir lá sem tamancos.

—Vai-se a gente sujar toda, disse Amelia. Deixar lá a D. Maria, hein? Vamos nós vêr a quinta... Por aqui, senhor parocho...

Estavam defronte d'um velho muro onde cresciam clematites. Amelia abriu uma porta verde; e por tres degraus de pedra desconjuntados desceram a uma rua toldada por uma larga parreira. Junto do muro cresciam rosas de todo o anno; do outro lado, por entre os pilares de pedra que sustentavam a latada e os pés torcidos das cepas, via-se, batido de luz, com tons amarellados, um grande campo de herva; os tectos baixos do curral coberto de colmo destacavam ao longe em escuro, e d'esse lado um fumosinho leve e branco perdia-se no ar muito azul.

Amelia a cada momento parava, explicava a quinta:—Alli ia semear-se cevada; além havia de vêr o cebolinho, estava muito bonito...

—Ah! a D. Maria da Assumpção traz isto muito bem tratado!

Amaro ouvia-a fallar, com a cabeça baixa, olhando-a [149] de lado; a sua voz n'aquelle silencio dos campos parecia-lhe mais rica, mais dôce; o grande ar dava-lhe uma côr mais picante ás faces; o seu olhar rebrilhava. Para saltar umas lamas tinha apanhado o vestido; e a brancura da meia, que elle entreviu, perturbou-o como um começo da sua nudez.

Ao fundo da parreira atravessaram um campo ao comprido d'um regueiro. Amelia riu muito do parocho, que tinha medo de sapos. Elle então exagerou os seus sustos. Ó menina Amelia, haveria viboras? E roçava-se por ella, afastando-se das hervas altas.

—Vê aquelle vallado? Pois para o lado de lá é a nossa fazenda. Entra-se pela cancella, vê? Mas veja lá se está cansado! Que o senhor parece-me que não é grande caminhador... Ai, um sapo!

Amaro deu um pulinho, tocou-lhe o hombro. Ella empurrou-o dôcemente, e com um riso calido:

—Seu medroso! seu medroso!

Estava toda contente, toda viva. Fallava na sua fazenda com uma vaidadesinha satisfeita de entender da lavoura, de ser proprietaria.

—A cancella está fechada, parece, disse Amaro.

—Está? fez ella.—Apanhou as saias, deu uma carreirinha. Estava fechada! Que pena! E abalava, impaciente, as grades estreitas, entre as duas fortes hombreiras de madeira encravadas na espessura do silvado.

—Foi o caseiro que levou a chave!

Agachou-se, gritou para o lado do campo, arrastando muito tempo a voz:—Antonio! Antonio! [150]

Ninguem respondeu.

—Anda lá para o fundo da quinta! disse ella. Que sécca! Se o senhor parocho quizesse, aqui adiante póde-se passar. Ha uma abertura no vallado, chamam-lhe o salto da cabra. Póde a gente saltar para o outro lado.

E caminhando rente ao silvado, chapinhando a lama, toda alegre:

—Quando eu era pequena nunca passava pela cancella, saltava sempre por alli. E cada trambolhão quando o chão estava resvaladiço com a chuva! Era um vivo demonio, aqui onde me vê! Ninguém ha de dizer, senhor parocho, hein? Ai! vou-me a fazer velha!—E voltando-se para elle, com um risinho onde luzia o esmalte dos dentes:—Não é verdade? Estou-me a fazer velha, hein?

Elle sorria. Custava-lhe fallar. O sol, batendo-lhe nas costas, depois do vinho do abbade, amollecia-o: e a figura d'ella, os seus hombros, os seus encontros davam-lhe um desejo continuo e intenso.

—Aqui está o salto da cabra, disse Amelia parando.

Era uma abertura estreita no vallado: a terra do outro lado, mais baixa, estava toda lamacenta. Via-se d'alli a fazenda da S. Joanneira: o campo plano estendia-se até um olival, com a herva fina muito estrellada de pequenos malmequeres brancos; uma vacca preta, de grandes malhas, pastava; e para além viam-se tectos aguçados de casaes onde voavam revoadas de pardaes. [151]

—E agora? perguntou Amaro.

—Agora saltar, disse ella rindo.

—Cá vai! exclamou elle.

Traçou a capa, saltou; mas escorregou nas hervas humidas—e immediatamente Amelia, debruçando-se, rindo muito, com grandes acenos de mãos:

—E agora adeus, senhor parocho, que eu vou ter com a D. Maria. Ahi fica preso na fazenda. Para cima não póde o senhor pular, pela cancella não póde o senhor passar! É o senhor parocho que está preso...

—Ó menina Amelia! ó menina Amelia!

Ella cantarolava-lhe, escarnecendo:


Fico sósinha á varanda
Que o meu bem está na prisão!


Aquellas maneirinhas excitavam o padre—e com os braços erguidos, a voz calida:

—Salte, salte!

Ella então fez voz de mimo:

—Ai, tenho medinho! tenho medinho...

—Salte, menina!

—Lá vai! gritou ella bruscamente.

Saltou, foi cahir-lhe sobre o peito com um gritinho. Amaro resvalou, firmou-se—e, sentindo entre os braços o corpo d'ella, apertou-a brutalmente e beijou-a com furor no pescoço.

Amelia desprendeu-se, ficou diante d'elle, suffocada, com a face em braza, compondo na cabeça e em roda do pescoço, com as mãos tremulas, as pregas da manta de lã. Amaro disse-lhe: [152]

—Ameliasinha!

Mas ella de repente apanhou os vestidos, correu ao comprido do vallado. Amaro, com grandes passadas, seguiu-a atarantado. Quando chegou á cancella, Amelia fallava ao caseiro, que apparecia com a chave.

Atravessaram o campo junto ao regueiro, depois a rua coberta com a parreira. Amelia adiante palrava com o caseiro; e atraz Amaro, de cabeça baixa, seguia muito murcho. Ao pé da casa Amelia parou, fazendo-se vermelha, compondo sempre a manta em redor do pescoço:

—Ó Antonio, disse, ensine o portão ao senhor parocho. Muito boas tardes, senhor parocho.

E através das terras humidas correu para o fundo da quinta, para os lados do olival.

A snr.a D. Maria da Assumpção ainda lá estava, sentada n'uma pedra, tagarellando com o tio Patricio; um bando de mulheres, com grandes varas, batiam em redor a ramagem das oliveiras.

—Que é isso, tonta? D'onde vens tu a correr, rapariga? Credo, que doida!

—Vim a correr, disse ella toda vermelha, suffocada.

Sentou-se ao pé da velha; e ficou immovel, com as mãos cahídas no regaço, respirando fortemente, os beiços entreabertos, os olhos fixos n'uma abstracção. Todo o seu sêr se abysmava n'uma só sensação:

—Gosta de mim! Gosta de mim! [153]


Estava ha muito namorada do padre Amaro—e ás vezes, só, no seu quarto, desesperava-se por imaginar que elle não percebia nos seus olhos a confissão do seu amor! Desde os primeiros dias, apenas o ouvia pela manhã pedir de baixo o almoço, sentia uma alegria penetrar todo o seu sêr sem razão, punha-se a cantarolar com uma volubilidade de passaro. Depois via-o um pouco triste. Porquê? Não conhecia o seu passado; e, lembrada do frade d'Evora, pensou que elle se fizera padre por um desgosto d'amor. Idealisou-o então: suppunha-lhe uma natureza muito terna, parecia-lhe que da sua pessoa airosa e pallida se desprendia uma fascinação. Desejou tel-o por confessor: como seria bom estar ajoelhada aos pés d'elle, no confessionario, vendo de perto os seus olhos negros, sentindo a sua voz suave fallar do paraiso! Gostava muito da frescura da sua boca; fazia-se pallida à idéa de o poder abraçar na sua longa batina preta! Quando Amaro sahia, ia ao quarto d'elle, beijava a travesseirinha, guardava os cabellos curtos que tinham ficado nos dentes do pente. As faces abrazavam-se-lhe quando o ouvia tocar a campainha.

Se Amaro jantava fóra com o conego Dias estava todo o dia impertinente, ralhava com a Ruça, ás vezes mesmo dizia mal d'elle, «que era casmurro, que era tão novo que nem inspirava respeito». [154] Quando elle fallava d'alguma nova confessada, amuava, com um ciume pueril. A sua antiga devoção renascia, cheia de um fervor sentimental: sentia um vago amor physico pela Igreja; desejaria abraçar, com pequeninos beijos demorados, o altar, o orgão, o missal, os santos, o céo, porque não os distinguia bem d'Amaro, e pareciam-lhe dependencias da sua pessoa. Lia o seu livro de missa pensando n'elle como no seu Deus particular. E Amaro não sabia, quando passeava agitado pelo quarto, que ella em cima o escutava, regulando as palpitações do seu coração pelas passadas d'elle, abraçando o travesseiro, toda desfallecida de desejos, dando beijos no ar, onde se lhe representavam os labios do parocho!


A tarde cahia quando D. Maria e Amelia voltaram para a cidade. Amelia adiante, calada, chibatava a sua burrinha, emquanto D. Maria da Assumpção vinha palrando com o moço da quinta, que segurava a arreata. Ao passar junto á Sé tocou a Ave-Marias. E Amelia, rezando, não podia destacar os olhos das cantarias da igreja tão grandiosamente erguidas, decerto para que elle alli celebrasse! Lembravam-lhe então domingos em que o vira, ao repicar dos sinos, dar a benção dos degraus do altar-mór; e todos se curvavam, mesmo as senhoras do morgado Carreiro, mesmo a senhora baroneza de Via-Clara e a mulher do governador civil, tão orgulhosa, [155] com o seu nariz de cavallete! Dobravam-se sob os seus dedos erguidos, e achavam decerto tambem bonitos os seus olhos negros! E era elle que a tinha apertado nos braços, ao pé do vallado! Sentia ainda no pescoço a pressão calida dos seus beiços: uma paixão flammejou como uma chamma por todo o seu sêr: largou a arreata do burrinho, apertou as mãos contra o peito, e cerrando os olhos, lançando toda a sua alma n'uma devoção:

—Ó Nossa Senhora das Dôres, minha madrinha, faze que elle goste de mim!

No adro lageado conegos passeavam, conversando. A botica defronte já tinha luz, os bocaes reluziam; e por detraz da balança a figura do pharmaceutico Carlos, com o seu boné bordado a missanga, movia-se magestosamente.



VIII



O padre Amaro voltára para casa aterrado.

—E agora? E agora? dizia elle encostado ao canto da janella, sentindo o coração encolhido.

Devia sahir immediatamente da casa da S. Joanneira! Não podia continuar alli, na mesma familiaridade, depois de ter tido «aquelle atrevimento com a pequena».

Que ella não ficára muito indignada—apenas atordoada; contivera-a talvez o respeito ecclesiastico, a delicadeza para com o hospede, a attenção para com o amigo do conego. Mas podia contar á mãi, ao escrevente... Que escandalo! E via já o senhor chantre, traçando a perna e fitando-o,—que era a sua attitude de reprehensão—dizer-lhe com pompa:—«São esses desregramentos que deshonram o sacerdocio. Não se comportaria d'outro modo [158] um Satyro no monte Olympo!»—Poderiam desterral-o outra vez para alguma freguezia da serra!... Que diria a senhora condessa de Ribamar?

E depois, se persistisse em vêl-a na intimidade, ter constantemente presentes aquelles olhos negros, o sorriso calido que lhe fazia uma covinha no queixo, a curva d'aquelle peito—a sua paixão, crescendo surdamente, irritada a toda a hora, recalcada para dentro, tornal-o-hia doido, «podia fazer alguma asneira»!

Decidiu-se então a ir fallar ao conego Dias: a sua natureza fraca necessitava sempre receber forças d'uma razão, d'uma experiencia alheia: costumava consultar ordinariamente o conego que, pelo habito da disciplina ecclesiastica, elle julgava mais intelligente por ser seu superior na hierarchia; e não perdera, desde o seminario, a sua dependencia de discipulo. Depois, se quizesse arranjar uma casa e uma criada para ir viver só, necessitava o auxilio do conego, que conhecia Leiria como se a tivesse edificado.

Encontrou-o na sala de jantar. O candieiro de azeite esmorecia com um murrão avermelhado. Os tições da brazeira, cobertos d'uma pulverisação de cinza, revermelhavam vagamente. E o conego, sentado n'uma cadeira de braços, com o capote pelos hombros, os pés embrulhados n'um cobertor, amodorrado no calor do lume, com o Breviario sobre os joelhos, dormitava. Na dobra do cobertor, a Trigueira estirada dormitava como elle. [159]

Aos passos de Amaro o conego abriu muito devagar os olhos, rosnou:

—Ia adormecendo, hein!

—É cedo, disse o padre Amaro. Ainda não tocou a recolher. Então que preguiça é essa?

—Ah! é vossê? disse o conego com um enorme bocejo. Cheguei tarde de casa do abbade, tomei uma gota de chá, veio o quebranto... Então que é feito?

—Vim por aqui.

—Pois o abbade deu-nos um rico jantar. A cabedella estava de mão cheia! Eu carreguei-me um bocado, disse o conego rufando com os dedos na capa do Breviario.

Amaro, sentado ao pé d'elle, remexia devagar o brazido:

—Sabe vossê, padre-mestre? disse elle de repente. Ia acrescentar:—Aconteceu-me um caso!—Mas reteve-se, murmurou:—Estou hoje exquisito; tenho andado ultimamente fóra dos eixos...

-Vossê com effeito anda amarello, disse o conego, considerando-o. Purgue-se, homem!

Amaro esteve um momento calado, a olhar o lume.

—Sabe? estou com idéa de mudar de casa.

O conego ergueu a cabeça, arregalou os olhinhos somnolentos:

—Mudar de casa! Ora essa! Porquê?

O padre Amaro chegou a cadeira para elle, e fallando baixo:

—Vossê percebe... Tenho estado a pensar, é [160] assim exquisito estar em casa de duas mulheres, com uma rapariga...

—Ora, historias! Que me vem vossê contar? Vossê é hospede... Deixe-se d'isso, homem! É como quem está na hospedaria.

—Não, não, padre-mestre, eu cá me entendo...

E suspirou; desejava que o conego o interrogasse, facilitasse as confidencias.

—Então só hoje é que pensa n'isso, Amaro?!

—É verdade, tenho estado a pensar hoje n'isto. Tenho minhas razões.—Ia a dizer:—Fiz uma tolice,—mas acanhou-se.

O conego olhou para elle um momento:

—Homem, seja franco!

—Sou.

—Vossê acha aquillo caro?

—Não! disse o outro com uma negação impaciente.

—Bem, então é outra coisa...

—É. Vossê que quer?—E n'um tom magano, com que julgou agradar ao conego:—A gente tambem gosta do que é bom...

—Bem, bem, disse o conego rindo, percebo. Vossê, como eu sou amigo da casa, quer-me dizer por bons modos que tem nojo de tudo aquillo!

—Tolice! disse Amaro erguendo-se, irritado de tanta obtusidade.

—Oh, homem! exclamou o conego abrindo os braços. Vossê quer sahir da casa? Por alguma é! Ora a mim parece-me que melhor... [161]

—É verdade, é verdade, dizia Amaro que dava agora grandes passadas pela sala. Mas estou com esta ferrada! Veja vossê se me arranja uma casita barata com alguma mobilia... Vossê entende melhor d'essas coisas...

O conego ficou calado, muito enterrado na poltrona, coçando devagar o queixo.

—Uma casita barata... rosnou por fim. Eu verei, eu verei... Talvez.

—Vossê comprehende, acudiu vivamente Amaro, chegando-se ao conego. A casa da S. Joanneira...

Mas a porta rangeu, D. Josepha Dias entrou: e depois de conversarem sobre o jantar do abbade, o catarrho da pobre D. Maria da Assumpção, a doença de figado que ia minando o engraçado conego Sanches—Amaro sahiu, quasi contente agora de se não «ter desabotoado com o padre-mestre».

O conego ficou ainda ao pé do lume, ruminando. Aquella resolução d'Amaro de deixar a casa da S. Joanneira era bem vinda; quando elle o trouxera d'hospede para a rua da Misericordia, combinára com a S. Joanneira diminuir-lhe a mezada que havia annos lhe dava, regularmente, no dia 30. Mas arrependeu-se logo; a S. Joanneira, se não tinha hospede, dormia só no primeiro andar: o conego podia então saborear livremente os carinhos da sua velhota,—e Amelia, na sua alcova, em cima, era alheia a este «conchêgosinho». Quando veio o padre Amaro, a S. Joanneira cedeu-lhe o quarto e dormia n'uma cama de ferro ao pé da filha: e o conego então reconheceu, [162] como elle disse, desconsolado—«que aquelle arranjo tinha estragado tudo». Para gozar as doçuras da sésta com a sua S. Joanneira era necessario que Amelia jantasse fóra, que a Ruça estivesse na fonte, outras combinações importunas; e elle, conego do cabido, na egoista velhice, quando precisava ter recato com a sua saude, via-se obrigado a esperar, a espreitar, a ter nos seus prazeres regulares e hygienicos as difficuldades d'um collegial que ama a senhora professora. Ora se Amaro sahisse, a S. Joanneira descia ao seu quarto, no primeiro andar; vinham as antigas commodidades, as tranquillas séstas. É verdade que tinha de dar a antiga mezada... Daria a mezada!

—Que diabo! ao menos está um homem á sua vontade, resumiu elle.

—Que está para ahi o mano a fallar só? perguntou a snr.a D. Josepha despertando do quebranto em que ia cahindo, ao pé do lume.

—Estava cá a malucar como hei de castigar a carne na quaresma...—disse o conego com um riso grosso.


A essa hora a Ruça chamava o padre Amaro para o chá: e elle subia devagar, com o coração pequenino, receando encontrar a S. Joanneira muito carrancuda, já informada do insulto. Achou só Amelia—que [163] tendo-lhe sentido os passos na escada tomára rapidamente a costura e, com a cabeça muito baixa, dava grandes agulhadas, vermelha como o lenço que abainhava para o conego.

—Muito boa noite, menina Amelia.

—Muito boa noite, senhor parocho.

Amelia costumava sempre ter um olá! ou um ora viva! muito amavel; aquella seccura aterrou-o; disse-lhe logo muito perturbado:

—Menina Amelia, eu peço-lhe que me perdôe... Foi um atrevimento... Eu nem soube o que fiz... Mas acredite... Estou resolvido a sahir d'aqui. Até já pedi ao senhor conego Dias que me arranjasse casa...

Fallava com o rosto baixo—e não via Amelia erguer os olhos para elle, surprehendida e toda desconsolada.

N'este momento a S. Joanneira entrou, e logo da porta, abrindo os braços:

—Viva! Então já sei, já sei! Disse-me o senhor padre Natario: grande jantar! Conte lá, conte lá!

Amaro teve de dizer os pratos, as pilherias do Libaninho, a discussão theologica; depois fallaram da fazenda: e Amaro desceu, sem se ter atrevido a dizer á S. Joanneira que ia deixar a casa,—o que era, coitada, para a pobre mulher, uma perda de seis tostões por dia!

Na manhã seguinte o conego foi a casa d'Amaro, pela manhã, antes d'ir ao côro. O parocho fazia a barba á janella: [164]

—Ólá, padre-mestre! Que ha de novo?

—Parece-me que se arranja a coisa! E foi por acaso, esta manhã... Ha uma casita lá para os meus lados, que é um achado. Era do major Nunes, que vai mudado para o 5.

Aquella precipitação desagradou a Amaro: perguntou, dando desconsoladamente o fio á navalha:

—Tem mobilia?

—Tem mobilia, tem louças, tem roupas, tem tudo.

—Então...

—Então é entrar e começar a gozar. E aqui para nós, Amaro, vossê tem razão. Estive a pensar no caso... É melhor para vossê viver só. De modo que vista-se, e vamos vêr a casita.

Amaro, calado, rapava a cara com desespero.

A casa era na rua das Sousas, d'um andar, muito velha, com a madeira carunchosa: a mobilia, como disse o conego, «podia passar a veteranos»; algumas lithographias desbotadas pendiam lugubremente de grandes prégos negros; e o immundo major Nunes deixára os vidros quebrados, os soalhos todos escarrados, as paredes riscadas de phosphoros, e até sobre um poial da janella duas piugas quasi negras.

Amaro aceitou a casa. E n'essa mesma manhã o conego ajustou-lhe uma criada, a snr.a Maria Vicencia, pessoa muito devota, alta e magra como um pinheiro, antiga cozinheira do doutor Godinho. E (como considerou o conego Dias) era a propria irmã da famosa Dionysia! [165]

A Dionysia fôra outr'ora a Dama das Camelias, a Ninon de Lenclos, a Manon de Leiria: gozára a honra de ser concubina de dois governadores civis e do terrivel morgado da Sertejeira; e as paixões phreneticas que inspirára tinham sido para quasi todas as mães de familia de Leiria causa de lagrimas e de fanicos. Agora engommava para fóra, encarregava-se de empenhar objectos, entendia muito de partos, protegia «o rico adulteriosinho» segundo a singular expressão do velho D. Luiz da Barrosa cognominado o infame, fornecia lavradeirinhas aos senhores empregados publicos, sabia toda a historia amorosa do districto. E via-se sempre na rua a Dionysia com o seu chale de xadrez traçado, o pesado seio tremendo dentro d'um chambre sujo, o passinho discreto e os antigos sorrisos—mas a que faltavam já os dois dentes de diante.

O conego logo n'essa tarde deu parte á S. Joanneira da resolução d'Amaro. Foi um grande espanto para a excellente senhora! Queixou-se, com amargura, da ingratidão do senhor parocho.

O conego tossiu grosso e disse:

—Escute, senhora. Fui eu que arranjei a coisa. E eu lhe digo porquê: é que este arranjo de quarto em cima, etc., está-me a arrazar a saude.

Deu outras razões de prudencia hygienica e acrescentou, passando-lhe com bondade os dedos pelo pescoço:

—E o que é perder a conveniencia, não se afflija a senhora! Eu darei p'r'á panella como d'antes; [166] e como a colheita foi boa porei mais meia moeda para os arrebiques da pequena. Ora venha de lá uma beijoca, Augustinha, sua bréjeira! E ouça, hoje como-lhe cá as sopas.

Amaro no emtanto em baixo ia emmalando a sua roupa. Mas a cada momento parava, dava um ai triste, ficava a olhar em redor o quarto, a cama fôfa, a mesa com a sua toalha branca, a larga cadeira forrada de chita onde elle lia o Breviario, ouvindo, por cima, cantarolar Amelia.

—Nunca mais! pensava. Nunca mais!

Adeus as boas manhãs passadas ao pé d'ella, vendo-a costurar! Adeus as alegres sobremesas, que se prolongavam á luz do candieiro! Adeus os chás, ao pé da brazeira, quando o vento uivava fóra e cantavam as frias goteiras! Tudo tinha acabado!

A S. Joanneira e o conego appareceram então á porta do quarto. O conego resplandecia; e a S. Joanneira disse, muito magoada:

—Já sei, já sei, seu ingrato!

—É verdade, minha senhora, fez Amaro encolhendo os hombros tristemente. Mas ha razões... Eu sinto...

—Olhe, senhor parocho, disse a S. Joanneira, não se offenda com o que lhe vou dizer, mas eu já lhe queria como filho...—E levou o lenço aos olhos.

—Tolices! exclamou o conego. Pois então elle não póde vir aqui em amizade, passar as noites para o cavaco, tomar o seu café?... O homem não vai para o Brazil, senhora! [167]

—Pois sim, pois sim, dizia a pobre senhora desconsolada, mas sempre era tel-o de portas a dentro!

Emfim, ella bem sabia que a gente na sua casa está muito melhor... Fez-lhe então grandes recommendações sobre a lavadeira, que mandasse buscar o que quizesse, louças, lençoes...

—E veja lá não lhe esqueça alguma coisa, senhor parocho!

—Muito obrigado, minha senhora, muito obrigado...

E, continuando a arrumar a sua roupa, o parocho desesperava-se agora contra a resolução que tomára. A pequena evidentemente não tinha aberto bico! Para que sahiria então d'aquella casa tão barata, tão confortavel, tão amiga? E odiava o conego pelo seu zelo tão precipitado.

O jantar foi triste. Amelia, decerto para explicar a sua pallidez, queixava-se de dôres na cabeça. Ao café o conego quiz a sua «dóse de musica»; e Amelia, ou machinalmente ou com intenção, disse a canção querida:


Ai! adeos! acabaram-se os dias
Que ditoso vivi a teu lado!
Sôa a hora, o momento fadado,
É forçoso deixar-te e partir!


Então, áquella chorosa melodia repassada das tristezas da separação, Amaro sentiu-se tão perturbado que teve de se erguer bruscamente, ir encostar o rosto á vidraça, esconder as duas lagrimas que [168] irreprimivelmente lhe saltavam das palpebras. Os dedos d'Amelia embrulhavam-se tambem no teclado; até a mesma S. Joanneira disse:

—Oh filha, toca outra coisa, credo!

Mas o conego erguendo-se pesadamente:

—Pois senhores, vão sendo horas. Vamos lá, Amaro. Eu vou comsigo até a rua das Sousas...

Amaro então quiz dizer adeus á idiota; mas, depois d'um forte accesso de tosse, a velha dormia, muito fraca.

—Deixal-a socegada, disse Amaro. E apertando a mão á S. Joanneira:—Muito obrigado por tudo, minha senhora, acredite...

Calou-se, com um soluço na garganta.

A S. Joanneira tinha levado aos olhos a ponta do seu avental branco.

—Oh, senhora! disse o conego rindo-se, já ha bocado lhe disse, o homem não vai p'r'ás Indias!

—A gente é pela amizade que lhes ganha... choramingou a S. Joanneira.

Amaro tentou gracejar. Amelia, muito branca, mordia o beicinho.

Emfim Amaro desceu: e o João Ruço que na sua chegada a Leiria lhe trouxera o bahú para a rua da Misericordia, muito bebedo, cantarolando o Bemdito,—levava-lh'o agora para a rua das Sousas, bebedo tambem, mas trauteando o Rei-chegou. [169]


Quando Amaro, n'essa noite, se viu só n'aquella casa tristonha, sentiu uma melancolia tão pungente e um tedio tão negro da vida, que, com a sua natureza lassa, teve vontade de se encolher a um canto e ficar alli a morrer!

Parava no meio do quarto, punha-se a olhar em redor: a cama era de ferro, pequena, com um colchão duro e uma coberta vermelha; o espelho com o aço gasto luzia sobre a mesa; como não havia lavatorio, a bacia e o jarro, com um bocadinho de sabonete, estavam sobre o poial da janella; tudo alli cheirava a môfo; e fóra, na rua negra, cahia sem cessar a chuva triste. Que existencia! E seria sempre assim!...

Desesperou-se então contra Amelia: accusou-a, com o punho fechado, das commodidades que perdera, da falta de mobilia, da despeza que ia ter, da solidão que o regelava! Se fosse mulher de coração devia ter vindo ao seu quarto e dizer-lhe: «Senhor padre Amaro, para que sae de casa? Eu não estou zangada!» Porque emfim quem irritára o seu desejo? Ella, com as suas maneirinhas ternas, os seus olhinhos adocicados! Mas não, deixára-o emmalar a roupa, descer a escada, sem uma palavra amiga, indo tocar com estrondo a valsa do Beijo!

Jurou então não voltar a casa da S. Joanneira. E, a grandes passadas pelo quarto, pensara no que havia de fazer para humilhar Amelia. O quê? Desprezal-a [170] como uma cadella! Ganhar influencia na sociedade devota de Leiria, ser muito do senhor chantre; afastar da rua da Misericordia o conego e as Gansosos; intrigar com as senhoras da boa roda para que se afastassem d'ella, com seccura, no altar-mór, á missa do domingo; dar a entender que a mãi era uma prostituta... Enterral-a! cobril-a de lama! E na Sé, ao sahir da missa, regalar-se de a vêr passar encolhida no seu mantelete preto, escorraçada de todos, emquanto elle, á porta, de proposito, conversaria com a mulher do senhor governador civil e seria galante com a baroneza de Via-Clara!... Depois prégaria um grande sermão, na quaresma, e ella ouviria dizer, na arcada, nas lojas: «Grande homem, o padre Amaro!» Tornar-se-hia ambicioso, intrigaria e, protegido pela senhora condessa de Ribamar, subiria nas dignidades ecclesiasticas: e o que pensaria ella quando o visse um dia bispo de Leiria, pallido e interessante na sua mitra toda dourada, passando, seguido dos incensadores, ao longo da nave da Sé, entre um povo ajoelhado e penitente, sob os roucos cantos do orgão? E ella o que seria então? Uma magra creatura murcha, embrulhada n'um chale barato! E o snr. João Eduardo, o escolhido d'agora, o esposo? Seria um pobre amanuense mal pago, com uma quinzena roçada, os dedos queimados do cigarro, curvado sobre o seu papel almasso, imperceptivel na terra, adulando alto e invejando baixo! E elle, bispo, na vasta escadaria hierarchica que sobe até ao céo, estaria já muito para cima dos homens, [171] na zona de luz que faz a face de Deus-Padre!—E seria par do reino, e os padres da sua diocese tremeriam de o vêr franzir a testa!

Na igreja, ao lado, bateram devagar dez horas.

Que faria ella áquella hora? pensava. Costurava decerto, na sala de jantar: estava o escrevente: jogavam a bisca, riam—ella roçava-lhe talvez com o pé, no escuro, debaixo da mesa! Recordou o seu pé, o bocadinho da meia que vira quando ella saltava as lamas na quinta; e essa curiosidade inflammada subia pela curva da perna até ao seio, percorrendo bellezas que suspeitava... O que elle gostava d'aquella maldita! E era impossivel obtel-a! E todo o homem feio e estupido podia ir á rua da Misericordia pedil-a á mãi, vir á Sé dizer-lhe: «Senhor parocho, case-me com esta mulher», e beijar, sob a protecção da Igreja e do Estado, aquelles braços e aquelle peito! Elle não. Era padre! Fôra aquella infernal pêga da marqueza d'Alegros!...

Abominava então todo o mundo secular—por lhe ter perdido para sempre os privilegios: e, como o sacerdocio o excluia da participação nos prazeres humanos e sociaes, refugiava-se, em compensação, na idéa da superioridade espiritual que elle lhe dava sobre os homens. Aquelle miseravel escrevente podia casar e possuir a rapariga—mas que era elle em comparação d'um parocho a quem Deus conferira o poder supremo de distribuir o céo e o inferno?...—E repastava-se d'este sentimento, enchendo o espirito d'orgulhos sacerdotaes. Mas vinha-lhe [172] bem depressa a desconsoladora idéa que esse dominio só era valido na região abstracta das almas; nunca o poderia manifestar, por actos triumphantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da Sé—mas, apenas sahia para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a acção sacerdotal a uma mesquinha influencia sobre almas de beatas... E era isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder ecclesiastico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens... O que lhe faltava era a auctoridade dos tempos em que a Igreja era a nação e o parocho dono temporal do rebanho. Que lhe importava, no seu caso, o direito mystico d'abrir ou fechar as portas do céo? O que elle queria era o velho direito d'abrir ou fechar a porta das masmorras! Necessitava que os escreventes e as Amelias tremessem da sombra da sua batina... Desejaria ser um sacerdote da antiga Igreja, gozar das vantagens que dá a denuncia e dos terrores que inspira o carrasco, e alli n'aquella villa, sob a jurisdicção da sua Sé, fazer estremecer, á idéa de castigos torturantes, aquelles que aspirassem a realisar felicidades—que lhe eram a elle interdictas: e pensando em João Eduardo e em Amelia, lamentava não poder accender as fogueiras da Inquisição!—Assim aquelle inoffensivo moço tinha durante horas, sob a excitação colerica d'uma paixão contrariada, ambições grandiosas de tyrannia catholica:—porque todo o padre, o mais boçal, tem um momento em que é penetrado [173] pelo espirito da Igreja ou nos seus lances de renunciamento mystico ou nas suas ambições de dominação universal: todo o sub-diacono se julga uma hora capaz de ser santo ou de ser Papa: não ha seminarista que não tenha, durante um instante, aspirado com ternura á caverna no deserto em que S. Jeronymo, olhando o céo estrellado, sentia descer-lhe sobre o peito a Graça como um abundante rio de leite: e o abbade pansudo que á tardinha, á varanda, palita o dente furado saboreando o seu café com um ar paterno, traz dentro em si os indistinctos restos d'um Torquemada.


A vida d'Amaro tornou-se monotona. Março ia muito molhado, muito frio; e, depois do serviço na Sé, Amaro entrava em casa, tirava as botas enlameadas, ficava em chinelas a aborrecer-se. Ás tres horas jantava; e nunca levantava a tampa rachada da terrina sem se lembrar, com uma saudade pungente, do jantarinho na rua da Misericordia, quando Amelia, com o seu collar muito branco, lhe passava a sopa de grãos de bico, sorrindo, toda carinhosa. Ao lado a Vicencia servia, têsa e enorme, com o seu corpo de soldado vestido de saias, sempre constipada; e de vez em quando, desviando a cabeça, assoava-se ao avental com ruido. Era muito suja: as facas tinham o cabo humido da agua gordurosa das lavagens. Amaro, desgostoso e indifferente, [174] não se queixava; comia mal, á pressa; mandava vir o café, e ficava horas esquecidas sentado á mesa, quebrando a cinza do cigarro na borda do prato, perdido n'um tedio mudo, sentindo os pés e os joelhos frios do vento que entrava pelas frinchas da sala desabrigada.

Ás vezes o coadjutor, que nunca o visitára na rua da Misericordia, apparecia ao fim do jantar: sentava-se arredado da mesa, e ficava calado, com o seu guardachuva entre os joelhos. Depois, julgando agradar ao parocho, repetia, invariavelmente:

—Vossa senhoria aqui está melhor, sempre é estar em sua casa.

—Está claro... rosnava Amaro.

Ao principio, para consolar o seu despeito, dizia ligeiramente mal da S. Joanneira, provocando, animando o coadjutor (que era de Leiria) a contar os escandalos da rua da Misericordia. O coadjutor, por servilismo, tinha sorrisos mudos, repassados de perfidia.

—Alli ha pôdres, hein? dizia o parocho.

O outro encolhia os hombros, com as mãos muito espalmadas ao pé das orelhas, n'uma expressão de malicia; mas não pronunciava um som, receando que as suas palavras, repetidas, escandalisassem o senhor conego. Ficavam então soturnos, trocando, a espaços, phrases molles: um baptisado que havia; o que dissera o conego Campos; um frontal do altar que era necessario limpar. Aquella conversa enfastiava Amaro: sentia-se muito pouco padre, muito [175] distante da panellinha ecclesiastica: não o interessavam as intriguinhas do cabido, as parcialidades tão commentadas do senhor chantre, os roubos da Misericordia, as turras da camara ecclesiastica com o governo civil; e achava-se sempre alheio, mal informado, nas palestras ecclesiasticas em que tão femininamente se deleitam os padres, e que têm a puerilidade d'uma caturrice e a tortuosidade d'uma conspiração.

—O vento está sul? perguntava elle emfim, bocejando.

—Sempre! respondia o coadjutor.

Accendia-se a luz; o coadjutor erguia-se, sacudia o guardachuva, e sahia com um olhar de revez á Vicencia.

Era aquella a peor hora, a da noite, quando ficava só. Procurava lêr, mas os livros enfastiavam-n'o: deshabituado da leitura não comprehendia «o sentido». Ia olhar á vidraça: a noite estava tenebrosa, o lagedo reluzia vagamente. Quando acabaria aquella vida? Accendia o cigarro, e do lavatorio para a janella recomeçava os seus passeios, com as mãos atraz das costas. Deitava-se sem rezar ás vezes: e não tinha escrupulos: julgava que ter renunciado a Amelia era já uma penitencia, não necessitava cansar-se a lêr orações no livro; celebrára o «seu sacrificio»—sentia-se vagamente quite com o céo!

E continuava a viver só: o conego nunca vinha á rua das Sousas, «porque, dizia, era casa que só o entrar n'ella até se lhe agoniava o estomago». E [176] Amaro, cada dia mais amuado, não voltára a casa da S. Joanneira. Escandalisára-se muito que ella não lhe tivesse mandado pedir para ir ás partidas da sexta-feira; attribuira «a desfeita» á hostilidade d'Amelia; e, mesmo para a não vêr, trocára com o padre Silveira a missa do meio-dia onde ella costumava ir, e dizia a das nove horas, furioso com aquelle novo sacrificio!


Todas as noites Amelia, ao ouvir tocar a campainha, tinha uma palpitação tão forte no coração que ficava como suffocada um momento. Depois os botins de João Eduardo rangiam na escada, ou ella conhecia os passos fôfos das galochas das Gansosos: apoiava-se então às costas da cadeira, cerrando os olhos, como na fadiga d'uma desesperança repetida. Esperava o padre Amaro; e ás vezes, pelas dez horas, quando já não era possível que elle viesse, a sua melancolia era tão pungente que se lhe entumecia a garganta de soluços, tinha de pousar a costura, dizer:

—Vou-me deitar, estou com umas dôres de cabeça que não paro!

Atirava-se para a cama de bruços, murmurava n'uma agonia:

—Oh Senhora das Dôres, minha madrinha! porque não vem elle, porque não vem elle?

Nos primeiros dias, apenas elle se fôra embora, [177] toda a casa lhe pareceu deshabitada e lugubre! Quando vira no quarto d'elle os cabides sem a sua roupa, a commoda sem os seus livros, rompeu a chorar. Foi beijar a travesseirinha onde elle dormia, apertou ao peito com delirio a ultima toalha a que elle limpára as mãos! Tinha constantemente o seu rosto presente, elle entrava sempre nos seus sonhos. E com a separação o seu amor ardia mais forte e mais alto, como uma fogueira que se isola.

Uma tarde, que fôra visitar uma prima enfermeira no hospital, viu ao chegar á ponte gente parada, embasbacada com gozo para uma rapariga de cuia á banda e garibaldi escarlate, que, de punho no ar, já rouca, praguejava contra um soldado: o rapazola, um beirão de cara redonda e lorpa coberta de pennugem loura, virava-lhe as costas, encolhendo os hombros, as mãos muito enterradas nos bolsos, rosnando:

—Não lhe fez mal, não lhe fez mal...

O snr. Vasques, com loja de panos na Arcada, parára a olhar, descontente d'aquella «falta d'ordem publica».

—Algum barulho? perguntou-lhe Amelia.

—Olá, menina Amelia! Não, uma brincadeira do soldado. Atirou-lhe um rato morto á cara, e a mulher está a fazer aquelle espalhafato. Bebedas!

Mas a rapariga de garibaldi vermelha voltára-se—e Amelia aterrada reconheceu a Joanninha Gomes, sua amiga da mestra, que fôra amante do padre Abilio! O padre fôra suspenso, deixára-a; ella partira [178] para Pombal, depois para o Porto; de miseria em miseria voltára a Leiria, e ahi vivia n'alguma viella ao pé do quartel, entisicando, gasta por todo um regimento!—Que exemplo, santo Deus, que exemplo!

E tambem ella gostava d'um padre! Tambem ella, como outr'ora a Joanninha, chorava sobre a sua costura quando o senhor padre Amaro não vinha! Onde a levava aquella paixão? Á sorte da Joanninha! A ser a amiga do parocho! E via-se já apontada a dedo, na rua e na Arcada, mais tarde abandonada por elle, com um filho nas entranhas, sem um pedaço de pão!... E, como uma rajada de vento que limpa n'um momento um céo ennevoado, o terror agudo que lhe dera o encontro de Joanninha varreu-lhe do espirito as nevoas amorosas e morbidas em que ella se ia perdendo. Decidiu aproveitar a separação, esquecer Amaro: lembrou-se mesmo de apressar o seu casamento com João Eduardo para se refugiar n'um dever dominante; durante alguns dias forçou-se a interessar-se por elle; começou mesmo a bordar-lhe umas chinelas...

Mas pouco a pouco a idéa má que, atacada, se encolhera e se fingira morta,—principiou lentamente a desenroscar-se, a subir, a invadil-a! De dia, de noite, costurando e rezando, a idéa do padre Amaro, os seus olhos, a sua voz appareciam-lhe, tentações teimosas! com um encanto crescente. Que faria elle? porque não vinha? gostava d'outra? Tinha ciumes indefinidos, mas mordentes, que a queimavam. E aquella paixão ia-a envolvendo como uma atmosphera [179] d'onde não podia sahir, que a seguia se ella fugia, e que a fazia viver! As suas resoluções honestas resequiam-se, morriam como debeis florinhas n'aquelle fogo que a percorria. Se ás vezes a lembrança de Joanninha ainda voltava, repellia-a com irritação; e acolhia alvoroçadamente todas as razões insensatas que lhe vinham de amar o padre Amaro! Tinha agora só uma idéa:—atirar-lhe os braços ao pescoço e beijal-o... oh! beijal-o! Depois, se fosse necessario, morrer!

Começou então a impacientar-se com o amor de João Eduardo. Achava-o «palerma».

—Que massada! pensava quando lhe sentia os passos na escada, á noite.

Não o supportava com os seus olhos voltados sempre para ella, a sua quinzena preta, as suas monotonas conversas sobre o governo civil.

E idealisava Amaro! As suas noites eram sacudidas de sonhos lubricos; de dia vivia n'uma inquietação de ciumes, com melancolias lugubres, que a tornavam, como dizia a mãi, «uma môna, que até enraivece»!

O genio azedava-se-lhe.

—Credo, rapariga! que tens tu? exclamava a mãi.

—Não me sinto boa. Estou para ter alguma!

Andava, com effeito, amarella, perdera o appetite. E emfim uma manhã ficou de cama com febre. A mãi, assustada, chamou o doutor Gouvêa. O velho pratico, depois de vêr Amelia, veio à sala de jantar sorvendo com satisfação a sua pitada. [180]

—Então, senhor doutor? disse a S. Joanneira.

—Case-me esta rapariga, S. Joanneira, case-me esta rapariga. Tenho-lh'o dito tantas vezes, creatura!

—Mas, senhor doutor...

—Mas case-a por uma vez, S. Joanneira, case-a por uma vez! repetia elle pelas escadas, arrastando um pouco a perna direita que um rheumatismo teimoso encolhia.

Amelia emfim melhorou—com grande alegria de João Eduardo, que emquanto ella estivera doente vivera n'uma afflicção, lamentando não poder ser seu enfermeiro, e derramando ás vezes no cartorio uma lagrima triste sobre os papeis sellados do severo Nunes Ferral.


No domingo seguinte, á missa das nove horas na Sé, Amaro, ao subir para o altar, entre as devotas que se arredavam viu de relance Amelia ao pé da mãi, com o seu vestido de sêda preta de largos folhos. Cerrou um momento os olhos; e mal podia sustentar o calix com as mãos tremulas.

Quando, depois de resmungar o Evangelho, Amaro fez uma cruz sobre o missal, se persignou e se voltou para a igreja dizendo Dominus vobiscum—a mulher do Carlos da botica disse baixo a Amelia «que o senhor parocho estava tão amarello, que devia ter alguma dôr». Amelia não respondeu, curvada sobre o livro, com todo o sangue nas faces. E [181] durante a missa, sentada sobre os calcanhares, absorta, a face banhada n'um extase baboso, gozou a sua presença, as suas mãos magras erguendo a hostia, a sua cabeça bem feita curvando-se na adoração ritual; uma doçura corria-lhe na pelle quando a voz d'elle, apressada, dizia mais alto algum latim: e quando Amaro, tendo a mão esquerda no peito e a direita estendida, disse para a igreja o Benedicat vos, ella, com os olhos muito abertos, arremessou toda a sua alma para o altar, como se elle fosse o proprio Deus a cuja benção as cabeças se curvavam ao comprido da Sé, até ao fundo, onde os homens do campo com os seus varapaus pasmavam para os dourados do sacrario.

Á sahida da missa começára a chover; e Amelia e a mãi, á porta com outras senhoras, esperavam uma «aberta».

—Ólá! por aqui!? disse de repente Amaro, chegando-se, muito branco.

—Estamos á espera que passe a chuva, senhor parocho, disse a S. Joanneira voltando-se. E immediatamente, muito reprehensiva:—E porque não tem apparecido, senhor parocho? Realmente! Que lhe fizemos nós? Credo, até dá que fallar...

—Muito occupado, muito occupado... balbuciou o parocho.

—Mas um bocadinho á noite. Olhe, póde crêr, tem-me causado desgosto... E todos têm reparado. Não, lá isso, senhor parocho, tem sido ingratidão!

Amaro disse, córando: [182]

—Pois acabou-se. Hoje á noite lá appareço, e estão as pazes feitas ...

Amelia, muito vermelha, para encobrir a sua perturbação olhava para todos os pontos o céo carregado, como assustada do temporal.

Amaro então offereceu-lhe o seu guardachuva. E emquanto a S. Joanneira o abria, apanhando com cuidado o vestido de sêda, Amelia disse ao parocho:

—Até á noite, sim?—E mais baixo, olhando em redor, com medo:—Oh, vá! Tenho estado tão triste! tenho estado como doida! Vá, peço-lh'o eu!

Amaro, voltando para casa, continha-se para não correr de batina pelas ruas. Entrou no quarto, sentou-se aos pés da cama, e alli ficou saturado de felicidade, como um pardal muito farto n'um raio de sol muito quente: recordava o rosto d'Amelia, a redondeza dos seus hombros, a belleza dos encontros, as palavras que lhe dissera:—Tenho estado como doida! A certeza de que «a rapariga gostava d'elle» entrou-lhe então na alma com a violencia de uma rajada, e ficou a susurrar por todos os recantos do seu sêr com um murmurio melodioso de felicidades agitadas. E passeava pelo quarto com passadas de covado, estendendo os braços, desejando a posse immediata do seu corpo: sentia um orgulho prodigioso: ia defronte do espelho altear a arca do peito, como se o mundo fosse um pedestal expresso que só o sustentasse a elle! Mal pôde jantar. Com que impaciencia desejava a noite! A tarde clareára; [183] a cada momento tirava o seu «cebolão» de prata, indo olhar á janella, com irritação, a claridade do dia que se arrastava devagar no horisonte. Engraxou elle mesmo os seus sapatos, lustrou o cabello de banha. E antes de sahir rezou cuidadosamente o seu Breviario—porque, em presença d'aquelle amor adquirido, viera-lhe um susto supersticioso que Deus ou os santos escandalisados o viessem perturbar: e não queria, com desleixos de devoção, dar-lhes razão de queixa.

Ao entrar na rua d'Amelia o coração bateu-lhe tão forte que teve de parar, suffocado; e pareceu-lhe melodioso o piar das corujas na velha Misericordia, que ha tantas semanas não ouvia.

Que admiração quando elle appareceu na sala de jantar!

—Ditosos olhos que o vêem! Pensavamos que tinha morrido! Grande milagre!...

Estava a snr.a D. Maria da Assumpção, as Gansosos. Arredaram as cadeiras com enthusiasmo para lhe dar logar, admiral-o.

—Então que tem feito, que tem feito? E olhe que está mais magro!

O Libaninho, no meio da sala, imitava foguetes subindo ao ar. O snr. Arthur Couceiro improvisou-lhe um fadinho á viola:


Ora já cá temos o senhor parocho
Nos chás da S. Joanneira.
Isto já parece outra coisa,
Volta a bella cavaqueira!
[184]

Houve palmas. E a S. Joanneira, toda banhada de riso:

—Ai, tem sido uma ingratidão d'elle!

—Uma ingratidão, diz a senhora? rosnou o conego. Uma casmurrice, digo eu!

Amelia não fallava, com as faces abrazadas, os olhos humidos pasmados para o padre Amaro—a quem tinham dado a poltrona do conego, e que se repoltreava n'ella, tumido de gozo, fazendo rir as senhoras pelas pilherias com que contava os desleixos da Vicencia.

João Eduardo, isolado a um canto, ia folheando o velho album.



IX



Assim recomeçou a intimidade de Amaro na rua da Misericordia. Jantava cedo, depois lia o seu Breviario; e apenas na igreja batiam as sete horas, embrulhava-se no seu capote e dava volta pela Praça passando rente da botica, onde os frequentadores caturravam, com as mãos molles apoiadas ao cabo dos guardachuvas. Mal avistava a janella da sala de jantar alumiada, todos os seus desejos se erguiam; mas ao toque agudo da campainha sentia ás vezes um susto indefinido d'achar a mãi já desconfiada ou Amelia mais fria!... Mesmo por superstição entrava sempre com o pé direito.

Encontrava já as Gansosos, a D. Josepha Dias; e o conego, que jantava agora muito com a S. Joanneira, e que áquella hora, estirado na poltrona, findava a sua somneca, dizia-lhe bocejando: [186]

—Ora viva o menino bonito!

Amaro ia sentar-se ao pé d'Amelia que costurava á mesa; o olhar penetrante que se trocavam era todos os dias como o mutuo juramento mudo que o seu amor crescera desde a vespera; e ás vezes mesmo, debaixo da mesa, roçavam os joelhos com furor. Começava então a «cavaqueira». Eram sempre os mesmos interessesinhos, as questões que iam na Misericordia, o que dissera o senhor chantre, o conego Campos que despedira a criada, o que se rosnava da mulher do Novaes...

—Mais amor do proximo! resmungava o conego mexendo-se na poltrona. E com um arrôto curto tornava a cerrar as palpebras.

Então as botas de João Eduardo rangiam na escada, e Amelia immediatamente abria a mesinha para a partida de manilha: os parceiros eram a Gansoso, D. Josepha, o parocho: e como Amaro jogava mal, Amelia, que era mestra, sentava-se por detraz d'elle para o «guiar». Logo ás primeiras vasas havia altercações. Então Amaro voltava o rosto para Amelia, tão perto que confundiam os seus halitos.

—Esta? perguntava, indicando a carta com o olho languido.

—Não! não! espere, deixe vêr, dizia ella, vermelha.

O seu braço roçava o hombro do parocho: Amaro sentia o cheiro da agua de colonia que ella usava com exagero.

Defronte, ao pé de Joaquina Gansoso, João Eduardo, [187] mordicando o bigode, contemplava-a com paixão; Amelia, para se desembaraçar d'aquelles dois olhos langorosos fitos n'ella, tinha-lhe dito por fim «que até era indecente, diante do parocho que era de ceremonia, estar assim a cocal-a toda a noite».

Ás vezes mesmo dizia-lhe, rindo:

—Ó snr. João Eduardo, vá conversar com a mamã, senão têmol-a aqui têmol-a a dormir.

E João Eduardo ia sentar-se ao pé da S. Joanneira, que, de lunetas na ponta do nariz, fazia somnolentamente a sua meia.

Depois do chá Amelia sentava-se ao piano. Causava então enthusiasmo em Leiria uma velha canção mexicana, a Chiquita. Amaro achava-a de appetite; e sorria de gozo, com os seus dentes muito brancos, apenas Amelia começava com muita languidez tropical:


Quando sali de la Habana
Valga-me Dios!...


Mas Amaro amava sobretudo a outra estrophe, quando Amelia, com os dedos frouxos no teclado, o busto deitado para traz, rolando os olhos ternos, em movimentos dôces de cabeça, dizia toda voluptuosa, syllabando o hespanhol:


Si á tua ventana llega
Una paloma,
Trata-la com cariño,
Que es mi persona.


E como a achava graciosa, creoula, quando ella gorgeava: [188]


Ay chiquita que si,
Ay chiquita que no-o-o-o!


Mas as velhas reclamavam-o para continuar a manilha, e elle ia sentar-se, cantarolando as ultimas notas, com o cigarro ao canto da boca, os olhos humidos de felicidade.

Ás sextas-feiras era a grande partida. A snr.a D. Maria da Assumpção apparecia sempre com o seu bello vestido de sêda preta: e como era rica e tinha parentela fidalga davam-lhe com deferencia o melhor logar ao pé da mesa—que ella ia occupar, meneando pretenciosamente os quadris, com ruge-ruges de sêda. Antes do chá a S. Joanneira levava-a sempre ao seu quarto, onde guardava para ella uma garrafa de geropiga velha: e alli as duas amigas tagarellavam muito tempo, sentadas em cadeirinhas baixas. Depois Arthur Couceiro, cada dia mais chupado e mais tisico, cantava o fado novo que compuzera, chamado o Fado da Confissão; eram quadras feitas para regalar aquella piedosa reunião de saias e de batinas:


Na capellinha do amor,
No fundo da sacristia,
Ao senhor padre Cupido
Confessei-me n'outro dia...


Vinha depois a confissão de peccadinhos dôces, um acto de contrição de amor, uma penitencia terna:


Seis beijinhos de manhã,
De tarde um abraço só...
E p'ra acalmar dôces chammas
Jejuar a pão de ló.
[189]

Aquella composição galante e devota fôra muito apreciada na sociedade ecclesiastica de Leiria. O senhor chantre pedira uma cópia, e perguntára, referindo-se ao poeta:

—Quem é o habil Anacreonte?

E informado que era o escrevente da administração, fallou d'elle com tanto apreço á esposa do senhor governador civil, que Arthur obteve a gratificação de oito mil reis, que havia annos implorava.

Áquellas reuniões nunca faltava o Libaninho. A sua ultima pilheria era furtar beijos á snr.a D. Maria da Assumpção; a velha escandalisava-se muito alto, e abanando-se com furor atirava-lhe de revez um olhar guloso. Depois o Libaninho desapparecia um momento, e entrava com uma saia d'Amelia vestida, uma touca da S. Joanneira, fingindo uma chamma lubrica por João Eduardo—que, entre as risadas agudas das velhas, recuava, muito escarlate. Brito e Natario vinham ás vezes: formava-se então um grande quino. Amaro e Amelia ficavam sempre juntos; e toda a noite, com os joelhos collados, ambos vermelhos, permaneciam vagamente entorpecidos no mesmo desejo intenso.

Amaro sahia sempre de casa da S. Joanneira mais apaixonado por Amelia. Ia pela rua devagar, ruminando com gozo a sensação deliciosa que lhe dava aquelle amor—uns certos olhares d'ella, o arfar desejoso do seu peito, os contactos lascivos dos joelhos e das mãos. Em casa despia-se depressa, porque gostava de pensar n'ella, ás escuras, atabafado [190] nos cobertores; e ia percorrendo em imaginação, uma a uma, as provas successivas que ella lhe dera do seu amor, como quem vai aspirando uma e outra flôr, até que ficava como embriagado d'orgulho: era a rapariga mais bonita da cidade! e escolhera-o a elle, a elle padre, o eterno excluido dos sonhos femininos, o sêr melancollico e neutro que ronda como um sêr suspeito á beira do sentimento! Á sua paixão misturava-se então um reconhecimento por ella; e com as palpebras cerradas murmurava:

—Tão boa, coitadinha, tão boa!


Mas na sua paixão havia ás vezes grandes impaciencias, Quanto tinha estado, durante tres horas da noite, recebendo o seu olhar, absorvendo a voluptuosidade que se exhalava de todos os seus movimentos,—ficava tão carregado de desejos que necessitava conter-se «para não fazer um disparate alli mesmo na sala, ao pé da mãi». Mas depois, em casa, só, torcia os braços de desespero: queria-a alli de repente, offerecendo-se ao seu desejo: fazia então combinações—escrever-lhe-hia, arranjariam uma casita discreta para se amarem, planeariam um passeio a alguma quinta! Mas todos aquelles meios lhe pareciam incompletos e perigosos, ao recordar o olho finorio da irmã do conego, as Gansosos tão mexeriqueiras! E diante d'aquellas difficuldades que se erguiam como as muralhas successivas d'uma cidadella, [191] voltavam as antigas lamentações: não ser livre! não poder entrar claramente n'aquella casa, pedil-a á mãi, possuil-a sem peccado, commodamente! Porque o tinham feito padre? Fôra «a velha pêga» da marqueza de Alegros! Elle não abdicára voluntariamente a virilidade do seu peito! Tinham-o impellido para o sacerdocio como um boi para o curral!

Então, passeando excitado pelo quarto, levava as suas accusações mais longe, contra o Celibato e a Igreja: porque prohibia ella aos seus sacerdotes, homens vivendo entre homens, a satisfação mais natural, que até têm os animaes? Quem imagina que desde que um velho bispo diz—serás casto—a um homem novo e forte, o seu sangue vai subitamente esfriar-se? e que uma palavra latina—accedo—dita a tremer pelo seminarista assustado, será o bastante para conter para sempre a rebellião formidavel do corpo? E quem inventou isso? Um concilio de bispos decrepitos, vindos do fundo dos seus claustros, da paz das suas escólas, mirrados como pergaminhos, inuteis como eunucos! Que sabiam elles da Natureza e das suas tentações? Que viessem alli duas, tres horas para o pé da Ameliasinha, e veriam, sob a sua capa de santidade, começar a revoltar-se-lhe o desejo! Tudo se illude e se evita, menos o amor! E se elle é fatal, porque impediram então que o padre o sinta, o realise com pureza e com dignidade? É melhor talvez que o vá procurar pelas viellas obscenas!—Porque a carne é fraca!

A carne! Punha-se então a pensar nos tres inimigos [192] da alma—Mundo, Diabo e Carne. E appareciam á sua imaginação em tres figuras vivas: uma mulher muito formosa; uma figura negra d'olho de braza e pé de cabra; e o mundo, coisa vaga e maravilhosa (riquezas, cavallos, palacetes)—de que lhe parecia uma personificação sufficiente o senhor conde de Ribamar! Mas que mal tinham elles feito á sua alma? O diabo nunca o vira; a mulher formosa amava-o e era a unica consolação da sua existencia; e do mundo, do senhor conde, só recebera protecção, benevolencia, tocantes apertos de mão... E como poderia elle evitar as influencias da Carne e do Mundo? A não ser que fugisse, como os santos d'outr'ora, para os areaes do deserto e para a companhia das feras! Mas não lhe diziam os seus mestres no seminario que elle pertencia a uma Igreja militante? O ascetismo era culpado, sendo a deserção d'um serviço santo.—Não comprehendia, não comprehendia!

Procurava então justificar o seu amor com exemplos dos livros divinos. A Biblia está cheia de nupcias! Rainhas amorosas adiantam-se nos seus vestidos recamados de pedras; o noivo vem-lhe ao encontro, com a cabeça coberta de faxas de linho puro, arrastando pelas pontas um cordeiro branco; os levitas batem em discos de prata, gritam o nome de Deus; abrem-se as portas de ferro da cidade para deixar passar a caravana que leva os bem esposados; e as arcas de sandalo onde vão os thesouros do dote rangem, amarradas com cordas de purpura, sobre o dorso dos camêlos! Os martyres no circo casam-se n'um [193] beijo, sob o bafo dos leões, ás acclamações da plebe! Jesus mesmo não vivêra sempre na sua santidade inhumana; era frio e abstracto nas ruas de Jerusalem, nos mercados do Bairro de David; mas lá tinha o seu logar de ternura e de abandono em Bethania, sob os sycomoros do Jardim de Lazaro; alli, emquanto os magros nazarenos seus amigos bebem o leite e conspiram á parte, elle olha defronte os tectos dourados do templo, os soldados romanos que jogam o disco ao pé da Porta de Ouro, os pares amorosos que passam sob os arvoredos de Gethesemani—e pousa a mão sobre os cabellos louros de Martha, que ama e fia a seus pés!

O seu amor era pois uma infracção canonica, não um peccado da alma: podia desagradar ao senhor chantre, não a Deus: seria legitimo n'um sacerdocio de regra mais humana. Lembrava-se de se fazer protestante: mas onde, como? Parecia-lhe mais extraordinariamente impossivel que transportar a velha Sé para cima do monte do Castello.

Encolhia então os hombros, escarnecendo toda aquella vaga argumentação interior. «Philosophia e palhada»! Estava doido pela rapariga,—era o positivo. Queria-lhe o amor, queria-lhe os beijos, queria-lhe a alma... E o senhor bispo se não fosse velho faria o mesmo, e o Papa faria o mesmo!

Eram ás vezes tres horas da manhã, e ainda passeava no quarto, fallando só. [194]


Quantas vezes João Eduardo, passando alta noite pela rua das Sousas, tinha visto na janella do parocho uma luz amortecida! Porque ultimamente João Eduardo, como todos que têm um desgosto amoroso, tomára o habito triste de andar até tarde pelas ruas.

O escrevente, logo desde os primeiros tempos, percebêra a sympathia de Amelia pelo parocho. Mas conhecendo a sua educação e os habitos devotos da casa, attribuia aquellas attenções quasi humildes com Amaro ao respeito beato pela sua batina de padre, pelos seus privilegios de confessor.

Instinctivamente porém começou a detestar Amaro. Sempre fôra inimigo de padres! achava-os um «perigo para a civilisação e para a liberdade»; suppunha-os intrigantes, com habitos de luxuria, e conspirando sempre para restabelecer «as trevas da meia idade»; odiava a confissão que julgava uma arma terrivel contra a paz do lar; e tinha uma religião vaga—hostil ao culto, ás rezas, aos jejuns, cheia de admiração pelo Jesus poetico, revolucionario, amigo dos pobres, e «pelo sublime espirito de Deus que enche todo o Universo»! Só desde que amava Amelia é que ouvia missa, para agradar á S. Joanneira.

E desejaria sobretudo apressar o casamento para tirar Amelia d'aquella sociedade de beatas e padres, [195] receando ter mais tarde uma mulher que tremesse do inferno, passasse horas a rezar estações na Sé, e se confessasse aos padres «que arrancam ás confessadas os segredos d'alcova»!

Quando Amaro voltára a frequentar a rua da Misericordia, ficou contrariado. «Cá temos outra vez o marmanjo»! pensou. Mas que desgosto, quando reparou que Amelia tratava agora o parocho com uma familiaridade mais terna, que a presença d'elle lhe dava visivelmente uma animação singular, «e que havia uma especie de namoro»! Como ella se fazia vermelha, mal elle entrava! Como o escutava, com uma admiração babosa! Como arranjava sempre a ficar ao pé d'elle nas partidas de quino!

Uma manhã, mais inquieto, veio á rua da Misericordia,—e emquanto a S. Joanneira tagarellava na cozinha, disse bruscamente a Amelia:

—Menina Amelia, sabe? Está-me a dar um grande desgosto com essas maneiras com que trata o senhor padre Amaro.

Ella ergueu os olhos muito espantados:

—Que maneiras?! Ora essa! então como quer que o trate? É um amigo da casa, esteve aqui d'hospede...

—Pois sim, pois sim...

—Ah! mas socegue. Se isso o quezila, verá. Não me torno a chegar ao pé do homem.

João Eduardo, tranquillisado, raciocinou—que «não havia nada». Aquelles modos eram excessos de beaterio. Enthusiasmo pela padraria! [196]

Amelia decidiu então disfarçar o que lhe ia no coração: sempre considerára o escrevente um pouco tapado—e se elle percebêra, que fariam as Gansosos tão finas, e a irmã do conego que era cortida em malicia! Por isso mal sentia Amaro na escada, d'ahi por diante, tomava uma attitude distrahida, muito artificial: mas, ai! apenas elle lhe fallava com a sua voz suave ou voltava para ella aquelles olhos negros que lhe faziam correr estremeções nos nervos,—como uma ligeira camada de neve que se derrete a um sol muito forte a sua attitude fria desapparecia, e toda a sua pessoa era uma expressão continua de paixão. Ás vezes, absorvida no seu enlevo, esquecia que João Eduardo estava alli; e ficava toda surprehendida quando ouvia a um canto da sala a sua voz melancolica.

Ella sentia de resto que as amigas da mãi envolviam a sua «inclinação» pelo parocho n'uma approvação muda e affavel. Elle era, como dizia o conego, o menino bonito: e das maneirinhas e dos olhares das velhas exhalava-se uma admiração por elle que fazia ao desenvolvimento da paixão d'Amelia uma atmosphera favoravel. D. Maria da Assumpção dizia-lhe ás vezes ao ouvido:

—Olha para elle! É d'inspirar fervor. É a honra do clero. Não ha outro!...

E todas ellas achavam João Eduardo «um presta-p'ra-nada»! Amelia então já não disfarçava a sua indifferença por elle: as chinelas que lhe andava a bordar tinham ha muito desapparecido do cesto [197] do trabalho, e já não vinha á janella vel-o passar para o cartorio.

A certeza agora tinha-se estabelecido na alma de João Eduardo—na alma, que, como elle dizia, lhe andava mais negra que a noite.

—A rapariga gosta do padre, tinha elle concluido. E á dôr da sua felicidade destruida juntava-se a afflicção pela honra d'ella ameaçada.

Uma tarde, tendo-a visto sahir da Sé, esperou-a adiante da botica, e muito decidido:

—Eu quero-lhe fallar, menina Amelia... Isto não póde continuar assim... Eu não posso... A menina traz namoro com o parocho!

Ella mordeu o beiço, toda branca:

—O senhor está a insultar-me!—E queria seguir, indignada.

Elle reteve-a pela manga do casabeque:

—Ouça, menina Amelia. Eu não a quero insultar, mas é que não sabe... Tenho andado, que até se me parte o coração!—E perdeu a voz, de commovido.

—Não tem razão... Não tem razão... balbuciava ella.

—Jure-me então que não ha nada com o padre!

—Pela minha salvação!... Não ha nada!... Mas tambem lhe digo, se torna a fallar em tal, ou a insultar-me, conto tudo á mamã, e o senhor escusa de nos voltar a casa.

—Oh, menina Amelia... [198]

—Não podemos continuar aqui a fallar... Está alli já a D. Michaela a cocar...

Era uma velha, que levantára a cortina de cassa n'uma janella baixa, e espreitava com olhinhos reluzentes e gulosos, a face toda resequida encostada sôfregamente á vidraça. Separaram-se então—e a velha desconsolada deixou cahir a cortina.

Amelia n'essa noite—emquanto as senhoras discutiam com algazarra os missionarios que então prégavam na Barrosa—disse baixo a Amaro, picando vivamente a costura:

—Precisamos ter cautela... Não olhe tanto para mim nem esteja tão chegado... Já houve quem reparasse.

Amaro recuou logo a cadeira para junto de D. Maria da Assumpção; e, apesar da recommendação d'Amelia, os seus olhos não se despregavam d'ella, n'uma interrogação muda e anciosa, já assustado que as desconfianças da mãi ou a malicia das velhas «andassem armando escandalo». Depois do chá, no rumor das cadeiras que se accommodavam ao quino, perguntou-lhe rapidamente:

—Quem reparou?

—Ninguem. Eu é que tenho medo. É preciso disfarçar.

Desde então cessaram as olhadellas dôces, os logares chegadinhos á mesa, os segredos; e sentiam um gozo picante em affectar maneiras frias, tendo a certeza vaidosa da paixão que os inflammava. Era para Amelia delicioso—emquanto o padre Amaro [199] afastado tagarellava com as senhoras—adorar a sua presença, a sua voz, as suas graças, com os olhos castamente applicados ás chinelas do João Eduardo que muito astutamente recomeçára a bordar.

Todavia o escrevente vivia ainda inquieto: amargurava-o encontrar o parocho installado alli todas as noites, com a face próspera, a perna traçada, gozando a veneração das velhas. «A Ameliasinha, sim, agora portava-se bem, e era-lhe fiel, era-lhe fiel...»: mas elle sabia que o parocho a desejava, a «cocava»; e apesar do juramento d'ella pela sua salvação, da certeza que não havia nada—temia que ella fosse lentamente penetrada por aquella admiração caturra das velhas, para quem o senhor parocho era um anjo: só se contentaria em arrancar Amelia (já empregado no governo civil) áquella casa beata: mas essa felicidade tardava a chegar—e sahia todas as noites da rua da Misericordia mais apaixonado, com a vida estragada de ciumes, odiando os padres, sem coragem para desistir. Era então que se punha a andar pelas ruas até tarde; ás vezes voltava ainda vêr as janellas fechadas da casa d'ella; ia depois á alameda ao pé do rio, mas o frio ramalhar das arvores sobre a agua negra entristecia-o mais; vinha então ao bilhar, olhava um momento os parceiros carambolando, o marcador, muito esguedelhado, que bocejava encostado ao reste. Um cheiro de mau petroleo suffocava. Sahia; e dirigia-se, devagar, á redacção da Voz do Districto.



X



O redactor da Voz do Districto, o Agostinho Pinheiro, era ainda seu parente. Chamavam-lhe geralmente o Rachitico, por ter uma forte corcunda no hombro e uma figurinha enfezada d'hectico. Era extremamente sujo; e a sua carita de femea, amarellada, d'olhos depravados, revelava vícios antigos, muito torpes. Tinha feito (dizia-se em Leiria) toda a sorte de maroteira. E ouvira tantas vezes exclamar: «Se vossê não fosse um rachitico, quebrava-lhe os ossos»—que, vendo na sua corcunda uma protecção sufficiente, ganhára um descaro sereno. Era de Lisboa, o que o tornava mais suspeito aos burguezes sérios: attribuia-se a sua voz rouca e acre «a fartar-lhe as campainhas»: e os seus dedos queimados [202] terminavam em unhas muito compridas—porque tocava guitarra.

A Voz do Districto fôra creada por alguns homens, a quem chamavam em Leiria o grupo da Maia, particularmente hostis ao senhor governador civil. O doutor Godinho, que era o chefe e o candidato do grupo, tinha encontrado em Agostinho, como elle dizia, o homem que se precisa: o que o grupo precisava era um patife com orthographia, sem escrupulos, que redigisse em linguagem sonora os insultos, as calumnias, as allusões que elles traziam informemente á redacção, em apontamentos. Agostinho era um estylista de vilezas. Davam-lhe quinze mil reis por mez e casa de habitação na redacção—um terceiro andar desmantelado n'uma viella ao pé da Praça.

Agostinho fazia o artigo de fundo, as locaes, a Correspondencia de Lisboa; e o bacharel Prudencio escrevia o folhetim litterario sob o titulo de Palestras Leirienses: era um moço muito honrado, a quem o snr. Agostinho era repulsivo; mas tinha uma tal gula de publicidade, que se sujeitava a sentar-se todos os sabbados fraternalmente á mesma banca, a revêr as provas da sua prosa—prosa tão florida de imagens, que se murmurava na cidade, ao lêl-a: «Que opulencia! Que opulencia, Jesus!»

João Eduardo reconhecia tambem que o Agostinho era «um trastesito»; não se atreveria a passear com elle de dia nas ruas; mas gostava de ir para a redacção, alta noite, fumar cigarros, ouvir o Agostinho [203] fallar de Lisboa, do tempo que lá vivêra empregado na redacção de dois jornaes, no theatro da rua dos Condes, n'uma casa de penhores, e em outras instituições. Estas visitas eram segredos!

Áquella hora da noite a sala da typographia no primeiro andar estava fechada (o jornal tirava-se aos sabbados); e João Eduardo encontrava em cima Agostinho abancado, com uma velha jaqueta de pelles cujos colchetes de prata tinham sido empenhados—ruminando, curvado, á luz d'um medonho candieiro de petroleo, sobre longas tiras de papel: estava fazendo o jornal, e a sala escura em redor tinha o aspecto d'uma caverna. João Eduardo estirava-se no canapé de palhinha, ou indo buscar a um canto a velha guitarra de Agostinho repenicava o fado corrido. O jornalista no emtanto, com a testa apoiada a um punho, produzia laboriosamente: «a coisa não lhe sahia catita»: e como nem o fadinho o inspirava, erguia-se, ia a um armario engulir um copinho de genebra que gargarejava nas fauces estanhadas, espreguiçava-se escancaradamente, accendia o cigarro, e aproveitando o acompanhamento cantarolava roucamente:


Ora foi o fado tyranno
Que me levou á má vida,


E a guitarra: dir-lin, din, din, dir-lin, din, don.


Na vida do negro fado Ai!
Que me traz assim perdida...
[204]

Isto trazia-lhe sempre as recordações de Lisboa, porque terminava por dizer, com odio:

—Que possilga de terra esta!

Não se podia consolar de viver em Leiria, de não poder beber o seu quartilho na taberna do tio João, á Mouraria, com a Anna alfaiata ou com o Bigodinho—ouvindo o João das Biscas de cigarro ao canto da boca, o olho choroso meio fechado pelo fumo do tabaco, fazer chorar a guitarra dizendo a morte da Sophia!

Depois, para se reconfortar com a certeza do seu talento, lia a João Eduardo os seus artigos, muito alto. E João interessava-se—porque essas «producções», sendo ultimamente sempre «desandas ao clero», correspondiam ás suas preoccupações.

Era por esse tempo que, em virtude da famosa questão da Misericordia, o doutor Godinho se tornára muito hostil ao cabido e «á padraria». Sempre detestára padres; tinha uma má doença de figado, e como a Igreja o fazia pensar no cemiterio, odiava a sotaina, porque lhe parecia uma ameaça da mortalha. E Agostinho, que tinha um profundo deposito de fel a derramar, instigado pelo doutor Godinho, exagerava as suas verrínas: mas, com o seu fraco litterario, cobria o vituperio de tão espessas camadas de rhetorica que, como dizia o conego Dias, «aquillo era ladrar, não era morder»!

Uma d'essas noites João Eduardo encontrou Agostinho todo enthusiasmado com um artigo que compuzera [205] de tarde, e que lhe «sahira cheio de piadas á Victor Hugo»!

—Tu verás! Coisa de sensação!

Como sempre, era uma declamação contra o clero e o elogio do doutor Godinho. Depois de celebrar as virtudes do doutor, «esse tão respeitavel chefe de familia» e a sua eloquencia no tribunal que «arrancára tantos desventurados ao cutelo da lei», o artigo, tomando um tom roncante, apostrophava Christo:—«Quem te diria a ti (bradava Agostinho), ó immortal Crucificado! quem te diria, quando no alto do Golgotha expiravas exangue, quem te diria que um dia, em teu nome, á tua sombra, seria expulso d'um estabelecimento de caridade o doutor Godinho,—a alma mais pura, o talento mais robusto...»—E as virtudes do doutor Godinho voltavam, em passo de procissão, solemnes e sublimadas, arrastando caudas de adjectivos nobres.

Depois, deixando por um momento de contemplar o doutor Godinho, Agostinho dirigia-se directamente a Roma:—«É no seculo XIX que vindes atirar á face de Leiria liberal os dictames do Syllabus! Pois bem. Quereis a guerra? Tel-a-heis!»

—Hein, João?! dizia. Está forte! Está philosophico!

E retomando a leitura:—«Quereis a guerra? Tel-a-heis! Levantaremos bem alto o nosso estandarte, que não é o da demagogia, comprehendei-o bem! e arvorando-o, com braço firme, no mais alto baluarte das liberdades publicas, gritaremos á face [206] de Leiria, á face da Europa: Filhos do seculo XIX! ás armas! Ás armas pelo progresso!»

—Hein? Está de os enterrar!

João Eduardo, que ficára um momento calado, disse então, levantando as suas expressões em harmonia com a prosa sonora de Agostinho:

—O clero quer-nos arrastar aos funestos tempos do obscurantismo!

Uma phrase tão litteraria surprehendeu o jornalista: fitou João Eduardo, disse:

—Porque não escreves tu alguma coisa, tambem?

O escrevente respondeu, sorrindo:

—E eu, Agostinho, eu é que te escrevia uma desanda aos padres... E eu tocava-lhes os pôdres. Eu é que os conheço!...

Agostinho instou logo com elle para que escrevesse a desanda.

—Vem a calhar, menino!

O doutor Godinho ainda na vespera lhe recommendára:—«Em tudo que cheirar a padre, para baixo! Havendo escandalo, conta-se! não havendo, inventa-se!»

E Agostinho acrescentou, com benevolencia:

—E não te dê cuidado o estylo, que eu cá o florearei!

—Veremos, veremos, murmurou João Eduardo.

Mas d'ahi por diante Agostinho perguntava-lhe sempre:

—E o artigo, homem? Traze-me o artigo. [207]

Tinha avidez d'elle, porque sabendo como João Eduardo vivia na intimidade da «panellinha canonica da S. Joanneira» suppunha-o no segredo de infamias especiaes.

João Eduardo, porém, hesitava. Se se viesse a saber...?

—Qual! affirmava Agostinho. A coisa publica-se como minha. É artigo da redacção. Quem diabo vai saber?

Succedeu na noite seguinte que João Eduardo surprehendeu o padre Amaro resvalando sorrateiramente um segredinho a Amelia—e ao outro dia appareceu de tarde na redacção com a pallidez d'uma noite velada, trazendo cinco largas tiras de papel, miudamente escriptas n'uma letra de cartorio. Era o artigo, e intitulava-se: Os modernos phariseus!—Depois de algumas considerações, cheias de flôres, sobre Jesus e o Golgotha, o artigo de João Eduardo era, sob allusões tão diaphanas como teias d'aranha, um vingativo ataque ao conego Dias, ao padre Brito, ao padre Amaro e ao padre Natario!... Todos tinham a sua dóse, como exclamou cheio de jubilo o Agostinho.

—E quando sae? perguntou João Eduardo.

O Agostinho esfregou as mãos, reflectiu, disse:

—É que está forte, diabo! É como se tivesse os nomes proprios! Mas descansa, eu arranjarei.

Foi cautelosamente mostrar o artigo ao doutor Godinho—que o achou «uma catilinaria atroz». Entre o doutor Godinho e a Igreja havia apenas um arrufo: [208] elle reconhecia em geral a necessidade da religião entre as massas; sua esposa, a bella D. Candida, era além d'isso d'inclinações devotas, e começava a dizer que aquella guerra do jornal ao clero lhe causava grandes escrupulos: e o doutor Godinho não queria provocar odios desnecessarios entre os padres, prevendo que o seu amor da paz domestica, os interesses da ordem e o seu dever de christão o forçariam bem cedo a uma reconciliação,—«muito contra as suas opiniões, mas...»

Disse por isso a Agostinho sêccamente:

—Isto não póde ir como artigo da redacção, deve apparecer como communicado. Cumpra estas ordens.

E Agostinho declarou ao escrevente—que a coisa publicava-se como um Communicado, assignado: Um liberal. Sómente João Eduardo terminava o artigo exclamando:—Álerta, mães de familia! O Agostinho suggeriu que este final álerta podia dar logar á réplica jocosa—Álerta está! E depois de largas combinações decidiram-se por este fecho:—Cuidado, sotainas negras!

No domingo seguinte appareceu o communicado assignado: Um liberal.


Durante toda essa manhã de domingo, o padre Amaro, á volta da Sé, estivera occupado em compôr laboriosamente uma carta a Amelia. Impaciente, como elle dizia, «com aquellas relações que não andavam [209] nem desandavam, que era olhar e apertos de mão e d'alli não passava»—tinha-lhe dado uma noite, á mesa do quino, um bilhetinho onde escrevera com boa letra, a tinta azul:—Desejo encontral-a só, porque tenho muito que lhe fallar. Onde póde ser sem inconveniente? Deus proteja o nosso affecto. Ella não respondera:—E Amaro despeitado, descontente tambem por não a ter visto n'essa manhã á missa das nove, resolveu «pôr tudo a claro n'uma carta de sentimento»: e preparava os periodos sentidos que lhe deviam ir revolver o coração, passeando pela casa, juncando o chão de pontas de cigarro, a cada momento curvado sobre o Diccionario de synonymos.


«Ameliasinha do meu coração: (escrevia elle) Não posso atinar com as razões maiores que a não deixaram responder ao bilhetinho que lhe dei em casa da senhora sua mamã; pois que era pela muita necessidade que tinha de lhe fallar a sós, e as minhas intenções eram puras, e na innocencia d'esta alma que tanto lhe quer e que não medita o peccado.

«Deve ter comprehendido que lhe voto um fervente affecto, e pela sua parte me parece, (se não me enganam esses olhos que são os pharoes da minha vida, e como a estrella do navegante) que tambem tu, minha Ameliasinha, tens inclinação por quem tanto te adora; pois que até outro dia, quando o Libano quinou com os seis primeiros numeros, e que todos fizeram tanta algazarra, tu apertaste-me [210] a mão por baixo da mesa com tanta ternura, que até me pareceu que o céo se abria e que eu sentia os anjos entoarem o Hossana! Porque não respondeste pois? Se pensas que o nosso affecto póde ser desagradavel aos nossos anjos da guarda, então te direi que maior peccado commettes trazendo-me n'esta incerteza e tortura, que até na celebração da missa estou sempre com o pensar em ti, e nem me deixa elevar a minha alma no divino sacrificio. Se eu visse que este mutuo affecto era obra do tentador, eu mesmo te diria: oh minha bem amada filha, façamos o sacrificio a Jesus, para lhe pagar parte do sangue que derramou por nós! Mas eu tenho interrogado a minha alma e vejo n'ella a brancura dos lirios. E o teu amor tambem é puro como a tua alma, que um dia se unirá á minha, entre os córos celestes, na bemaventurança. Se tu soubesses como eu te quero, querida Ameliasinha, que até às vezes me parece que te podia comer aos bocadinhos! Responde pois, e dize se não te parece que poderia arranjar-se a vermo-nos no Morenal, pela tarde. Pois eu anceio por te exprimir todo o fogo que me abraza, bem como fallar-te de coisas importantes, e sentir na minha mão a tua que eu desejo que me guie pelo caminho do amor, até aos extases d'uma felicidade celestial. Adeus, anjo feiticeiro, recebe a offerta do coração do teu amante e pai espiritual

«Amaro».
[211]

Depois de jantar copiou esta carta a tinta azul, e com ella bem dobrada no bolso da batina foi á rua da Misericordia. Logo da escada sentiu em cima a voz aguda de Natario, discutindo.

—Quem está por cá?—perguntou á Ruça, que alumiava, encolhida no seu chale.

—As senhoras todas. Está o senhor padre Brito.

—Ólá! Bella sociedade!

Galgou os degraus, e á porta da sala, com o seu capote ainda pelos hombros, tirando alto o chapéo:

—Muito boas noites a todos, começando pelas senhoras.

Natario, immediatamente, plantou-se diante d'elle e exclamou:

—Então que lhe parece?

—O quê? perguntou Amaro. E reparando no silencio, nos olhos cravados n'elle:—O que é? Alguma coisa de novo?

—Pois não leu, senhor parocho!? exclamaram. Não leu o Districto!?

Era papel em que elle não puzera os olhos, disse. Então as senhoras indignadas romperam:

—Ai! é um desafôro!

—Ai! é um escandalo, senhor parocho!

Natario, com as mãos enterradas nas algibeiras, contemplava o parocho com um sorrisinho sarcastico, soltando d'entre os dentes:

—Não leu! Não leu! Então que fez?

Amaro reparava, já aterrado, na pallidez d'Amelia, [212] nos seus olhos muito vermelhos. E emfim o conego erguendo-se pesadamente:

—Amigo parocho, dão-nos uma desanda!...

—Ora essa! exclamou Amaro.

—Têsa!

O senhor conego, que trouxera o jornal, devia ler alto—lembraram.

—Leia, Dias, leia, acudiu Natario. Leia, para saborearmos!

A S. Joanneira deu mais luz ao candieiro: o conego Dias accommodou-se á mesa, desdobrou o jornal, pôz os oculos cuidadosamente, e, com o lenço do rapé nos joelhos, começou a leitura do Communicado na sua voz pachorrenta.

O principio não interessava: eram periodos enternecidos em que o liberal exprobrava aos phariseus a crucifixão de Jesus:—«Por que o matasteis? (exclamava elle). Respondei!» E os phariseus respondiam:—«Matamol-o porque elle era a liberdade, a emancipação, a aurora de uma nova era», etc. O liberal então esboçava, a largos traços, a noite do Calvario:—«Eil-o pendente da cruz, traspassado de lanças, a sua tunica jogada aos dados, a plebe infrene», etc. E, voltando a dirigir-se aos phariseus infelizes, o liberal gritava-lhes com ironia:—«Contemplai a vossa bella obra!» Depois, por uma gradação habil, o liberal descia de Jerusalem a Leiria:—«Mas pensam os leitores que os phariseus morreram? Como se enganam! Vivem! conhecemol-os [213] nós; Leiria está cheia d'elles, e vamos apresental-os aos leitores...»

—Agora é que ellas começam, disse o conego olhando para todos em redor, por cima dos oculos.

Com effeito «ellas começavam»; era, n'uma fórma brutal, uma galeria de photographias ecclesiasticas: a primeira era a do padre Brito:—«Vêde-o, (exclamava o liberal) grosso como um touro, montado na sua egua castanha...»

—Até a côr da egua! murmurou com uma indignação piedosa a snr.a D. Maria da Assumpção.

«...Estupido como um melão, sem sequer saber latim...»

O padre Amaro, assombrado, fazia: Oh! oh! E o padre Brito, escarlate, mexia-se na cadeira, esfregando devagar os joelhos.

«...Especie de caceteiro», continuava o conego que lia aquellas phrases crueis com uma tranquillidade dôce, «desabrido de maneiras, mas que não desgosta de se dar á ternura, e, segundo dizem os bem informados, escolheu para Dulcinêa a propria e legitima esposa do seu regedor...»

O padre Brito não se dominou:

—Eu racho-o de meio a meio! exclamou erguendo-se e recahindo pesadamente na cadeira.

—Escute, homem! disse Natario.

—Qual escute! O que é, é que o racho!

Mas se elle não sabia quem era o liberal!

—Qual liberal! Quem eu racho é o doutor Godinho. [214] O doutor Godinho é que é o dono do jornal. O doutor Godinho é que eu racho!

A sua voz tinha tons roucos: e atirava furioso grandes palmadas á côxa.

Lembraram-lhe o dever christão de perdoar as injurias. A S. Joanneira com unção citou a bofetada que Jesus Christo supportou. Devia imitar Christo.

—Qual Christo, qual cabaça! gritou Brito apopletico.

Aquella impiedade creou um terror.

—Credo, senhor padre Brito, credo! exclamou a irmã do conego recuando a cadeira.

O Libaninho, com as mãos na cabeça, vergado sob o desastre, murmurava:

—Nossa Senhora das Dôres, que até póde cahir um raio!

E, vendo mesmo Amelia indignada, o padre Amaro disse gravemente:

—Brito, realmente vossê excedeu-se.

—Pois se estão a puxar por mim!...

—Homem, ninguem puxou por vossê, disse severamente Amaro. E com um tom pedagogo:—Apenas lhe lembrarei, como devo, que em taes casos, quando se diz a blasphemia má, o reverendo padre Scomelli recommenda confissão geral e dois dias de recolhimento a pão e agua.

O padre Brito resmungava.

—Bem, bem, resumiu Natario. O Brito commetteu uma grande falta, mas saberá pedir perdão a Deus, e a misericordia de Deus é infinita! [215]

Houve uma pausa commovida em que se ouviu a snr.a D. Maria da Assumpção murmurar «que ficára sem pinga de sangue»; e o conego, que durante a catastrophe pousára os oculos sobre a mesa, retomou-os, e continuou serenamente a leitura:

«...Conheceis um outro com cara de furão?...»

Olhares de lado fixaram o padre Natario.

«...Desconfiai d'elle: se puder trahir-vos, não hesita; se puder prejudicar-vos, folga: as suas intrigas trazem o cabido n'uma confusão porque é a vibora mais damninha da diocese, mas com tudo isso muito dado á jardinagem, porque cultiva com cuidado duas rosas do seu canteiro

—Homem, essa! exclamou Amaro.

—É para que vossê veja, disse Natario erguendo-se lívido. Que lhe parece? Vossê sabe que eu, quando fallo das minhas sobrinhas, costumo dizer as duas rosas do meu canteiro. É um gracejo. Pois senhores, até vem com isto!—E com um sorriso macilento, de fel:—mas ámanhã hei de saber quem é! Ólaré! Eu hei de saber quem é!

—Deite ao desprezo, senhor padre Natario, deite ao desprezo, disse a S. Joanneira pacificadora.

—Obrigado, minha senhora, acudiu Natario curvando-se com uma ironia rancorosa—obrigado! Cá recebi!

Mas a voz imperturbavel do conego retomára a leitura. Agora era o retrato d'elle, traçado com odio:

«...Conego bojudo e glutão, antigo caceteiro do senhor D. Miguel, que foi expulso da freguezia [216] de Ourem, outr'ora mestre de Moral n'um seminario e hoje mestre de immoralidade em Leiria...»

—Isso é infame! exclamou Amaro exaltado.

O conego pousou o jornal, e com a voz pachorrenta:

—Vossê pensa que me dá isto cuidado? disse elle. Boa! Tenho que comer e que beber, graças a Deus! Deixar rosnar quem rosna!

—Não, mano, interrompeu a irmã, mas a gente sempre tem o seu bocadinho de brio!

—Ora, mana! replicou o conego Dias com um azedume de raiva concentrada. Ora, mana! ninguem lhe pede a sua opinião!

—Nem preciso que m'a peçam! gritou ella impertigando-se. Sei-a dar muito bem quando quero e como quero. Se não tem vergonha, tenho-a eu!

—Então! então!... disseram em roda, acalmando-a.

—Menos lingua, mana, menos lingua! disse o conego fechando os seus oculos. Olhe não lhe cáiam os dentes postiços!

—Seu malcriado!

Ia fallar, mas suffocou-se; e começou subitamente a soltar ais.

Recearam logo que lhe désse o flato: a S. Joanneira e a D. Joaquina Gansoso levaram-na para o quarto, em baixo, amparando-a, com palavras brandas:

—Estás doida! Por quem és, filha! Olha que escandalo! Nossa Senhora te valha! [217]

Amelia mandava buscar agua de flôr de laranja.

—Deixe-a lá, rosnou o conego, deixe-a lá! Aquillo passa-lhe. São calores!

Amelia deu um olhar triste ao padre Amaro, e desceu ao quarto com a snr.a D. Maria da Assumpção e a Gansoso surda, que iam tambem «socegar a D. Josepha, coitadita»! Os padres agora estavam sós; e o conego voltando-se para Amaro:—Ouça vossê, que é a sua vez—disse retomando o jornal.

—E verá que dóse! disse Natario.

O conego escarrou, aproximou mais o candieiro, e declamou:

«...Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, parochos por influencias de condes da capital, vivendo na intimidade das familias de bem onde ha donzellas inexperientes, e aproveitando-se da influencia do seu sagrado ministerio para lançar na alma da innocente a semente de chammas criminosas!»

—Pouca vergonha! murmurou Amaro livido.

«...Dize, sacerdote de Christo, onde queres arrastar a impolluta virgem? Queres arrastal-a aos lodaçaes do vicio? Que vens fazer aqui ao seio d'esta respeitavel familia? Porque rondas em volta da tua prêsa como o milhafre em torno da innocente pomba? Para traz, sacrilego! Murmuras-lhe seductoras phrases, para a desviares do caminho da honra; condemnas á desgraça e á viuvez algum honrado moço que lhe queira offerecer sua mão trabalhadora; [218] e vaes-lhe preparando um horroroso futuro de lagrimas. E tudo para quê? Para saciares os torpes impulsos de tua criminosa lascivia!...»

—Que infame! rosnou com os dentes cerrados o padre Amaro.

«...Mas acautela-te, presbytero perverso!» E a voz do conego tinha tons cavos ao soltar aquellas apostrophes. «Já o archanjo levanta a espada da justiça. E sobre ti, e teus cumplices, já a opinião da illustrada Leiria fita seu olho imparcial. E nós cá estamos, nós, filhos do trabalho, para vos marcar na fronte o estigma da infamia. Tremei, sectarios do Syllabus! Cuidado, sotainas negras!»

—D'escacha! fez o conego suado, dobrando a Voz do Districto.

O padre Amaro tinha os olhos ennevoados de duas lagrimas de raiva: passou devagar o lenço pela testa, soprou, disse com os beiços a tremer:

—Eu, collegas, nem sei o que hei de dizer! Pelo Deus que me ouve, isto é a calumnia das calumnias.

—Uma calumnia infame... rosnaram.

-E a mim o que me parece, continuou Amaro, é que nos dirijamos á auctoridade!

—É o que eu tinha dito, acudiu Natario, é necessario fallar ao secretario geral...

—Um cacete é que é! rugiu o padre Brito. Auctoridade! O que é, é rachal-o! Eu bebia-lhe o sangue!...

O conego, que meditava coçando o queixo, disse então: [219]

—E vossê, Natario, é que deve ir ao secretario geral. Vossê tem lingua, tem logica.

—Se os collegas decidem, disse Natario curvando-se, vou. E hei de lh'as cantar, á auctoridade!

Amaro ficára junto da mesa com a cabeça entre as mãos, aniquilado. E o Libaninho murmurava:

—Ai, filhos, eu não é nada commigo, mas só de ouvir todo esse aranzel, até se me estão a vergar as pernas. Ai, filhos, um desgosto assim...

Mas sentiram a voz da snr.a Joaquina Gansoso subindo a escada; e o conego immediatamente com uma voz prudente:

—Collegas, o melhor, diante das senhoras, é não se fallar mais n'isto. Bem basta o que basta.

D'ahi a momentos, apenas Amelia entrou, Amaro ergueu-se, declarou que estava com uma forte dôr de cabeça, e despediu-se das senhoras.

—E sem tomar chá? acudiu a S. Joanneira.

—Sim, minha senhora, disse elle embrulhando-se no seu capote, não me estou a sentir bem. Boas noites... E vossê, Natario, appareça ámanhã pela Sé á uma hora.

Apertou a mão de Amelia, que se lhe abandonou entre os dedos passiva e molle,—e sahiu com os hombros vergados.

A S. Joanneira notou, desconsolada:

—O senhor parocho ia muito pallido...

O conego levantou-se, e com um tom impaciente e quezilado:

—Se ia pallido, ámanhã estará córado. E agora [220] quero dizer uma coisa: esse aranzel do jornal é a calumnia das calumnias! Eu não sei quem o escreveu, nem para que o escreveu. Mas são tolices e são infamias. É pateta e maroto, quem quer que seja. O que devemos fazer já o sabemos, e como já se tagarellou bastante sobre o caso, a senhora mande vir o chá. E o que lá vai, lá vai, não se falla mais na questão.

As faces em roda continuavam contristadas.—E então o conego acrescentou:

—Ah! e quero dizer outra coisa: como não morreu ninguem, não ha necessidade de estar aqui com cara de pezames. E tu, pequena, senta-te ao instrumento e repenica-me essa Chiquita!


O secretario geral, o snr. Gouvêa Ledesma, antigo jornalista, e, em annos mais expansivos, auctor do livro sentimental Devaneios de um sonhador, estava então dirigindo o districto na ausencia do governador civil.

Era um moço bacharel que passava por ter talento. Representára de galan no theatro academico, em Coimbra, com muito applauso; e tomára a esse tempo o habito de passear á tarde na Sophia, com o ar fatal com que no palco arrepellava os cabellos, ou levava, nos transes d'amor, o lenço aos olhos. Depois em Lisboa arruinára um pequeno patrimonio com o amor de Lolas e de Carmens, ceias no Matta, [221] muita calça no Xafredo e perniciosas convivencias litterarias: aos trinta annos estava pobre, saturado de mercurio e auctor de vinte folhetins romanticos na Civilisação: mas tornára-se tão popular, que era conhecido nos lupanares e nos cafés por um cognome carinhoso—era o Bibi. Julgando então que conhecia a fundo a existencia, deixou crescer as suiças, começou a citar Bastiat, frequentou as camaras e entrou na carreira administrativa; chamava agora á republica que tanto exaltára em Coimbra uma absurda chimera; e Bibi era um pilar das instituições.

Detestava Leiria, onde passava por espirituoso; e dizia ás senhoras, nas soirées do deputado Novaes,—«que estava cansado da vida». Rosnava-se que a esposa do bom Novaes andava doida por elle: e em verdade Bibi escrevêra a um amigo da capital:—«emquanto a conquistas, pouco por ora; tenho apenas no papo a Novaesitos».

Levantava-se tarde; e n'essa manhã, de robe-de-chambre á mesa do almoço, partia os seus ovos quentes, lendo com saudade no jornal a narração apaixonada d'uma pateada em S. Carlos, quando o criado,—um gallego que trouxera de Lisboa—veio dizer que «estava alli um cura».

—Um cura? Que entre para aqui!—E murmurou para sua satisfação pessoal:—O Estado não deve fazer esperar a Igreja.

Ergueu-se, e estendeu as duas mãos ao padre Natario que entrava, muito composto, na sua longa batina de lustrina. [222]

—Uma cadeira, Trindade! Toma uma chavena de chá, senhor cura? Soberba manhã, hein? Estava justamente pensando em v. s.a—isto é, estava pensando no clero em geral... Acabava de lêr as peregrinações que se estão fazendo a Nossa Senhora do Lourdes... Grande exemplo! Milhares de pessoas da melhor roda... É realmente consolador vêr renascer a fé... Ainda hontem eu disse em casa do Novaes: «no fim de tudo a fé é a mola real da sociedade». Tome uma chavena de chá... Ah! é um grande balsamo!...

—Não, obrigado, almocei já.

—Mas não! Quando digo um grande balsamo refiro-me á fé, não ao chá! Ah! ah! É boa, não?

E prolongou a sua risadinha com complacencia. Queria agradar a Natario, pelo principio que repetia muito, com um sorriso astuto—«que quem está mettido na politica deve ter por si a padraria».

—E depois, acrescentou, como eu dizia hontem em casa do Novaes, que vantagem para as localidades! Lourdes, por exemplo, era uma aldeola; pois com a affluencia dos devotos está uma cidade... Grandes hoteis, boulevards, bellas lojas... É por assim dizer o desenvolvimento economico, correndo parelhas com o renascimento religioso.

E deu com satisfação um puxãosinho grave ao collarinho.

—Pois eu vinha aqui fallar a v. exc.a a respeito d'um communicado na Voz do Districto.

—Ah! interrompeu o secretario geral, perfeitamente, [223] li! Uma famosa verrina... Mas litterariamente, como estylo e como imagens, que miseria!

—E que tenciona v. exc.a fazer, senhor secretario geral?

O snr. Gouvéa Ledesma apoiou-se nas costas da cadeira, perguntou pasmado:

—Eu!?

Natario disse, distillando as palavras:

—A auctoridade tem o dever de proteger a religião do Estado, e implicitamente os seus sacerdotes... Que tenha v. exc.a em vista, eu não venho aqui em nome do clero...

E acrescentou com a mão sobre o peito:

—Sou apenas um pobre padre sem influencia... Venho, como particular, perguntar ao senhor secretario geral se se póde permittir que caracteres respeitaveis da Igreja diocesana sejam assim diffamados...

—É certamente lamentavel que um jornal...

Natario interrompeu, impertigando o busto com indignação:

—Jornal que já devia estar suspenso, senhor secretario geral!

—Suspenso!? Por quem é, senhor cura! Mas v. s.a decerto não quer que eu volte aos tempos dos corregedores-móres! Suspender o jornal! Mas a liberdade de imprensa é um principio sagrado! Nem as leis de imprensa o permittem... Mesmo querelar pelo ministerio publico porque um periodico diz duas ou tres pilherias sobre o cabido, impossivel! [224] Tínhamos de querelar de toda imprensa de Portugal, com excepção da Nação e do Bem Publico! Onde iria parar a liberdade de pensamento, trinta annos de progresso, a propria idéa governamental? Mas nós não somos os Cabraes, meu caro senhor! Nós queremos luz, muitissima luz! Justamente o que nós queremos é luz!

Natario tossiu devagarinho, disse:

—Perfeitamente. Mas então quando, pelas eleições, a auctoridade nos vier pedir o nosso auxilio, nós, vendo que não encontramos n'ella protecção, diremos simplesmente: Non possumus!

—E pensa o senhor cura, que por amor de alguns votos que dão os senhores abbades, nós vamos trahir a civilisação?

E o antigo Bibi, tomando uma grande attitude, soltou esta phrase:

—Somos filhos da liberdade, não renegaremos nossa mãi!

—Mas o doutor Godinho, que é a alma do jornal, é opposição, observou então Natario; proteger-lhe o jornal é implicitamente proteger-lhe as manobras...

O secretario geral teve um sorriso:

—Meu caro senhor cura, v. s.a não está no segredo da politica. Entre o doutor Godinho e o governo civil não ha inimizade, ha apenas um arrufo... O doutor Godinho é uma intelligencia... Vai reconhecendo que o grupo da Maia não produz nada... O doutor Godinho aprecia a politica do governo, e o governo aprecia o doutor Godinho. [225]

E, rebuçando-se todo n'um mysterio d'Estado, acrescentou:

—Coisas d'alta política, meu caro senhor.

Natario ergueu-se:

—De modo que...

Impossibilis est, disse o secretario. De resto acredite, senhor cura, que como particular revolto-me contra o Communicado; mas como auctoridade devo respeitar a expressão do pensamento... Mas creia, e póde dizel-o a todo o clero diocesano, a Igreja catholica não tem um filho mais fervente que eu, Gouvêa Ledesma... Quero porém uma religião liberal, de harmonia com o progresso, com a sciencia... Foram sempre as minhas idéas; préguei-as bem alto, na imprensa, na universidade e no gremio... Assim, por exemplo, não acho que haja poesia maior que a poesia do christianismo! E admiro Pio IX, uma grande figura! Sómente lamento que elle não arvore a bandeira da civilisação!—E o antigo Bibi, contente da sua phrase, repetia:—Sim, lamento que elle não arvore a bandeira da civilisação... O Syllabus é impossivel n'este seculo de electricidade, senhor cura! E a verdade é que nós não podemos querelar d'um jornal porque elle diz duas ou tres pilherias sobre o sacerdocio, nem nos convém, por altas razões de política, escandalisar o doutor Godinho. Aqui tem o meu pensamento.

—Senhor secretario geral... disse Natario curvando-se.

—Um criado de v. s.a Sinto que não tome uma [226] chavena de chá... E como vai o nosso chantre?

—S. exc.a n'estes ultimos dias, segundo creio, tem tornado a soffrer de tonturas.

—Sinto. Uma intelligencia tambem! Grande latinista... Tenha cuidado com o degrau!...

Natario correu á Sé, com um passo nervoso, resmungando alto de cólera. Amaro passeava devagar no terraço, com as mãos atraz das costas: tinha as olheiras batidas e a face envelhecida.

—Então? disse elle, indo rapidamente ao encontro de Natario.

—Nada!

Amaro mordeu o beiço: e emquanto Natario lhe contava, excitado, a conversação com o secretario geral, «e como argumentára com elle, e como o homem tagarellára, tagarellára»,—a face do parocho cobria-se d'uma sombra desconsolada, e ia arrancando raivosamente, com a ponta do guardasol, a herva que crescia nas fendas do terraço.

—Um patarata! resumiu o padre Natario com um grande gesto. Pela auctoridade não se faz nada. É escusado... Mas a questão agora é entre mim e o liberal, padre Amaro! Eu hei de saber quem é, padre Amaro! E quem o esmaga sou eu, padre Amaro, sou eu!...


No emtanto João Eduardo desde o domingo triumphava: o artigo fizera escandalo: tinham-se vendido [227]oitenta numeros avulsos do jornal, e o Agostinho affirmára-lhe que na botica da Praça a opinião era «que o liberal conhecia a padraria a fundo e tinha cabeça»!

—És um genio, rapaz! disse o Agostinho. É trazer-me outro, é trazer-me outro!

João Eduardo gozava prodigiosamente «d'aquelle fallatorio que ia pela cidade».

Relia então o artigo com uma deleitação paternal; se não receasse escandalisar a S. Joanneira, desejaria ir pelas lojas dizer bem alto—fui eu, eu é que o escrevi!—E já ruminava outro, mais terrivel, que se deveria intitular: O diabo feito ermita, ou O sacerdocio de Leiria perante o seculo XIX!

O doutor Godinho encontrára-o na Praça, e parára com condescendencia, para lhe dizer:

—A coisa tem feito barulho. Vossê é o diabo! E a piada ao padre Brito é bem jogada. Que eu não sabia... E diz que é bonita, a mulher do regedor...

—V. exc.a não sabia?

—Não sabia, e saboreei. Vossê é o diabo! Eu fui que disse ao Agostinho que publicasse a coisa como um communicado. Vossê comprehende... Eu não me convém ter turras de mais com o clero... E depois lá minha esposa tem seus escrupulos... Emfim é mulher, e é conveniente que as mulheres tenham religião... Mas no meu fôro interior saboreei... Sobretudo a piada ao Brito. O patife fez-me [228] uma guerra dos diabos na eleição passada... Ah! e outra coisa, o seu negocio arranja-se. Lá para o mez que vem tem vossê o seu emprego no governo civil.

—Oh, snr. doutor... v. exc.a...

—Qual historia! vossê é um benemerito!

João Eduardo foi para o cartorio, tremulo d'alegria. O snr. Nunes Ferral sahira: o escrevente aparou devagar uma penna, começou a cópia d'uma procuração—e de repente, agarrando o chapéo, correu á rua da Misericordia.

A S. Joanneira costurava só á janella; Amelia fôra ao Morenal; e João Eduardo, logo da porta:

—Sabe, D. Augusta? Estive agora com o doutor Godinho. Diz que lá para o mez que vem tenho o meu emprego...

A S. Joanneira tirou a luneta, deixou cahir as mãos no regaço:

—Que me diz?...

—É verdade, é verdade...

E o escrevente esfregava as palmas, com risinhos nervosos de jubilo.

—Que pechincha! exclamou. De modo que agora, se a Ameliasinha estiver d'accordo...

—Ai, João Eduardo! fez a S. Joanneira com um grande suspiro, que me tira um peso do coração... Que tenho estado... Olhe, nem tenho dormido!...

João Eduardo presentiu que ella ia fallar do Communicado. Foi pôr o chapéo n'uma cadeira ao canto; [229] e voltando á janella, com as mãos nos bolsos:

—Então porquê, porquê?

—Aquella pouca vergonha no Districto! Que diz vossê? Aquella calumnia! Ai! tenho-me feito velha!

João Eduardo escrevera o artigo sob as solicitações do ciume, só para «enterrar» o padre Amaro; não previra o desgosto das duas senhoras; e vendo agora a S. Joanneira com duas lagrimas no branco dos olhos, sentia-se quasi arrependido. Disse ambíguamente:

—Eu li, é o diabo...

Mas aproveitando o sentimento da S. Joanneira para servir a sua paixão, acrescentou sentando-se, chegando a cadeira para ao pé d'ella:

—Eu nunca lhe quiz fallar d'isso, D. Augusta, mas... olhe que a Ameliasinha tratava o parocho com muita familiaridade... E pelas Gansosos, pelo Libaninho, mesmo sem quererem, a coisa ia-se sabendo, ia-se rosnando... Eu bem sei que ella, coitada, não via o mal, mas... a D. Augusta sabe o que é Leiria. Que linguas, hein!

A S. Joanneira então declarou que lhe ia fallar como a um filho: o artigo affligira-a, sobretudo por causa d'elle, João Eduardo. Porque emfim elle podia acreditar tambem, desfazer o casamento, e que desgosto! E ella podia dizer-lhe, como mulher de bem, como mãi, que não havia entre a pequena e o senhor parocho nada, nada, nada! Era a rapariga que tinha aquelle genio communicativo! E o parocho [230] tinha boas palavras, sempre muito delicado... Que ella sempre o dissera, o senhor padre Amaro tinha maneiras que tocavam o coração...

—Decerto, disse João Eduardo mordendo o bigode, com a cabeça baixa.

A S. Joanneira então poz a mão de leve sobre o joelho do escrevente, e fitando-o:

—E olhe, não sei se me fica mal dizer-lh'o, mas a rapariga quer-lhe devéras, João Eduardo.

O coração do escrevente teve uma palpitação commovida.

—E eu! disse. A D. Augusta sabe a paixão que eu tenho por ella... E lá do artigo que me importa a mim!

Então a S. Joanneira limpou os olhos ao avental branco. Ai! era uma alegria para ella! Ella sempre o dissera, como rapaz de bem, não havia outro na cidade de Leiria!

—Vossê sabe, quero-lhe como filho!

O escrevente enterneceu-se:

—Pois vamos a isso, e tapam-se as bocas do mundo...

E erguendo-se, com uma solemnidade engraçada:

—snr.a D. Augusta! Tenho a honra de lhe pedir a mão...

Ella riu-se—e na sua alegria João Eduardo beijou-a na testa, filialmente.

—E falle á noite á Ameliasinha, disse ao sahir. Eu venho ámanhã, e felicidade não ha de faltar... [231]

—Louvado seja Nosso Senhor! acrescentou a S. Joanneira retomando a sua costura, com um suspiro de muito allivio.

Apenas n'essa tarde Amelia voltou do Morenal, a S. Joanneira, que estava pondo a mesa, disse-lhe:

—Esteve ahi o João Eduardo...

—Ah!...

—Ahi esteve a fallar, coitado...

Amelia, calada, dobrava a sua manta de lã.

—Ahi esteve a queixar-se... continuou a mãi.

—Mas de quê? perguntou ella muito vermelha.

—Ora de quê! Que se fallava muito na cidade do artigo do Districto; que se perguntava a quem alludia o periodico com as donzellas inexperientes, e que a resposta era: «Quem ha de ser? a Amelia da S. Joanneira, da rua da Misericordia!» O pobre João diz que tem andado tão desgostoso!... Não se atrevia, por delicadeza, a fallar-te... Emfim...

—Mas que hei de eu fazer, minha mãi? exclamou Amelia com os olhos subitamente cheios de lagrimas áquellas palavras que cahiam sobre os seus tormentos como gotas de vinagre sobre feridas.

—Eu digo-te isto para teu governo. Faze o que quizeres, filha. Eu bem sei que são calumnias! Mas tu sabes o que são linguas do mundo... O que te posso dizer é que o rapaz não acreditou no periodico. Que era isso que me dava cuidado!... Credo! tirou-me o somno... Mas não, diz que não lhe importa o artigo, que te quer da mesma maneira, e está a arder por que se faça o casamento... E eu por [232] mim o que fazia, para calar toda essa gente, era casar-me já. Eu bem sei que tu não morres por elle, bem sei. Deixa lá! Isso vem depois. O João é bom rapaz, vai ter o emprego...

—Vai ter o emprego!?

—Pois foi o que elle me veio dizer tambem... Esteve com o doutor Godinho, diz que lá para o fim do mez está empregado... Emfim tu fazes o que entenderes... Que olha que eu estou velha, filha, posso faltar-te d'um momento para o outro...

Amelia não respondeu, olhando de frente no telhado voarem os pardaes—menos desassocegados, n'aquelle instante, que os seus pensamentos.


Desde domingo vivia atordoada. Sabia bem que a donzella inexperiente a que alludia o Communicado era ella, Amelia, e torturava-a o vexame de vêr assim o seu amor publicado no jornal. Depois (como ella pensava, mordendo o beiço n'uma raiva muda, com os olhos afogados de lagrimas), aquillo vinha estragar tudo! Na Praça, na Arcada já se diria com risinhos perversos:—«Então a Ameliasita da S. Joanneira mettida com o parocho, hein?» Decerto o senhor chantre, tão severo em «coisas de mulheres,» reprehenderia o padre Amaro... E por alguns olhares, alguns apertos de mão, ahi estava a sua reputação estragada, estragado o seu amor! [233]

Na segunda-feira, ao ir ao Morenal, parecera-lhe sentir pelas costas risinhos a escarnecel-a; no aceno que lhe fez da porta da botica o respeitavel Carlos julgou vêr uma seccura reprehensível; á volta encontrára o Marques da loja de ferragens, que não lhe tirou o chapéo, e ao entrar em casa julgava-se desacreditada—esquecendo que o bom Marques era tão curto da vista que usava na loja duas lunetas sobrepostas.

—Que hei de eu fazer? que hei de eu fazer? murmurava, às vezes, com as mãos apertadas na cabeça. O seu cerebro de devota apenas lhe fornecia soluções devotas—entrar n'um recolhimento, fazer uma promessa a Nossa Senhora das Dôres «para que a livrasse d'aquelle apuro», ir confessar-se ao padre Silverio... E terminava por se vir sentar resignadamente ao pé da mãi com a sua costura, considerando, muito enternecida, que desde pequena fôra sempre bem infeliz!

A mãi não lhe fallára claramente sobre o Communicado; tivera apenas palavras ambíguas:

—É uma pouca vergonha... É deitar ao desprezo... Quando a gente tem a sua consciencia socegada, o mais historias...

Mas Amelia via-lhe bem o desgosto—na face envelhecida, nos tristes silencios, nos suspiros repentinos quando fazia meia á janella com a luneta na ponta do nariz: e então mais se convencia que havia «grande fallatorio na cidade», de que a mãi, coitada, estava informada pelas Gansosos e pela D. [234] Josepha Dias—cuja boca produzia o mexerico mais naturalmente que a saliva. Que vergonha, Jesus!

E então o seu amor pelo parocho, que até ahi, n'aquella reunião de saias e batinas da rua da Misericordia se lhe afigurára natural, agora, julgando-o reprovado pelas pessoas que desde pequena fora acostumada a respeitar—os Guedes, os Marques, os Vazes,—apparecia-lhe já monstruoso: assim as côres d'um retrato pintado á luz d'azeite, e que á luz d'azeite parecem justas, tomam tons falsos e disformes quando lhes cae em cima a luz do sol. E quasi estimava que o padre Amaro não tivesse voltado á rua da Misericordia.

No emtanto, com que anciedade esperava todas as noites o seu toque de campainha! Mas elle não vinha; e aquella ausencia, que a sua razão julgava prudente, dava ao seu coração o desespero d'uma traição. Na quarta-feira á noite não se conteve, disse, córando sobre a sua costura:

—Que será feito do senhor parocho?

O conego, que na sua poltrona parecia dormitar, tossiu grosso, mexeu-se, rosnou:

—Mais que fazer... E escusam de esperar por elle tão cedo!...

E Amelia, que ficára branca como a cal, teve immediatamente a certeza que o parocho, aterrado com o escandalo do jornal, aconselhado pelos padres timoratos zelosos «do bom nome do clero»—tratava de se descartar d'ella! Mas, cautelosa, diante das amigas da mãi, escondeu o seu desespero: foi [235] mesmo sentar-se ao piano, e tocou mazurkas tão estrondosas—que o conego, tornando a mexer-se na poltrona, grunhiu:

—Menos espalhafato e mais sentimento, rapariga!

Passou uma noite agoniada, e sem chorar. A sua paixão pelo parocho flammejava mais irritada; e todavia detestava-o pela sua cobardia. Mal uma allusão n'um jornal o picára, ficára a tremer na sua batina, apavorado, não se atrevendo sequer a visital-a—sem se lembrar que tambem ella se via diminuida na sua reputação, sem ser satisfeita no seu amor! E fôra elle que a tentára com as suas palavrinhas dôces, as suas denguices! Infame!... Desejava violentamente apertal-o ao coração—e esbofeteal-o. Teve a idéa insensata de ir ao outro dia à rua das Sousas atirar-se-lhe aos braços, installar-se-lhe no quarto, fazer um escandalo que o obrigasse a fugir da diocese... Porque não? Eram novos, eram robustos, poderiam viver longe, n'outra cidade—e a sua imaginação começou a repastar-se logo hystericamente nas perspectivas deliciosas d'essa existencia, em que se figurava constantemente a dar-lhe beijos! Através da sua intensa excitação, aquelle plano parecia-lhe muito pratico, muito facil: fugiriam para o Algarve; lá, elle deixaria crescer o cabello (que mais bonito seria então!) e ninguem saberia que era um padre; poderia ensinar latim, ella coseria para fóra; e viveriam n'uma casinha—onde o que mais a attrahia era o leito com as duas travesseirinhas [236] chegadas... E a unica difficuldade que via em todo este plano radiante era fazer sahir de casa, às escondidas da mãi, o bahú com a sua roupa!—Mas quando acordou, essas resoluções morbidas, á luz clara do dia, desfizeram-se como sombras: tudo aquillo lhe parecia agora tão impraticavel, e elle tão separado d'ella, como se entre a rua da Misericordia e a rua das Sousas se erguessem inaccessivelmente todas as montanhas da terra. Ai, o senhor parocho abandonára-a, era certo! Não queria perder os lucros da sua parochia nem a estima dos seus superiores!... Pobre d'ella! Considerou-se então para sempre infeliz e desinteressada da vida. Guardou, todavia, muito intenso o desejo de se vingar do padre Amaro.

Foi então que reflectiu, pela primeira vez, que João Eduardo desde a publicação do Communicado não apparecera na rua da Misericordia. Tambem me volta as costas—pensou com amargura. Mas que lhe importava! No meio da afflicção que lhe dava o abandono do padre Amaro, a perda do amor do escrevente, piegas e pesado, que lhe não trazia utilidade nem prazer, era uma contrariedade imperceptivel: uma infelicidade viera que lhe arrebatava bruscamente todas as affeições—a que lhe enchia a alma e a que apenas lhe acariciava a vaidadesinha: e irritava-a, sim, não sentir já o amor do escrevente collado a suas saias, com a docilidade d'um cão—mas todas as suas lagrimas eram para o senhor parocho, «que já não queria saber d'ella»! [237] Só lamentava a deserção de João Eduardo, porque perdia assim um meio sempre prompto de fazer enraivecer o padre Amaro...


Por isso n'essa tarde á janella, calada, olhando no telhado defronte voarem os pardaes—depois de saber que João Eduardo, certo do emprego, viera fallar emfim á mãi,—pensava com satisfação no desespero do parocho ao vêr publicados na Sé os banhos do seu casamento. Depois as palavras muito praticas da S. Joanneira trabalhavam-lhe silenciosamente n'alma: o emprego do governo civil rendia 25$000 reis mensaes; casando, reentrava logo na sua respeitabilidade de senhora; e se a mãi morresse, com o ordenado do homem e com o rendimento do Morenal, podia viver com decencia, ir mesmo no verão aos banhos... E via-se já na Vieira, muito comprimentada pelos cavalheiros, conhecendo talvez a do governador civil.

—Que lhe parece, minha mãi?—perguntou bruscamente. Estava decidida pelas vantagens que entrevia; mas, com a sua natureza lassa, desejava ser persuadida e forçada.

—Eu ia pelo seguro, filha—foi a resposta da S. Joanneira.

—É sempre o melhor—murmurou Amelia entrando no quarto. E sentou-se muito triste aos pés da cama, porque a melancolia que lhe dava o crepusculo [238] tornava-lhe agora mais pungente a saudade «dos seus bons tempos com o senhor parocho».

N'essa noite choveu muito, as duas senhoras passaram sós. A S. Joanneira, repousada agora das suas inquietações, estava muito somnolenta, a cada momento cabeceava com a meia cahida no regaço. Amelia então pousava a costura, e com o cotovêlo sobre a mesa, fazendo girar o abat-jour verde do candieiro, pensava no seu casamento: o João Eduardo era bom rapaz, coitado; realisava o typo de marido tão estimado na pequena burguezia—não era feio e tinha um emprego; decerto o offerecimento da sua mão, apesar das infamias do jornal, não lhe parecia, como a mãi dissera, «um rasgo de mão cheia»; mas a sua dedicação lisonjeava-a, depois do abandono tão cobarde de Amaro: e havia dois annos que o pobre João gostava d'ella... Começou então laboriosamente a lembrar tudo o que n'elle lhe agradava—o seu ar sério, os seus dentes muito brancos, a sua roupa aceada.

Fóra ventava forte, e a chuva, fustigando friamente as vidraças, dava-lhe appetites de confortos, um bom lume, o marido ao lado, o pequerrucho a dormir no berço—porque seria um rapaz, chamar-se-hia Carlos e teria os olhos negros do padre Amaro. O padre Amaro!... Depois de casada, decerto, tornaria a encontrar o senhor padre Amaro... E então uma idéa atravessou todo o seu sêr, fêl-a erguer bruscamente, ir por instincto procurar a escuridão da janella para occultar a vermelhidão do [239] rosto. Oh! isso não, isso não! Era horrível!... Mas a idéa implacavelmente apoderára-se d'ella como um braço muito forte que a suffocava e lhe dava uma agonia deliciosa. E então o antigo amor, que o despeito e a necessidade tinham recalcado no fundo da_sua alma, rompeu, inundou-a: murmurou repetidamente, com paixão, torcendo as mãos, o nome d'Amaro: desejou avidamente os seus beijos—oh! adorava-o! E tudo tinha acabado, tudo tinha acabado! E devia casar, pobre d'ella!... Então á janella, com a face contra a escuridão da noite, choramingou baixinho.

Ao chá a S. Joanneira disse-lhe, de repente:

-Pois a coisa a fazer-se, filha, devia ser já... Era começar o enxoval, e se fosse possivel casar-te para o fim do mez.

Ella não respondeu—mas a sua imaginação alvoroçou-se áquellas palavras. Casada d'ahi a um mez, ella! Apesar de João Eduardo lhe ser indifferente, a idéa d'aquelle rapaz, novo e apaixonado, que ia viver com ella, dormir com ella, deu uma perturbação a todo o seu sêr.

E quando a mãi ia descer ao quarto disse-lhe:

—Que lhe parece, minha mãi? Eu está-me a custar entrar em explicações com o João Eduardo, dizer-lhe que sim. O melhor era escrever-lhe...

—Tambem acho, filha, escreve-lhe... A Ruça leva a carta pela manhã... Uma carta bonita, e que agrade ao rapaz. [240]

Amelia ficou na sala de jantar até tarde fazendo o rascunho da carta. Dizia:


«Snr. João Eduardo,

«A mamã cá me pôz ao facto da conversação que teve comsigo. E se a sua affeição é verdadeira, como creio e me tem dado muitas provas, eu estou pelo que se decidiu com muito boa vontade, pois conhece os meus sentimentos. E a respeito d'enxoval e papeis, ámanhã se fallará, pois que o esperamos para o chá. A mamã está muito contente e eu desejo que tudo seja para nossa felicidade, como espero ha de ser, com a ajuda de Deus. A mamã recommenda-se e eu sou

a que muito lhe quer,

«Amelia Caminha».


Apenas fechou a carta, as folhas de papel branco espalhadas diante d'ella deram-lhe o desejo d'escrever ao padre Amaro. Mas o quê? Confessar-lhe o seu amor, com a mesma penna, molhada na mesma tinta, com que aceitava por marido o outro?... Accusal-o da sua cobardia, mostrar o seu desgosto—era humilhar-se! E, apesar de não ter motivo para lhe escrever, a sua mão ia traçando com gozo as primeiras palavras «Meu adorado Amaro...» Deteve-se, considerando que não tinha por quem [241] mandar a carta. Ai! tinham de separar-se assim, em silencio, para sempre!... Separarem-se porquê?—pensou. Depois de casada podia bem vêr o senhor padre Amaro. E a mesma idéa voltava, subtilmente, mas n'uma fórma tão honesta agora, que a não repellia: decerto, o senhor padre Amaro podia ser o seu confessor; era em toda a christandade a pessoa que melhor guiaria a sua alma, a sua vontade, a sua consciencia; haveria então entre elles uma troca deliciosa e constante de confidencias, de dôces admoestações; todos os sabbados iria receber ao confessionario, na luz dos seus olhos e no som das suas palavras, uma provisão de felicidade; e aquillo seria casto, muito picante, e para gloria de Deus.

Sentiu-se quasi satisfeita com a impressão, que não definia bem, d'uma existencia em que a carne estaria legitimamente contente, e a sua alma gozaria os encantos d'uma devoção amorosa. Tudo vinha a calhar bem, por fim... E d'ahi a pouco dormia serenamente, sonhando que estava na sua casa, com o seu marido, e que jogava a manilha com as velhas amigas, no meio do contentamento de toda a Sé, sentada nos joelhos do senhor parocho.

Ao outro dia a Ruça levou a carta a João Eduardo, e toda a manhã as duas senhoras, costurando á janella, fallaram do casamento. Amelia não se queria separar da mãi, e, como a casa tinha accommodações, os noivos viveriam no primeiro andar, e a S. Joanneira dormiria no quarto em cima; decerto o senhor conego ajudaria para o enxoval; podiam [242] ir passar a lua de mel para a fazenda da D. Maria. E Amelia áquellas perspectivas felizes fazia-se toda escarlate, sob o olhar da mãi que, de luneta na ponta do nariz, a admirava babosa.

Ás Ave-Marias a S. Joanneira fechou-se em baixo no seu quarto a rezar a sua corôa, e deixou Amelia só «para se entender com o rapaz».—D'ahi a pouco, com effeito, João Eduardo bateu á campainha. Vinha muito nervoso, de luvas pretas, enfrascado em agua de colonia. Quando chegou á porta da sala de jantar não havia luz, e a bonita fórma d'Amelia destacava de pé, junto á claridade da vidraça. Elle pôz o chale-manta a um canto como costumava, e vindo para ella que ficára immovel, disse-lhe, esfregando muito as mãos:

—Lá recebi a cartinha, menina Amelia...

—Eu mandei-a pela Ruça logo pela manhã para o pilhar em casa, disse ella immediatamente com as faces a arder.

—Eu ia para o cartorio, até já ia na escada... Haviam de ser nove horas...

—Haviam de ser... disse ella.

Calaram-se, muito perturbados. Elle então tomou-lhe delicadamente os pulsos, e baixo:

—Então sempre quer?

—Quero, murmurou Amelia.

—E o mais depressa possivel, hein?

—Pois sim...

Elle suspirou, muito feliz.

—Havemos de nos dar muito bem, havemos de [243] nos dar muito bem! dizia. E as suas mãos, com pressões ternas, iam-se apoderando dos braços d'ella, dos pulsos aos cotovêlos.

—A mamã diz que podemos viver juntos, disse ella, esforçando-se por fallar tranquillamente.

—Está claro, e eu vou mandar fazer lençoes, acudiu elle, todo alterado.

Attrahiu-a então a si, subitamente, beijou-lhe os labios; ella teve um soluçosinho, abandonou-se-lhe entre os braços, toda fraca, toda languida.

—Oh, filha! murmurava o escrevente.

Mas os sapatos da mãi rangeram na escada, e Amelia foi vivamente para o aparador accender o candieiro.

A S. Joanneira parou á porta; e para dar a sua primeira approvação maternal, disse, com bonhomia:

—Então vossês estão aqui ás escuras, filhos?


Foi o conego Dias que participou ao padre Amaro o casamento d'Amelia, uma manhã, na Sé. Fallou no «a proposito do enlace», e acrescentou:

—Eu estimo, porque é a contento da rapariga, e é um descanso para a pobre velha...

—Está claro, está claro...—murmurou Amaro que se fizera muito branco.

O conego pigarreou grosso, e ajuntou:

—E vossê agora appareça por lá, agora está [244] tudo na ordem... A patifaria do jornal isso pertence á historia... O que lá vai, lá vai!

—Está claro, está claro...—rosnou Amaro. Traçou bruscamente a capa, sahiu da igreja.

Ia indignado; e continha-se, para não praguejar alto, pelas ruas. Á esquina da viella das Sousas quasi esbarrou com Natario, que o agarrou logo pela manga, para lhe soprar ao ouvido:

—Ainda não sei nada!

—De quê?

—Do liberal, do Communicado. Mas trabalho, trabalho!

Amaro, que anciava por desabafar, disse logo:

—Então ouviu a novidade? O casamento d'Amelia... Que lhe parece?

—Disse-me o animal do Libaninho. Diz que o rapaz apanhou o emprego... Foi o doutor Godinho... É outro que tal!... Veja vossê esta corja: o doutor Godinho no jornal ás bulhas com o governo civil, e o governo civil a atirar postas aos afilhados do doutor Godinho... Vá lá entendel-os! Isto é um paiz de biltres!

—Diz que grande alegrão na casa da S. Joanneira!—disse o parocho, com um azedume negro.

—Que se divirtam! Eu não tenho tempo de lá ir... Eu não tenho tempo para nada!... Eu cá ando no meu fito, saber quem é o liberal e escachal-o! Não posso vêr esta gente que leva a chicotada, coça-se, e curva a orelha. Eu cá não! eu guardo-as!—E, [245] com uma contracção de rancor que lhe curvou os dedos em garra e lhe encolheu o peito magro. disse por entre os dentes cerrados:—Eu, quando odeio, odeio bem!

Esteve um momento calado, gozando o sabôr do seu fel.

—Vossê se fôr á rua da Misericordia dê lá os parabens a essa gente...—E acrescentou com os olhinhos em Amaro:—O palerma do escrevente leva a rapariga mais bonita da cidade! Vai encher o papo!

—Até á vista! exclamou bruscamente Amaro, abalando pela rua furioso.

Depois d'aquelle terrivel domingo em que apparecera o Communicado, o padre Amaro, ao principio, muito egoistamente, apenas se preoccupára com as consequências—«consequencias fataes, santo Deus!»—que lhe podia trazer o escandalo. Hein! se pela cidade se espalhasse que era elle o padre ajanotado que o liberal apostrophava! Viveu dois dias aterrado, tremendo de vêr apparecer o padre Saldanha, com a sua cara ameninada e voz melliflua, a dizer-lhe «que sua excellencia o senhor chantre reclamava a sua presença»! Passava já o tempo preparando explicações, respostas habeis, lisonjas a sua excellencia.—Mas quando viu que, apesar da violencia do artigo, sua excellencia parecia disposto «a fazer a vista grossa», occupou-se então, mais tranquillo, dos interesses do seu amor tão violentamente perturbados. O medo tornava-o astucioso; e [246] decidiu não voltar algum tempo á rua da Misericordia.

—Deixar passar o aguaceiro, pensou.

Ao fim de quinze dias, tres semanas, quando o artigo estivesse esquecido, appareceria de novo em casa da S. Joanneira: deixaria vêr bem á rapariga que a adorava sempre, mas evitaria a antiga familiaridade, as conversasinhas baixas, os logarzinhos chegados ao quino; depois, pela D. Maria da Assumpção, pela D. Josepha Dias, obteria que Amelia deixasse o padre Silverio, e se confessasse a elle: poderiam então entender-se, no segredo do confessionario: combinariam uma conducta discreta, encontros cautelosos aqui e além, cartinhas pela criada: e aquelle amor assim conduzido, com prudenciasinha, não teria o perigo de apparecer uma manhã annunciado no periodico! E regosijava-se já da habilidade d'esta combinação, quando lhe vinha o grande choque—casava-se a rapariga!

Depois dos primeiros desesperos, desabafados em patadas no soalho e blasphemias de que pedia logo perdão a Nosso Senhor Jesus Christo, quiz serenar, estabelecer a razão das coisas. Aonde o levava aquella paixão? Ao escandalo. E assim, casada ella, cada um entrava no seu destino legitimo e sensato—ella na sua familia, elle na sua parochia. Depois, quando se encontrassem, um comprimento amavel; e elle poderia passear a cidade com a sua cabeça bem direita, sem medo dos ápartes da Arcada, das insinuações da gazeta, das severidades de sua excellencia [247] e das picadinhas da consciencia! E a sua vida seria feliz.—Não, por Deus! a sua vida não poderia ser feliz sem ella! Tirado á sua existencia aquelle interesse das visitas à rua da Misericordia, os apertosinhos de mão, a esperança de delicias melhores—que lhe restava a elle? Vegetar, como um dos tortolhos nos cantos humidos do adro da Sé! E ella, ella que o entontecera com os seus olhinhos e as suas maneirinhas, voltava-lhe as costas mal lhe apparecia outro, bom para marido, com 25$000 reis por mez! Todos aquelles suspiros, aquellas mudanças de côr—chalaça! Mangára com o senhor parocho!...

O que a odiava!—menos que o outro porém, o outro que triumphava porque era um homem, tinha a sua liberdade, o seu cabello todo, o seu bigode, um braço livre para lhe dar na rua! Repastava então a imaginação rancorosamente nas visões de felicidade do escrevente: via-o trazendo-a da igreja triumphantemente; via-o beijando-lhe o pescoço e o peito... E a estas idéas dava patadas furiosas no soalho—que assustavam a Vicencia na cozinha.

Depois procurava socegar, retomar a direcção das suas faculdades, applical-as todas a achar uma vingança, uma boa vingança! E voltava então o antigo desespero de não viver no tempo da inquisição, e com uma denuncia de irreligião ou de feiticeria, mandal-os ambos para um carcere. Ah! n'esse tempo um padre gozava! Mas agora, com os senhores liberaes, tinha de vêr aquelle miseravel escrevente a [248] seis vintens por dia apoderar-se-lhe da rapariga—e elle, sacerdote instruido, que podia ser bispo, que podia ser Papa, tinha de vergar os hombros e ruminar solitariamente o seu despeito! Ah! se as maldições de Deus tinham algum valor—malditos fossem elles! Quereria vêl-os cheios de filhos, sem pão na prateleira, com o ultimo cobertor empenhado, resequidos de fome, injuriando-se,—e elle a rir-se, elle a regalar-se!...


Na segunda-feira não se conteve, foi á rua da Misericordia. A S. Joanneira estava em baixo na saleta com o conego Dias. E apenas viu Amaro:

—Oh, senhor parocho! bem apparecido! Estava a fallar em v. s.a! Já estranhava não o vermos, agora que ha alegria em casa.

—Já sei, já sei, murmurou Amaro pallido.

—Alguma vez havia de ser, disse o conego jovialmente. Deus os faça felizes e lhes dê poucos filhos, que a carne está cara.

Amaro sorriu—escutando em cima o piano.

Era Amelia que tocava como outr'ora a valsa dos Dois Mundos; e João Eduardo, muito chegado a ella, voltava as folhas da musica.

—Quem entrou, Ruça? gritou ella sentindo os passos da rapariga nas escadas.

—O senhor padre Amaro.

Um fluxo de sangue abrazou-lhe o rosto—e o [249] coração batia-lhe tão forte, que ficou um momento com os dedos immoveis sobre o teclado.

—Não se precisava cá do senhor padre Amaro, rosnou João Eduardo por entre dentes.

Amelia mordeu o beiço. Teve odio ao escrevente: n'um instante repugnou-lhe a sua voz, os seus modos, a sua figura de pé junto d'ella: pensou com deleite como depois de casada (já que tinha de casar) se confessaria toda ao padre Amaro, e não deixaria de o amar! Não sentia n'aquelle momento escrupulos; e quasi desejava que o escrevente lhe visse no rosto a paixão que a revolvia.

—Credo, creatura! disse-lhe. Chegue-se um pouco mais para lá, que nem me deixa os braços livres para tocar!

Terminou bruscamente a valsa dos Dois Mundos, começou a cantar o Adeus:


Ai! adeus! acabaram-se os dias
Que ditosa vivi a teu lado!


A sua voz elevava-se, com uma modulação ardente,—dirigindo o canto, através do soalho, ao coração do parocho, em baixo.

E o parocho, com a sua bengala entre os joelhos, sentado no canapé, devorava todos os tons da voz d'ella—emquanto a S. Joanneira tagarellava, contando as peças de algodão que comprára para lençoes, os arranjos que ia fazer no quarto dos noivos, e as vantagens de viverem juntos...

—Uma felicidade por ahi além, interrompeu o [250] conego erguendo-se pesadamente. E vamos lá para cima, que isto de noivos não se querem sós...

—Ah, lá n'isso, disse a S. Joanneira rindo, fio-me n'elle, que é homem de bem ás direitas.

Amaro, ao subir a escada, tremia—e, mal entrou na sala, o rosto d'Amelia, alumiado pelas luzes do piano, deu-lhe um deslumbramento, como se as vesperas do noivado a tivessem embellezado e a separação lh'a tornasse mais appetitosa. Foi dar-lhe gravemente um aperto de mão, outro ao escrevente, disse baixo, sem os olhar:

—Os meus parabens... Os meus parabens...

Voltou as costas, e foi conversar com o conego que se enterrára na sua poltrona queixando-se d'enfastiamento e reclamando o chá.

Amelia ficára como abstracta, correndo inconscientemente os dedos pelo teclado. Aquelle modo do padre Amaro confirmava a sua idéa: queria a todo o custo descartar-se d'ella, o ingrato! fazia «como se nada tivesse havido», o villão! Na sua cobardia de padre, com o terror do senhor chantre, do jornal, da Arcada, de tudo,—sacudia-a da sua imaginação, do seu coração, da sua vida, como se sacode um insecto que tem peçonha!... Então, para o enraivecer, começou a cochichar ternamente com o escrevente; roçava-se-lhe pelo hombro, rendida, com risinhos, segredinhos; tentaram, em alarido jovial, tocar uma peça a quatro mãos; depois ella beliscou-o, elle deu um gritinho exagerado.—E a S. Joanneira contemplava-os babosa, emquanto o conego dormitava [251] já, e o padre Amaro, abandonado a um canto como outr'ora o escrevente, ia folheando o velho album.

Mas um brusco repique da campainha veio sobresaltal-os todos: passos rapidos galgaram a escada, pararam em baixo na saleta: e a Ruça appareceu dizendo «que era o senhor padre Natario, que não desejava subir, e queria dar uma palavra ao senhor conego».

—Fracas horas para embaixadas, rosnou o conego, arrancando-se com custo ao fundo confortavel da poltrona.

Amelia fechou logo o piano—e a S. Joanneira pousando a meia foi em bicos de pés escutar ao alto da escada: fóra ventava forte, e para os lados da Praça afastava-se o toque de retreta.

Emfim a voz do conego chamou, de baixo, da porta da saleta:

—Ó Amaro!

—Padre-Mestre?

—Venha cá, homem. E diga á senhora que póde vir tambem.

A S. Joanneira desceu logo, muito assustada: Amaro imaginava que o padre Natario emfim descobrira o liberal!

A saleta parecia muito fria com a luz pequenina da vela sobre a mesa: e na parede, n'um velho painel muito escuro—que ultimamente o conego dera á S. Joanneira—destacava uma face livida de monge e um osso frontal de caveira. [252]

O conego Dias accommodára-se ao canto do canapé, sorvendo reflectidamente a pitada; e Natario, que se agitava pela sala, exclamou logo:

—Boas noites, senhora! Olá, Amaro! Trago novidades!... Não quiz subir porque imaginei que estaria o escrevente, e estas coisas são cá para nós. Estava a começar a dizer ao collega Dias... Tive lá em casa o padre Saldanha. Temol-as boas!

O padre Saldanha era o confidente do senhor chantre. E o padre Amaro, já inquieto, perguntou:

—Coisa que nos toca?

Natario começou com solemnidade erguendo alto o braço:

Primo: o collega Brito mudado da freguezia d'Amor para ao pé d'Alcobaça, para a serra, para o inferno...

—Que me diz!? exclamou a S. Joanneira.

—Obras do liberal, minha senhora! O nosso digno chantre levou-lhe tempo a meditar o Communicado do Districto, mas por fim sahiu-se! O pobre Brito lá vai esfogueteado!...

—Sempre é o que se dizia da mulher do regedor... murmurou a boa senhora.

—Ólá! interrompeu severamente o conego. Então, senhora, então! Isto aqui não é casa de murmuração!... Siga com o seu recado, collega Natario.

Secundo, continuou Natario: é o que eu ia dizer ao collega Dias... O senhor chantre, em vista do Communicado e d'outros ataques da imprensa, está decidido a «reformar os costumes do clero diocesano», [253] palavras do padre Saldanha. Que lhe desagradam summamente os conciliabulos de ecclesiasticos e de senhoras... Que quer saber o que é isso de sacerdotes ajanotados tentando meninas bonitas... Emfim, palavras textuaes de sua excellencia—está decidido a limpar as cavalhariças d'Augias!...—o que quer dizer em bom portuguez, minha senhora, que vai andar tudo n'uma roda-viva.

Houve uma pausa consternada. E Natario, plantado no meio da saleta com as mãos enterradas nas algibeiras, exclamou:

—Que lhes parece esta á ultima hora, hein?

O conego ergueu-se pachorrentamente:

—Olhe, collega, disse, entre mortos e feridos ha de escapar alguem... E a senhora não se fique ahi com essa cara de Mater-dolorosa, e mande servir o chá, que é o importante.

—Eu lá disse ao padre Saldanha...—começou Natario perorando.

Mas o conego interrompeu-o com força:

—O padre Saldanha é um patarata!... Vamos nós ás torradinhas, e lá em cima, diante dos rapazes, caluda.

O chá foi silencioso. O conego, a cada bocado de torrada, respirava affrontado, franzia muito o sobr'olho; a S. Joanneira, depois de fallar da D. Maria da Assumpção que estava mal do catarrho, ficou toda murcha, com a testa sobre o punho; Natario, a grandes passadas, fazia uma ventania na sala com as abas do casacão. [254]

—E quando vem essa boda? exclamou elle, estacando subitamente diante d'Amelia e do escrevente; que tomavam o chá sobre o piano.

—Um dia cedo, respondeu ella sorrindo.

Amaro então ergueu-se devagar, e tirando o seu cebolão:

—São horas de me ir chegando á rua das Sousas, minhas senhoras, disse com uma voz desalentada.

Mas a S. Joanneira não consentiu. Credo, estavam todos mônos como se estivessem de pêzames!... Que fizessem um quino para espairecer...—O conego porém, sahindo do seu torpor, disse com severidade:

—Está a senhora muito enganada, ninguem está môno. Não ha razões senão para estar alegre. Pois não é verdade, senhor noivo?

João Eduardo mexeu-se, sorriu:

—Eu cá por mim, senhor conego, não tenho razão senão para estar feliz.

—Pois está claro, disse o conego. E agora Deus lhes dê boas noites a todos, que eu vou quinar para valle de lençoes. E o Amaro tambem.

Amaro foi apertar silenciosamente a mão d'Amelia,—e os tres padres desceram calados.

Na saleta a vela ainda ardia com um murrão. O conego entrou a buscar o seu guardachuva; e então, chamando os outros, cerrando devagarinho a porta, disse-lhes baixo:

—Eu, collegas, não quiz assustar ha pouco a [255] pobre senhora, mas essas coisas do chantre, esses fallatorios... É o diabo!

—É ter cautelinha, meninos! aconselhou Natario, abafando a voz.

—É sério, é sério, murmurou lugubremente o padre Amaro.

Estavam de pé no meio da saleta. Fóra o vento uivava: a luz da vela agitada fazia alternadamente destacar e reentrar na sombra do quadro o osso frontal da caveira: e em cima Amelia cantarolava a Chiquita.

Amaro recordava outras noites felizes em que elle, triumphante e sem cuidados, fazia rir as senhoras,—e Amelia, gorgeando Ai chiquita que si, revirava-lhe olhares rendidos...

—Eu, disse o conego, os collegas sabem, tenho que comer e beber, não me importa... Mas é necessario manter a honra da classe!

—E não carece duvida, acrescentou Natario, que se ha outro artigo e mais fallatorios, estala com certeza o raio...

—Olha o pobre Brito, murmurou Amaro, esfogueteado para a serra!...

Em cima decerto houve alguma graça, porque sentiram as risadas do escrevente.

Amaro rosnou com rancor:

—Grande galhofa, lá em cima!...

Desceram. Ao abrir a porta uma rajada de vento bateu a face de Natario d'uma chuva miudinha.

—Olha que noite! exclamou furioso. [256]

Só o conego tinha guardachuva; e abrindo-o devagar:

—Pois meninos, não ha que vêr, estamos em calças pardas...

Da janella de cima, alumiada, sahiam os sons do piano, nos acompanhamentos da Chiquita. O conego soprava, agarrando fortemente o guardachuva contra o vento; ao lado Natario, cheio de fel, rilhava os dentes, encolhido no seu casacão; Amaro caminhava de cabeça cahida, n'um abatimento de derrota; e emquanto os tres padres, assim agachados sob o guardachuva do conego, iam chapinhando as poças pela rua tenebrosa, por traz a chuva penetrante e sonora ia-os ironicamente fustigando!



XII



D'ahi a dias, os frequentadores da botica, na Praça, viram com espanto o padre Natario e o doutor Godinho conversando em harmonia, á porta da loja de ferragens do Guedes. O recebedor,—que era escutado com deferencia em questões de politica estrangeira—observou-os com attenção através da porta vidrada da pharmacia, e declarou com um tom profundo «que não se admiraria mais se visse Victor Manoel e Pio IX passearem de braço dado»!

O cirurgião da camara porém não estranhava aquelle «commercio d'amizade».—Segundo elle o ultimo artigo da Voz do Districto, evidentemente escripto pelo doutor Godinho, (era o seu estylo incisivo, [258] cheio de logica, atulhado d'erudição!) mostrava que a gente da Maia se queria ir aproximando da gente da Misericordia. O doutor Godinho (na expressão do cirurgião da camara) fazia tagatés ao governo civil e ao clero diocesano: a ultima phrase do artigo era significativa—«não seremos nós que regatearemos ao clero os meios de exercer proficuamente a sua divina missão!»

A verdade era (como observou um individuo obeso, o amigo Pimenta) que, se não havia ainda paz, já havia negociações—porque na vespera elle vira, com aquelles seus olhos que a terra tinha de comer, o padre Natario sahindo de manhã muito cedo da redacção da Voz do Districto!

—Oh, amigo Pimenta, essa é fabricada!

O amigo Pimenta ergueu-se com magestade, deu um puxão grave ao cós das calças, e ia indignar-se—quando o recebedor acudiu:

—Não, não, o amigo Pimenta tem razão. A verdade é que eu n'outro dia vi o patife do Agostinho fazer grande barretada ao padre Natario. E que o Natario traz intriga na mão, isso é seguro! Eu gósto d'observar as pessoas... Pois senhores, o Natario, que nunca apparecia aqui na Arcada, agora vejo-o sempre ahi com o nariz pelas lojas... Depois a grande amizade com o padre Silverio... Hão de reparar que são ambos certos ahi na Praça ás Ave-Marias... E é negocio com a gente do doutor Godinho... O padre Silverio é o confessor da mulher do Godinho... Umas coisas pegam com as outras! [259]

Era muito commentada, com effeito, a nova amizade do padre Natario com o padre Silverio. Havia cinco annos tinha occorrido na sacristia da Sé, entre os dois ecclesiasticos, uma questão escandalosa: Natario correra até de guardachuva erguido para o padre Silverio, quando o bom conego Sarmento, banhado em lagrimas, o reteve pela batina, gritando:—«Oh, collega, que é a perdição da religião»! Desde então Natario e Silverio não fallavam—com desgosto de Silverio, um bonacheirão, d'uma obesidade hydropica, que, segundo diziam as suas confessadas, «era todo affeição e perdão». Mas Natario, sêcco e pequeno, tinha tenacidade no rancor. Quando o snr. chantre Valladares começou a governar o bispado, chamou-os, e, depois de lhes lembrar com eloquencia a necessidade «de manter a paz na Igreja», de lhes recordar o exemplo tocante de Castor e Pollux, empurrou Natario com uma brandura grave para os braços do padre Silverio—que o teve um momento sepultado na vastidão do peito e do estomago, murmurando todo commovido:

—Todos somos irmãos, todos somos irmãos!

Mas Natario, cuja natureza dura e grosseira nunca perdia, como o papelão, as dobras que tomava, conservou com o padre Silverio um tom amuado: na Sé ou na rua, resvalando junto d'elle com um geito brusco do pescoço, rosnava apenas: Senhor padre Silverio, ás ordens!

Havia porém duas semanas, uma tarde de chuva Natario fizera repentinamente uma visita ao padre [260] Silverio—sob pretexto que «o pilhàra alli uma pancada d'agua, e que se vinha recolher um instante».

—E tambem, acrescentou, para lhe pedir a sua receita para a dôr d'ouvidos, que uma das minhas sobrinhas, coitada, está como doida, collega!

O bom Silverio, esquecendo decerto que ainda n'essa manhã vira as duas sobrinhas de Natario sãs e satisfeitas como dois pardaes, apressou-se a escrever a receita, todo feliz de utilisar os seus queridos estudos de medicina caseira; e murmurava, banhado de riso:

—Ora que alegria, collega, vêl-o aqui de novo n'esta sua casa!

A reconciliação foi tão publica—que o cunhado do senhor barão de Via-Clara, bacharel de grandes dotes poeticos, lhe dedicou uma d'aquellas satyras que elle intitulava Ferrões, que iam manuscriptas de casa em casa, muito saboreadas e muito temidas; e chamára a composição, tendo presente decerto a figura dos dois sacerdotes: Famosa reconciliação do Macaco e da Baleia! Era com effeito frequente, agora, vêr a pequena figura de Natario gesticulando e saltitando ao lado do vulto enorme e pachorrento do padre Silverio.

Uma manhã mesmo os empregados da administração (que era então no largo da Sé) gozaram muito, observando da sacada os dois padres que passeavam no terraço, ao tepido sol de maio. O senhor administrador,—que passáva as horas da repartição [261] namorando com um binoculo, por traz da vidraça do seu gabinete, a esposa do Telles alfaiate—começára subitamente a dar gargalhadas á janella: o escrivão Borges correu logo, de penna na mão, á varanda, a vêr de que ria sua senhoria, e, muito divertido, a fungar, chamou á pressa o Arthur Couceiro que estava copiando, para estudar á guitarra, uma canção da Grinalda: o amanuense Pires, severo e digno, aproximou-se, carregando para a orelha o seu barretinho de sêda, com horror ás correntes d'ar; e em grupo, d'olho arregalado, observavam os dois padres, que tinham parado á esquina da igreja. Natario parecia excitado: procurava decerto persuadir, abalar o padre Silverio; e em bicos de pés, plantado diante d'elle, agitava phreneticamente as mãos muito magras. Depois, subitamente, apoderou-se-lhe do braço, arrastou-o ao comprido do terraço lageado: ao fundo parou, recuou, fez um gesto largo e desolado, como attestando a perdição possivel d'elle, da Sé ao lado, da cidade, do universo em redor; o bom Silverio, com os olhos muito abertos, parecia apavorado. E recomeçaram a passear. Mas Natario exaltava-se: dava recuões bruscos, atirava estocadas com um longo dedo ao vasto estomago de Silverio, batia patadas furiosas nas lages polidas; e de repente, de braços pendentes, mostrava-se acabrunhado. Então o bom Silverio fallou um momento com a mão espalmada sobre o peito; immediatamente, a face biliosa de Natario illuminou-se; pulou, bateu no hombro do collega palmadinhas [262] de muito jubilo,—e os dois sacerdotes entraram na Sé, chegados e rindo baixinho.

—Que patuscos! disse o escrivão Borges, que detestava sotainas.

—Aquillo tudo é a respeito do jornal, disse Arthur Couceiro, vindo retomar o seu trabalho lyrico. O Natario não socega emquanto não souber quem escreveu o Communicado; disse-o elle em casa da S. Joanneira... E a coisa pelo Silverio vai bem, que é o confessor da mulher do Godinho.

—Corja! rosnou o Borges com nojo. E continuou pachorrentamente o officio que compunha, remettendo para Alcobaça um preso—que ao fundo da saleta, entre dois soldados, esperava sobre um banco, prostrado e embrutecido, com uma face de fome e as mãos em ferros.


D'ahi a dias tinha havido na Sé o Officio de corpo presente pelo rico proprietario Moraes, que morrera d'um aneurisma, e a quem sua esposa (em penitencia decerto dos desgostos que lhe dera com a sua affeição desordenada por tenentes d'infanteria) estava fazendo, como se disse, «exequias de pessoa real».—Amaro desvestira-se, e na sacristia, á luz d'um velho candieiro de latão, escrevia assentos atrazados, quando a porta de carvalho rangeu, e a voz agitada de Natario disse:

—Ó Amaro, vossê está ahi? [263]

—Que temos?

O padre Natario fechou a porta, e atirando os braços para o ar:

—Grande novidade, é o escrevente!

—Que escrevente?

—O João Eduardo! É elle! É o liberal! Foi elle que escreveu o Communicado!

—Que me diz vossê!?—fez Amaro attonito.

—Tenho provas, meu amigo! Vi o original, escripto pela letra d'elle. O que se chama vêr! Cinco tiras de papel!

Amaro, com os olhos esgazeados, fitava Natario.

—Custou! exclamou Natario. Custou, mas soube-se tudo! Cinco tiras de papel! E quer escrever outro! O senhor João Eduardo! O nosso rico amigo senhor João Eduardo!

—Vossê está certo d'isso?

—Se estou certo!... Estou a dizer-lhe que vi, homem!

—E como soube vossê, Natario?

Natario dobrou-se; e com a cabeça enterrada nos hombros, arrastando as palavras:

—Ah, collega, lá isso... Os comos e os porquês... Vossê comprehende... Sigillus magnus!

E com uma voz aguda de triumpho, a largos passos pela sacristia:

—Mas ainda isto não é nada! O senhor Eduardo que nós viamos alli na casa da S. Joanneira, tão bom mocinho, é um patife antigo! É o intimo do Agostinho, o bandido da Voz do Districto! Está mettido na [264] redacção até altas horas da noite... Uma orgia, vinhaça, mulheres... E gaba-se de ser atheu... Ha seis annos que se não confessa... Chama-nos a canalha canonica... É republicano... Uma fera, meu caro senhor, uma fera!

Amaro, escutando Natario, arrumava atarantadamente, com as mãos tremulas, papeis no gavetão da escrivaninha.

—E agora?... perguntou.

—Agora? exclamou Natario. Agora é esmagal-o!

Amaro fechou o gavetão, e muito nervoso, passando o lenço pelos labios seccos:

—Uma assim, uma assim! E a pobre rapariga, coitada... Casar agora com um homem d'esses... Um perdido!

Os dois padres, então, olharam-se fixamente. No silencio, o velho relogio da sacristia punha o seu tic-tac plangente. Natario tirou da algibeira dos calções a caixa do rapé, e com os olhos ainda fixos em Amaro, a pitada nos dedos, disse sorrindo friamente:

—Desmanchar-lhe o casamentosinho, hein?

—Vossê acha? perguntou sôffregamente Amaro.

—Caro collega, é uma questão de consciencia... Para mim era uma questão de dever! Não se póde deixar casar a pobre pequena com um bréjeiro, um pedreiro-livre, um atheu...

—Com effeito! com effeito! murmurava Amaro.

—Vem a calhar, hein? fez Natario; e sorveu com gozo a pitada.

Mas o sacristão entrou; eram as horas de fechar [265] a igreja; vinha perguntar se suas senhorias se demoravam.

—Um instante, snr. Domingos.

E, emquanto o sacristão corria os pesados ferrolhos da porta interior do pateo, os dois padres muito chegados fallavam baixo.

—Vossê vai ter com a S. Joanneira, dizia Natario. Não, escute, é melhor que lhe falle o Dias; o Dias é que deve fallar á S. Joanneira. Vamos pelo seguro. Vossê falle á pequena e diga-lhe simplesmente que o ponha fóra de casa!—E ao ouvido de Amaro:—Diga á rapariga que elle vive ahi de casa e pucarinho com uma desavergonhada!

—Homem! disse Amaro recuando, não sei se isso é verdade!

—Ha de ser. Elle é capaz de tudo. E depois é um meio de levar a pequena...

E foram descendo a igreja atraz do sacristão, que fazia tilintar o seu mólho de chaves, pigarreando grosso.

Nas capellas pendiam as armações de paninho negro agaloadas de prata; ao centro, entre quatro fortes tocheiras de grosso murrão, estava a eça, com o largo pano de velludilho cobrindo o caixão do Moraes, recahindo em pregas franjadas; á cabeceira tinha uma larga corôa de perpetuas; e aos pés pendia, d'um grande laço de fita escarlate, o seu habito de cavalleiro de Christo.

O padre Natario então parou; e tomando o braço d'Amaro com satisfação: [266]

—E depois, meu caro amigo, tenho outra preparada ao cavalheiro...

—O quê?

—Cortar-lhe os víveres!

—Cortar-lhe os víveres!?

—O pateta estava para ser empregado no governo civil, primeiro amanuense, hein? Pois vou-lhe desmanchar o arranjinho!... E o Nunes Ferral que é dos meus, homem de boas idéas, vai pôl-o fóra do cartorio... E que escreva então Communicados!

Amaro teve horror áquella intriga rancorosa:

—Deus me perdôe, Natario, mas isso é perder o rapaz...

—Emquanto o não vir por essas ruas a pedir um bocado de pão, não o largo, padre Amaro, não o largo!

—Oh, Natario! oh, collega! Isso é de pouca caridade... Isso não é de christão... E então aqui que Deus está a ouvil-o...

—Não lhe dê isso cuidado, meu caro amigo... Deus serve-se assim, não é a resmungar Padre-nossos. Para impíos não ha caridade! A inquisição atacava-os pelo fogo, não me parece mau atacal-os pela fome. Tudo é permittido a quem serve uma causa santa... Que se não mettesse commigo!

Iam a sahir; mas Natario deitou um olhar para o caixão do morto, e apontando com o guarda-chuva:

—Quem está alli?

—O Moraes, disse Amaro.

—O gordo, picado das bexigas? [267]

—Sim.

—Boa bêsta!

E depois d'um silencio:

—Foram os Officios do Moraes... Eu nem dei por isso, occupado cá na minha campanha... E a viuva fica rica. É generosa, é presenteadora... Quem a confessa é o Silverio, hein? Tem as melhores pechinchas de Leiria, aquelle elephante!

Sahíram. A botica do Carlos estava fechada, o céo muito escuro.

No largo, Natario parou:

—Resumindo: o Dias falla á S. Joanneira, e vossê falla á pequena. Eu por mim me entenderei com a gente do governo civil e com o Nunes Ferral. Encarreguem-se vossês do casamento, que eu me encarrego do emprego!—E batendo no hombro do parocho jovialmente:—É o que se póde dizer atacal-o pelo coração e pelo estomago! E adeusinho, que as pequenas estão á espera para a ceia! Coitadita, a Rosa tem estado com um defluxo!... É fraquita, aquella rapariga, dá-me muito cuidado... Que eu em a vendo murcha até perco logo o somno. Que quer vossê? Quando se tem bom coração...—Até ámanhã, Amaro.

—Até ámanhã, Natario.

E os dois padres separaram-se, quando davam nove horas na Sé. [268]


Amaro entrou em casa ainda um pouco tremulo, mas muito decidido, muito feliz: tinha um dever delicioso a cumprir! E dizia alto, com passos graves pela casa, para se compenetrar bem d'essa responsabilidade estimada:

—É do meu dever! É do meu dever!

Como christão, como parocho, como amigo da S. Joanneira o seu dever era procurar Amelia, e, com simplicidade, sem paixão interessada, contar-lhe que fôra João Eduardo, o seu noivo, que escrevera o Communicado.

Foi elle! Diffamou os íntimos da casa, sacerdotes de sciencia e de posição; desacreditou-a a ella; passa as noites em deboche na possilga do Agostinho; insulta o clero, baixamente; gaba-se de irreligião; ha seis annos que se não confessa! Como diz o collega Natario, é uma fera! Pobre menina! Não, não podia casar com um homem que lhe impediria a vida perfeita, lhe achincalharia as boas crenças! Não a deixaria rezar, nem jejuar, nem procurar no confessor a direcção salutar, e, como diz o santo padre Chrysostomo, «amadureceria a sua alma para o inferno»! Elle não era seu pai, nem seu tutor; mas era parocho, era pastor:—e se a não subtrahisse áquelle destino heretico pelos seus conselhos graves, pela influencia da mãi e das amigas,—seria [269] como aquelle que tem a guarda d'um rebanho n'uma herdade, e abre indignamente a cancella ao lobo! Não, a Ameliasinha não havia de casar com o atheu!

E o seu coração então batia forte sob a effusão d'aquella esperança. Não, o outro não a possuiria! Quando viesse a apoderar-se legalmente d'aquella cinta, d'aquelles peitos, d'aquelles olhos, d'aquella Ameliasinha,—elle, parocho, lá estava para lhe dizer alto: Para traz, seu canalha! isto aqui é de Deus!

E tomaria então bem cuidado em guiar a pequena á salvação! Agora o Communicado estava esquecido, o senhor chantre tranquillisado: d'ahi a dias poderia voltar sem susto á rua da Misericordia, recomeçar os deliciosos serões—apoderar-se de novo d'aquella alma, formal-a para o paraiso...

E aquillo, Jesus! não era uma intriga para a arrancar ao noivo: os seus motivos (e dizia-o alto, para se convencer melhor) eram muito rectos, muito puros: aquillo era um trabalho santo para a arrancar ao inferno: elle não a queria para si, queria-a para Deus!... Casualmente, sim, os seus interesses de amante coincidiam com os seus deveres de sacerdote. Mas se ella fosse vesga e feia e tola, elle iria igualmente à rua da Misericordia, em serviço do céo, desmascarar o snr. João Eduardo, diffamador e atheu!

E, socegado por esta argumentação, deitou-se tranquillamente.

Mas toda a noite sonhou com Amelia. Tinha fugido com ella: e ia-a levando por uma estrada que [270] conduzia ao céo! O diabo perseguia-o; elle via-o, com as feições de João Eduardo, soprando e rasgando com os cornos os delicados seios das nuvens. E elle escondia Amelia no seu capote de padre, devorando-a por baixo de beijos! Mas a estrada do céo não findava.—«Onde é a porta do paraiso?» perguntava elle a anjos de cabelleiras d'ouro que passavam, n'um dôce rumor de azas, levando almas nos braços. E todos lhe respondiam:—«Na rua da Misericordia, na rua da Misericordia numero nove!» Amaro sentia-se perdido: um vasto ether côr de leite, penetravel e macio como uma pennugem d'ave, envolvia-o, e elle procurava debalde uma taboleta de hospedaria! Por vezes resvalava junto d'elle um globo reluzente d'onde sahia o rumor d'uma creação; ou um esquadrão d'archanjos, com couraças de diamantes, erguendo alto espadas de fogo, galopavam n'um rhythmo nobre...

Amelia tinha fome, tinha frio. «Paciencia, paciencia, meu amor!» dizia-lhe elle. Caminhando, vieram a encontrar uma figura branca, que tinha na mão uma palma verde. «Onde está Deus, nosso pai?» perguntou-lhe Amaro, com Amelia conchegada ao peito. A figura disse:—«Eu fui um confessor, e sou um santo: os seculos passam, e immutavelmente, sempiternamente sustento na mão esta palma e banha-me um extase igual! Nenhuma tinta modifica esta luz para sempre branca; nenhuma sensação sacode o meu sêr para sempre immaculado; e immobilisado na bemaventurança, sinto a monotonia do [271] céo pesar-me como uma capa de bronze. Oh! pudesse eu caminhar a passos largos nas torpezas differentes da terra—ou bracejar, sob as variedades da dôr, nas chammas do purgatorio!»

Amaro murmurou: «Bem fazemos nós em peccar!»—Mas Amelia desfallecia fatigada. «Durmamos, meu amor!» E, deitados, viam estrellas fluctuando n'uma poeirada como o joio sacudido vivamente do crivo. Então nuvens começaram a dispôr-se em torno d'elles, em pregas de cortinados, dando um perfume de sachets; Amaro pousou a sua mão sobre o peito d'Amelia: um enleio muito dôce enervava-os: enlaçaram-se, os seus labios pegavam-se humidos e quentes:—«Oh, Ameliasinha!» murmurava elle.—«Amo-te, Amaro, amo-te!» suspirava ella.—Mas de repente as nuvens afastaram-se como os cortinados d'um leito; e Amaro viu diante o diabo que os alcançara, e que, com as garras na cinta, esgaçava a boca n'uma risada muda. Com elle estava outro personagem: era velho como a substancia; nos anneis dos seus cabellos vegetavam florestas; a sua pupilla tinha a vastidão azul d'um oceano; e nos dedos abertos, com que cofiava a barba infindavel, caminhavam, como em estradas, filas de raças humanas.—«Aqui estão os dois sujeitos», dizia-lhe o diabo retorcendo a cauda.—E por traz Amaro via agglomerarem-se legiões de santos e de santas. Reconheceu S. Sebastião com as suas settas cravadas; Santa Cecilia trazendo na mão o seu orgão; por entre elles sentia balarem os rebanhos de S. João; e no meio [272] erguia-se o bom gigante S. Christovão apoiado ao seu pinheiro. Espreitavam, cochichavam! Amaro não se podia desenlaçar de Amelia, que chorava muito baixo; os seus corpos estavam sobrenaturalmente collados; e Amaro, afflicto, via que as saias d'ella levantadas descobriam os seus joelhos brancos.—«Aqui estão os dois sujeitos», dizia o diabo ao velho personagem, «e repare o meu prezado amigo, porque todos aqui somos apreciadores, que a pequena tem bonitas pernas!» Santos vetustos alçaram-se sôfregamente em bicos de pés, estendendo pescoços onde se viam cicatrizes de martyrios: e as onze mil virgens bateram o vôo como pombas espavoridas! Então o personagem, esfregando as mãos d'onde se esfarelavam universos, disse grave: «Fico inteirado, meu caro amigo, fico inteirado! Com que, senhor parocho, vai-se á rua da Misericordia, arruina-se a felicidade do snr. João Eduardo (um cavalheiro), arranca-se a Ameliasinha á mamã, e vem-se saciar concupiscencias reprimidas a um cantinho da Eternidade? Eu estou velho—está rouca esta voz que outr'ora tão sabiamente discursava pelos valles. Mas pensa que me assombra o senhor conde de Ribamar, seu protector, apesar de ser um pilar da Igreja e uma columna da Ordem? Pharaó era um grande rei—e eu afoguei-o, e os seus principes captivos, os seus thesouros, os seus carros de guerra, e as manadas dos seus escravos! Eu cá sou assim! E se os senhores ecclesiasticos continuarem a escandalisar Leiria—eu ainda sei queimar uma cidade como um [273] papel inutil, e ainda me resta agua para diluvios!» E voltando-se para dois anjos armados de espadas e lanças, o personagem bradou: «Chumbem uma grilheta aos pés do padre, e levem-no ao abysmo numero sete!» E o diabo gania: «Ahi estão as consequencias, senhor padre Amaro!» Elle sentiu-se arrebatado de sobre o seio d'Amelia por mãos de braza; e ia luctar, bradar contra o juiz que o julgava—quando um sol prodigioso que vinha nascendo do Oriente bateu no rosto do personagem, e Amaro, com um grito, reconheceu o Padre Eterno!

Acordou banhado em suor. Um raio de sol entrava pela janella.


N'essa noite João Eduardo, indo da Praça para casa da S. Joanneira, ficou assombrado, ao vêr apparecer á outra boca da rua, do lado da Sé, o Santissimo em procissão.

E vinha para casa das senhoras! Por entre as velhas de mantéo pela cabeça, as tochas faziam destacar opas de paninho escarlate; sob o pallio os dourados da estola do parocho reluziam; uma campainha tocava adiante, ás vidraças appareciam luzes;—e na noite escura o sino da Sé repicava, sem descontinuar.

João Eduardo correu aterrado—e soube logo que era a extrema-unção á entrevada.

Tinham posto na escada um candieiro de petroleo [274] sobre uma cadeira. Os serventes encostaram á parede da rua os varaes do pallio, e o parocho entrou. João Eduardo, muito nervoso, subiu tambem: ia pensando que a morte da entrevada, o luto retardariam o seu casamento; contrariava-o a presença do parocho e a influencia que elle adquiria n'aquelle momento; e foi quasi quezilado que perguntou á Ruça na saleta:

—Então como foi isto?

—Foi a pobre de Christo que esta tarde começou a esmorecer, o senhor doutor veio, diz que estava a acabar, e a senhora mandou pelos sacramentos.

João Eduardo, então, julgou delicado ir assistir «á ceremonia».

O quarto da velha era junto á cozinha, e tinha n'aquelle momento uma solemnidade lugubre.

Sobre uma mesa coberta de toalha de folhos, estava um prato com cinco bolinhas de algodão entre duas velas de cera. A cabeça da entrevada, toda branca, a sua face côr de cera mal se distinguiam do linho do travesseiro; tinha os olhos estupidamente dilatados; e ia apanhando incessantemente com um gesto lento a dobra do lençol bordado.

A S. Joanneira e Amelia rezavam ajoelhadas á beira da cama: a snr.a D. Maria da Assumpção (que casualmente entrára, ao voltar da fazenda) ficára á porta do quarto aterrada, agachada sobre os calcanhares, murmurando Salve-Rainhas. João Eduardo, sem ruido, dobrou o joelho junto d'ella. [275]

O padre Amaro, curvado quasi ao ouvido da entrevada, exhortava-a a que se abandonasse á Misericordia divina; mas, vendo que ella não comprehendia, ajoelhou, recitou rapidamente o Misereatur; e no silencio, a sua voz erguendo-se nas syllabas latinas mais agudas, dava uma sensação de enterro que enternecia, fazia soluçar as duas senhoras. Depois ergueu-se, molhou o dedo nos santos oleos: murmurando as expressões penitentes do ritual ungiu os olhos, o peito, a boca, as mãos—que ha dez annos só se moviam para chegar a escarradeira, e as plantas dos pés que ha dez annos só se applicavam a buscar o calor da botija. E depois de queimar as bolinhas de algodão humidas de oleo, ajoelhou-se, ficou immovel, com os olhos postos no Breviario.

João Eduardo voltou em pontas de pés á sala, sentou-se no mocho do piano: agora decerto, durante quatro ou cinco semanas. Amelia não tornaria a tocar... E uma melancolia amolleceu-o, vendo no dôce progresso do seu amor aquella brusca interrupção da morte e dos seus ceremoniaes.

A snr.a D. Maria entrou então, toda transtornada d'aquella scena—e seguida d'Amelia que trazia os olhos muito vermelhos.

—Ah! ainda bem que aqui está, João Eduardo! disse logo a velha. Que quero que me faça um favor, que é acompanhar-me a casa... Estou toda a tremer... Estava desprevenida, e com perdão de Deus seja dito, não posso ver gente na agonia... Que ella, coitadinha, vai-se como um passarinho... E peccados [276] não os tem... Olhe, vamos pela Praça que é mais perto. E desculpe... Tu, filha, dispensa, mas não posso ficar... É que me dava a dôr... Ai, que desgosto!... Que para ella até é melhor... Pois olhem, sinto-me a desfallecer...

Foi mesmo necessario que Amelia a levasse a baixo, ao quarto da S. Joanneira, a reconfortal-a caridosamente com um calix de geropiga.

—Ameliasinha, disse então João Eduardo, se eu sou cá necessario para alguma coisa...

—Não, obrigada. Ella está por instantes, coitadinha.

—Não te esqueças, filha, recommendou descendo a snr.a D. Maria da Assumpção, põe-lhe as duas velas bentas á cabeceira... Allivia muito na agonia... E se tiver muitos arrancos, põe outras duas apagadas, em cruz... Boas noites... Ai, que nem me sinto!

Á porta, mal viu o pallio, os homens com as tochas, apoderou-se do braço de João Eduardo, collou-se toda a elle com terror—um pouco tambem, com o accesso de ternura que lhe dava sempre a geropiga.


Amaro promettera voltar mais tarde, para «as acompanhar, como amigo, n'aquelle transe». E o conego (que chegára, quando a procissão com o pallio dobrava a esquina para o lado da Sé), informado d'esta delicadeza do senhor parocho, declarou logo [277] que visto que o collega Amaro vinha fazer a noitada, elle ia descansar o corpo porque, Deus bem o sabia, aquellas commoções arrazavam-lhe a saude.

—E a senhora não havia de querer que eu apanhasse alguma e me visse nos mesmos assados...

—Credo, senhor conego! exclamou a S. Joanneira, nem diga isso!...—E começou a choramingar, muito abalada.

—Pois então boas noites, disse o conego, e nada de affligir. Olhe, a pobre creatura, alegria não a tinha: e como não tem peccados não lhe importa achar-se na presença de Deus. Tudo bem considerado, senhora, é uma pechincha! E adeusinho, que me não estou a sentir bem...

Tambem a S. Joanneira não se sentia bem. O choque, logo depois de jantar, dera-lhe ameaças de enxaqueca:—e quando Amaro voltou, ás onze, Amelia que fôra abrir a porta, disse-lhe, ao subir á sala de jantar:

—O senhor parocho desculpe... A mamã veio-lhe a enxaqueca, coitada... Estava que nem via... Deitou-se, pôz agua sedativa e adormeceu...

—Ah! Deixal-a dormir!

Entraram no quarto da entrevada. Tinha a cabeça virada para a parede; dos seus beiços abertos sahia um gemido muito debil e continuo. Sobre a mesa agora, uma grossa vela benta, de murrão negro, erguia uma luz triste; e ao canto, transida de medo, a Ruça, segundo as recommendações da S. Joanneira, ia rezando a corôa. [278]

—O senhor doutor, disse Amelia baixo, diz que morre sem o sentir... Diz que ha de gemer, gemer, e de repente acabar como um passarinho...

—Seja feita a vontade de Deus, murmurou gravemente o padre Amaro.

Voltaram á sala de jantar. Toda a casa estava silenciosa: fóra ventava forte. Havia muitas semanas que não se encontravam assim sós. Muito embaraçado, Amaro aproximou-se da janella: Amelia encostou-se ao aparador.

—Vamos ter uma noite d'agua, disse o parocho.

—E está frio, disse ella, encolhendo-se no chale. Eu tenho estado passada de medo...

—Nunca viu morrer ninguem?

—Nunca.

Calaram-se—elle immovel ao pé da janella, ella encostada ao aparador, de olhos baixos.

—Pois está frio, disse Amaro, com a voz alterada da perturbação que lhe ia dando a presença d'ella áquella hora da noite.

—Na cozinha está a brazeira accêsa, disse Amelia. É melhor irmos para lá.

—É melhor.

Foram. Amelia levou o candieiro de latão: e Amaro, indo remexer com as tenazes o brazido vermelho, disse:

—Ha que tempo que eu não entro aqui na cozinha!... Ainda tem os vasos com os raminhos fóra da janella? [279]

—Ainda, e um craveiro...

Sentaram-se em cadeirinhas baixas, ao lado da brazeira.—Amelia, inclinada para o lume, sentia os olhos do padre Amaro devora-la silenciosamente. Elle ia fallar-lhe, decerto! Tinha as mãos a tremer; não ousava mover-se, erguer as palpebras, com medo que lhe rompessem as lagrimas; mas anciava pelas suas palavras, ou amargas ou dôces...

Ellas vieram emfim, muito graves.

—Menina Amelia, disse, eu não esperava poder assim fallar-lhe a sós. Mas as coisas arranjaram-se... É decerto a vontade de Nosso Senhor! E depois, como as suas maneiras mudaram tanto...

Ella voltou-se bruscamente, toda escarlate, o beicinho tremulo:

—Mas bem sabe porquê! exclamou quasi chorando.

—Sei. Se não fosse aquelle infame Communicado, e as calumnias... nada se tinha passado, e a nossa amizade seria a mesma, e tudo iria bem... É justamente a esse respeito que eu lhe quero fallar.

Chegou a cadeira mais para junto d'ella, e muito suave, muito tranquillo:

—Lembra-se d'esse artigo em que todos os amigos da casa eram insultados? em que eu era arrastado pela rua da amargura? em que a menina mesma, a sua honra era offendida?... Lembra-se, hein? Sabe quem o escreveu?

—Quem? perguntou Amelia toda surprehendida.

—O snr. João Eduardo! disse o parocho muito [280] tranquillamente, cruzando os braços diante d'ella.

—Não póde ser!

Tinha-se erguido. Amaro puxou-lhe devagarinho pelas saias para a fazer sentar; e a sua voz continuou paciente e suave:

—Ouça. Sente-se. Foi elle que o escreveu. Soube hontem tudo. O Natario viu o original escripto pela letra d'elle. Foi elle que descobriu. Por meios dignos decerto... e porque era a vontade de Deus que a verdade apparecesse. Agora escute. A menina não conhece esse homem.—Então, baixo, contou-lhe o que sabia de João Eduardo, por Natario; as suas noitadas com o Agostinho, as suas injurias contra os padres, a sua irreligião...

—Pergunte-lhe se elle se confessa ha seis annos, e peça-lhe os bilhetes da confissão!

Ella murmurava, com as mãos cahidas no regaço:

—Jesus... Jesus!...

—Eu então entendi que como intimo da casa, como parocho, como christão, como seu amigo, menina Amelia... porque acredite que lhe quero... emfim, entendi que era o meu dever avisal-a! Se eu fosse seu irmão, dizia-lhe simplesmente: «Amelia, esse homem fóra de casa!» Não o sou, infelizmente. Mas venho, com dedicação d'alma, dizer-lhe: «O homem com quem quer casar surprehendeu a sua boa fé e de sua mamã; vem aqui, sim senhor, com apparencias de bom moço, e no fundo é...»

Ergueu-se, como ferido d'uma indignação irreprimivel: [281]

—Menina Amelia, é o homem que escreveu esse Communicado! que fez ir o pobre Brito para a serra de Alcobaça! que me chamou a mim seductor! que chamou devasso ao senhor conego Dias! Devasso! Que lançou veneno nas relações de sua mamã com o conego! e que a accusou á menina, em bom portuguez, de se deixar seduzir! Diga, quer casar com esse homem?

Ella não respondeu, com os olhos cravados no lume, duas lagrimas mudas sobre as faces.

Amaro deu passos irritados pela cozinha; e voltando ao pé d'ella, com a voz abrandada, gestos muito amigos:

—Mas supponhamos que não era elle o auctor do Communicado, que não tinha insultado em letra redonda a sua mamã, o senhor conego, os seus amigos: resta ainda a sua impiedade! Veja que destino o seu se casasse com elle! Ou teria de condescender com as opiniões do homem, abandonar as suas devoções, romper com os amigos de sua mãi, não pôr os pés na igreja, dar escandalo a toda a gente honesta, ou teria de se pôr em opposição com elle, e a sua casa seria um inferno! Por tudo uma questão! Por jejuar á sexta-feira, por ir á exposição do Santíssimo, por cumprir o domingo... Se se quizesse confessar, que desavenças! Um horror! E sujeitar-se a ouvil-o escarnecer os mysterios da fé! Ainda me lembro, na primeira noite que aqui passei, com que desacato elle fallou da santa da Arregassa!... E ainda me lembro uma noite que o padre Natario [282] aqui fallava dos soffrimentos do nosso santo padre Pio IX, que seria preso, se os liberaes entrassem em Roma... Como elle tinha risinhos de escarneo, como disse que eram exagerações!... Como se não fosse perfeitamente certo que por vontade dos liberaes veriamos o chefe da Igreja, o vigario de Christo, dormir n'um calabouço em cima d'umas poucas de palhas! São as opiniões d'elle, que elle apregôa por toda a parte! O padre Natario diz que elle e o Agostinho estavam no café ao pé do Terreiro a dizer que o baptismo era um abuso, porque cada um devia escolher a religião que quizesse, e não ser forçado, de pequeno, a ser christão! Hein, que lhe parece? Como seu amigo lh'o digo... Para bem de sua alma antes a queria vêr morta do que ligada a esse homem! Case com elle, e perde para sempre a graça de Deus!

Amelia levou as mãos ás fontes, e deixando-se cahir para as costas da cadeira, murmurou, muito desgraçada:

—Oh, meu Deus, meu Deus!

Amaro então sentou-se ao pé d'ella, tocando-lhe quasi o vestido com o joelho, pondo na voz uma bondade paternal:

—E depois, minha filha, pensa que um homem assim póde ter bom coração, apreciar a sua virtude, querer-lhe como um marido christão? Quem não tem religião não tem moral. Quem não crê não ama, diz um dos nossos santos padres. Depois de lhe passar o fogacho da paixão, começaria a ser duro comsigo, [283] mal humorado, voltaria a frequentar o Agostinho e as mulheres da vida, e maltrata-la-hia talvez... E que susto constante para si! Quem não respeita a religião não tem escrupulos: mente, rouba, calumnia... Veja o Communicado. Vir aqui apertar a mão ao senhor conego, e ir para o jornal chamar-lhe devasso! Que remorsos não sentiria a menina, mais tarde, á hora da morte! É muito bom emquanto se tem saude e se é nova; mas quando chegasse a sua ultima hora, quando se achasse, como aquella pobre creatura que está alli, nos ultimos arrancos, que terror não sentiria de ter de apparecer diante de Jesus Christo, depois de ter vivido em peccado ao lado d'esse homem! Quem sabe se elle não recusaria que lhe dessem a extrema-unção! Morrer sem sacramentos, morrer como um animal!...

—Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus, senhor parocho! exclamou Amelia rompendo n'um chôro nervoso.

—Não chore, disse elle tomando-lhe suavemente a mão entre as suas, muito tremulas. Escute, abra-se commigo... Vá, esteja socegada, tudo se remedeia. Não ha banhos publicados... Diga-lhe que não quer casar, que sabe tudo, que o odeia...

Esfregava, apertava devagarinho a mão d'Amelia. E subitamente, com voz d'um ardor brusco:

—Não se importa com elle, não é verdade?

Ella respondeu muito baixo, com a cabeça cahida sobre o peito:

—Não. [284]

—Então, ahi tem! fez excitado. E diga-me, gosta d'outro?

Ella não respondeu, com o peito a arfar fortemente, os olhos dilatados para o lume.

—Gosta? diga, diga!

Passou-lhe o braço sobre o hombro, attrahindo-a dôcemente. Ella tinha as mãos abandonadas no regaço; sem se mover voltou devagar para elle os olhos resplandecentes sob uma nevoa de lagrimas, e entreabriu devagar os labios, pallida, toda desfallecida. Elle estendeu os beiços a tremer—e ficaram immoveis, collados n'um só beijo, muito longo, profundo, os dentes contra os dentes.

—Minha senhora! minha senhora! gritou de repente, n'um terror, a voz da Ruça, dentro.

Amaro ergueu-se d'um salto, correu ao quarto da entrevada. Amelia estava tão tremula, que precisou encostar-se á porta da cozinha um momento, com as pernas vergadas, a mão sobre o coração. Recuperou-se, desceu a acordar a mãe.

Quando entraram no quarto da idiota, Amaro ajoelhado, com a face quasi sobre o leito, rezava: as duas senhoras rojaram-se no chão; uma respiração accelerada sacudia o peito, as ilhargas da velha; e á medida que o arquejo se tornava mais rouco, o parocho precipitava as suas orações. Subitamente o som agonisante cessou: ergueram-se: a velha estava immovel, com os bugalhos dos olhos sahidos e baços. Expirára.

O padre Amaro trouxe logo as senhoras para a [285] sala;—e ahi a S. Joanneira, curada, pelo choque, da sua enxaqueca, desabafou, em accessos de chôro, recordando o tempo em que a pobre mana era nova, e que bonita era! e que bom casamento estivera para fazer com o morgado da Vigareira!...

—E o genio mais dado, senhor parocho! Uma santa! E quando a Amelia nasceu, e que eu estive tão mal, que não se tirou de ao pé de mim, noite e dia!... E alegre, não havia outra... Ai, Deus da minha alma, Deus da minha alma!

Amelia, encostada á vidraça na sombra da janella, olhava entorpecida a noite negra.

Bateram então á campainha. Amaro desceu, com uma vela. Era João Eduardo, que ao vêr o parocho áquella hora na casa,—ficou petrificado, junto da porta aberta; emfim balbuciou:

—Eu vinha saber se havia novidade...

—A pobre senhora expirou agora mesmo...

—Ah!

Os dois homens olharam-se um instante fixamente.

—Se eu sou preciso para alguma coisa... disse João Eduardo.

—Não, obrigado. As senhoras vão-se deitar.

João Eduardo fez-se pallido da coléra que lhe davam aquelles modos de dono da casa. Esteve ainda um momento, hesitando—mas vendo o parocho abrigar a luz, com a mão, contra o vento da rua:

—Bem, boa noite, disse.

—Boa noite. [286]

O padre Amaro subiu:—e depois de deixar as duas senhoras no quarto da S. Joanneira (porque, cheias de terror, queriam dormir juntas), voltou ao quarto da morta, despertou a vela sobre a mesa, accommodou-se n'uma cadeira, e começou a lêr o Breviario.

Mais tarde, quando toda a casa estava silenciosa, o parocho, sentindo o somno entorpecel-o, veio á sala de jantar; reconfortou-se com um calix de vinho do Porto que achára no aparador; e saboreava regaladamente o cigarro, quando ouviu na rua passos de botas fortes que iam, vinham, por baixo das janellas. Como a noite estava escura não pôde distinguir «o passeante».—Era João Eduardo que rondava a casa, furioso.



XIII



Ao outro dia cedo, a snr.a D. Josepha Dias que entrára, havia pouco, da missa, ficou muito surprehendida, ouvindo a criada que lavava as escadas dizer de baixo:

—Está aqui o senhor padre Amaro, snr.a D. Josepha!

O parocho ultimamente raras vezes vinha a casa do conego; e D. Josepha gritou logo lisonjeada e já curiosa:

—Que suba para aqui, não é de ceremonia! É como de familia. Que suba!

Estava na sala de jantar, arranjando n'uma travessa ladrilhos de marmelada, com um vestido de hareje preto esgaçado na ilharga e arqueado em redor dos tornozelos por uma crinoline d'um só arco; [288] trazia n'essa manhã oculos azues; e foi logo ao patamar, arrastando os seus medonhos chinelos d'ourêlo, e preparando, por debaixo do lenço preto repuxado sobre a testa, um ar agradavel para o senhor parocho.

—Ora ditosos olhos! exclamou. Eu entrei ha bocadinho, e já cá tenho a primeira missinha. Fui hoje á capella de Nossa Senhora do Rosario... Disse-a o padre Vicente. Ai! e que virtude que me fez hoje, senhor parocho! Sente-se. Ahi não, que lhe vem ar da porta... E então a pobre entrevada lá se foi... Conte lá, senhor parocho...

O parocho teve de descrever a agonia da entrevada, a dôr da S. Joanneira; como depois de morta a face da velha parecera remoçar; o que as senhoras tinham decidido a respeito da mortalha...

—Aqui para nós, D. Josepha, é um grande allivio para a S. Joanneira...—E de repente, puxando-se para a beira da cadeira, assentando as mãos nos joelhos:—E que me diz á do senhor João Eduardo? Já sabe? Foi elle que escreveu o artigo!

A velha exclamou, levando as mãos á cabeça:

—Ai! nem me falle n'isso, senhor parocho! Nem me falle n'isso, que até tenho estado doente!

—Ah, já sabe?

—E mais que sei, senhor parocho! O senhor padre Natario, devo-lhe esse favor, esteve aqui hontem e contou-me tudo! Ai, que maroto! Ai, que alma perdida!

—E sabe que é o intimo do Agostinho, que são [289] bebedeiras na redacção até de madrugada, que vai para o bilhar do Terreiro achincalhar a religião...

—Ai, por quem é, senhor parocho, nem me diga, nem me diga! Que hontem, quando o senhor padre Natario esteve ahi, até tive escrupulos d'ouvir tanto peccado... Que lhe devo esse favor, ao senhor padre Natario, logo que soube veio-me contar... É de muito delicado... E olhe, senhor parocho, a mim sempre me quiz parecer isso mesmo do homem. Eu nunca o disse, nunca o disse! Que lá isso, esta boquinha nunca se pôz em vidas alheias... Mas tinha cá dentro um palpite. Elle ia á missa, cumpria o jejum; mas eu cá tinha a desconfiança que aquillo era para enganar a S. Joanneira e a pequena. Agora se vê! Eu foi creatura que nunca me cahiu em graça! Nunca, senhor parocho!—E de repente, com os olhinhos luzidios d'uma alegria perversa:—E agora, já se sabe, o casamento desmancha-se?

O padre Amaro recostou-se na cadeira, e muito pausadamente:

—Elle, minha senhora, seria notorio que uma rapariga de bons principios fosse casar com um pedreiro-livre, que não se confessa ha seis annos!

—Credo, senhor parocho! antes vêl-a morta! É necessario dizer tudo á rapariga...

O padre Amaro interrompeu, chegando rapidamente a cadeira para ao pé d'ella:

—Pois foi justamente para isso que eu a vim procurar, minha senhora. Eu hontem já fallei com a pequena... Mas comprehende, no meio d'aquelle [290] desgosto, com a pobre senhora a expirar ao lado, não pude insistir muito. Emfim disse-lhe o que havia, aconselhei-a por bons modos, expuz-lhe que ia perder a sua alma, ter uma vida desgraçada, etc. Fiz o que pude, minha senhora, como amigo e como parocho. E como era o meu dever (ainda que me custou, realmente custou-me), lembrei-lhe que, como christã e como senhora, tinha obrigação de romper com o escrevente.

—E ella?

O padre Amaro fez uma visagem descontente:

—Não disse que sim nem que não. Pôz-se a fazer biquinho, a choramingar. É verdade que estava muito alterada com a morte em casa. Que a rapariga não morre por elle, isso é claro; mas quer casar, tem medo que a mãi morra, que se veja só... Emfim sabe o que são raparigas! Que as minhas palavras fizeram-lhe effeito, ficou muito indignada, etc... Mas emfim, eu pensei que o melhor era a senhora fallar-lhe. A senhora é a amiga da casa, é madrinha, conheceu-a de pequena... Estou certo que no seu testamento havia de lhe deixar uma boa lembrança... Tudo isto são considerações...

—Ai, fica por minha conta, senhor parocho! exclamou a velha; hei de lh'as cantar!...

—A rapariga o que precisa é quem a dirija. Aqui para nós, precisa quem a confesse! Ella confessa-se ao padre Silverio; mas, sem querer dizer mal, o padre Silverio, coitado, pouco vale. Muito caridoso, muita virtude; mas o que se chama geito [291] não tem. Para elle a confissão é a desobriga. Pergunta doutrina, depois faz o exame pelos mandamentos da lei de Deus... Veja a senhora!... Está claro que a rapariga não furta, nem mata, nem deseja a mulher do seu proximo! A confissão assim não lhe aproveita: o que ella precisa é um confessor têso, que lhe diga—para alli! e sem réplica. A rapariga é um espirito fraco; como a maior parte das mulheres não se sabe dirigir por si; necessita por isso um confessor que a governe com uma vara de ferro, a quem ella obedeça, a quem conte tudo, de quem tenha medo... É como deve ser um confessor.

—O senhor parocho é que lhe servia...

Amaro sorriu modestamente:

—Não digo que não. Havia de aconselhal-a bem; sou amigo da mãi, acho que ella é boa rapariga e digna da graça de Deus. Que eu, sempre que converso com ella, todos os conselhos que posso, em tudo, dou-lh'os... Mas a senhora comprehende, ha coisas em que se não póde estar a fallar na sala, com gente á volta... Só se está á vontade no confessionario. E é o que me falta, são as occasiões de lhe fallar só. Mas emfim eu não posso ir dizer-lhe: «a menina agora ha de se confessar commigo»! Eu n'isso sou muito escrupuloso...

—Mas digo-lh'o eu, senhor parocho! Ah, digo-lh'o eu!...

—Ora isso é que era um grande favor! Era um bem que fazia áquella alma! Porque se a rapariga me entrega a direcção da sua alma, então podemos [292] dizer que lhe acabaram as difficuldades, e temol-a no caminho da graça... E quando lhe vai fallar, D. Josepha?

D. Josepha, «como julgava peccado adiar», estava decidida a fallar-lhe essa mesma noite.

—Não me parece, D. Josepha. Hoje é noite de pezames... O escrevente naturalmente está lá...

—Credo, senhor parocho! Pois eu e as outras pequenas havemos de passar a noite debaixo das mesmas telhas com o hereje?

—Tem de ser. Emfim o rapaz por ora é considerado da familia... Além d'isso, D. Josepha, a senhora, a D. Maria e as Gansosinhos são pessoas da maior virtude... Mas nós não devemos ter orgulho da nossa virtude. Arriscamo-nos a perder-lhe todos os fructos. E é um acto de humildade, que agrada muito a Deus, o misturar-nos ás vezes com os maus; é como quando um grande fidalgo tem de estar lado a lado com um trabalhador d'enxada... É como se dissessemos: «eu sou-te superior em virtude, mas comparado com o que devia ser para entrar na gloria, quem sabe se não sou tão peccador como tu!...» E esta humilhação da alma é a melhor offerta que podemos fazer a Jesus.

D. Josepha escutava-o, babosa; e n'uma admiração:

—Ai, senhor parocho, que até dá virtude ouvil-o!

Amaro curvou-se:

—Deus ás vezes, na sua bondade, inspira-me [293] justas palavras... Pois minha senhora, eu não quero massar mais. Ficamos entendidos. A senhora falla á pequena ámanhã; e se, como é de crêr, ella consentir em escutar os meus conselhos, traz-m'a á Sé no sabbado, ás oito horas. E falle-lhe têso, D. Josepha!

—Deixe-a commigo, senhor parocho!... Então não quer provar da minha marmelada?

—Provarei, disse Amaro tomando um ladrilho em que cravou os dentes com dignidade.

—É dos marmelos da D. Maria. Sahiu-me melhor que a das Gangosinhos...

—Pois adeus, D. Josepha... Ah, é verdade, que diz o nosso conego d'este caso do escrevente?

—O mano?...

N'este momento a campainha em baixo repicou com furor.

—Ha de ser elle, disse logo D. Josepha. E vem zangado!

Vinha, com effeito, da fazenda—furioso com o caseiro, o regedor, o governo e a perversidade dos homens. Tinham-lhe roubado uma porção de cebolinho; e, abafado de cólera, alliviava-se repetindo com gozo o nome do Inimigo.

—Credo, mano, que até lhe fica mal!—exclamou D. Josepha tomada d'escrupulos.

—Ora mana, deixemos essas pieguices para a quaresma! Digo co'os diabos! e repito co'os diabos! Mas eu lá disse ao caseiro, que se sentir gente na fazenda, carregue a espingarda e faça fogo! [294]

—Ha uma falta de respeito pela propriedade... disse Amaro.

—Ha uma falta de respeito por tudo! exclamou o conego. Um cebolinho que dava saude só olhar para elle! Pois senhores, lá vai! Isto é o que eu chamo um sacrilegio!... Um desaforado sacrilegio!—acrescentou convictamente; porque o roubo do seu cebolinho, o cebolinho d'um conego, parecia-lhe um acto tão negro d'impiedade como se tivessem sido furtados os vasos santos da Sé.

—Falta de temor a Deus, falta de religião, observou D. Josepha.

—Qual falta de religião! replicou o conego exasperado. Falta de cabos de policia, é o que é!—E voltando-se para Amaro:—Hoje é o enterro da velha, hein? Inda mais essa! Vá, mana, mande-me lá dentro uma volta lavada e os sapatos de fivela!

O padre Amaro então, retomado pela sua preoccupação:

—Estavamos cá a fallar do caso do João Eduardo: o Communicado!

—Isso é outra maroteira que tal! fez logo o conego. Vejam essa, tambem! Que quadrilha vai pelo mundo, que quadrilha!—E ficou de braços cruzados, com os olhos arregalados, como contemplando uma legião de monstros, soltos pelo universo, e arremessando-se com impudencia contra as reputações, os principios da Igreja, a honra das familias e o cebolinho do clero.

Ao sahir, o padre Amaro renovou ainda as suas [295] recommendações a D. Josepha, que o acompanhára ao patamar:

—Então hoje, noite de pezames, não se faz nada. Ámanhã falla á rapariga, e lá para o fim da semana leva-m'a á Sé. Bem. E convença a rapariga, D. Josepha, trate de salvar aquella alma! Olhe que Deus tem os olhos em si. Falle-lhe têso, falle-lhe têso!... E o nosso conego que se entenda com a S. Joanneira.

—Póde ir descansado, senhor parocho. Sou madrinha, e, quer ella queira quer não, hei de pôl-a no caminho da salvação...

—Amen, disse o padre Amaro.

N'essa noite, com effeito, D. Josepha «não fez nada». Eram os pezames na rua da Misericordia. Estavam em baixo, na saleta, alumiada lugubremente por uma só vela com um abat-jour verde-escuro. A S. Joanneira e Amelia, de luto, occupavam tristemente o canapé ao centro; e em redor, nas fileiras de cadeiras apoiadas á parede, as amigas, cobertas de negro pesado, conservavam-se funebremente immoveis, de faces contristadas, n'um torpôr mudo: ás vezes duas vozes ciciavam, ou d'um canto, na sombra, sahia um suspiro: depois o Libaninho, ou Arthur Couceiro, ia em bicos de pés espevitar o murrão da véla: a snr.a D. Maria da Assumpção expectorava o seu catarrho com um som choroso: e no silencio ouviam tamancos bater o lagedo da rua, ou os quartos d'hora no relogio da Misericordia.

A intervallos a Ruça, toda de negro, entrava [296] com o taboleiro de dôces e copos de chasada; levantava-se então o abat-jour; e as velhas, que já iam cerrando as palpebras, sentindo a sala mais clara, levavam logo os lenços aos olhos, e, com ais, serviam-se de bolinhos da Encarnação.

João Eduardo lá estava, a um canto, ignorado, ao pé da Gansoso surda que dormia com a boca aberta: toda a noite o seu olhar procurara debalde o olhar d'Amelia, que não se movia, com o rosto sobre o peito, as mãos no regaço, torcendo e destorcendo o seu lenço de cambraiela. O padre Amaro e o conego Dias vieram ás nove horas: o parocho com passos graves foi dizer á S. Joanneira:

—Minha senhora, o golpe é grande. Mas consolemo-nos, pensando que sua excellentissima mana está a esta hora gozando a companhia de Jesus Christo.

Houve em redor uma murmuração de soluços; e como não restavam cadeiras, os dois ecclesiasticos sentaram-se aos dois cantos do canapé, tendo no meio a S. Joanneira e Amelia em lagrimas. Eram assim reconhecidos pessoas de familia; a snr.a D. Maria da Assumpção notou baixinho a D. Joaquina Gansoso:

—Ai, até dá gosto vêl-os assim todos quatro!

E até ás dez horas a noite de pezames continuou soturna e somnolenta, perturbada apenas pela tosse constante de João Eduardo que estava constipado, e que—na opinião da snr.a D. Josepha Dias que o disse a todos, depois—«tossia só para fazer [297] troça e para achincalhar o respeito aos mortos».


D'ahi a dois dias, ás oito horas da manhã, a snr.a D. Josepha Dias e Amelia entraram na Sé—depois de terem fallado no terraço á Amparo, mulher do boticario, que tinha uma criança com sarampo, e, apesar de não ser coisa de cuidado, «viera á cautela fazer uma promessa».

O dia estava ennevoado, a igreja tinha uma luz parda. Amelia, pallida sob a sua mantilha de renda, parou defronte do altar de Nossa Senhora das Dôres, deixou-se cahir de joelhos, e ficou immovel, com o rosto sobre o livro de missa. A snr.a D. Josepha Dias, com passos fôfos, depois de se ter prostrado diante da capella do Santíssimo e do altar-mór, foi empurrar devagarinho a porta da sacristia: o padre Amaro lá passeava, com os hombros vergados, as mãos atraz das costas:

—Então? perguntou logo, erguendo para D. Josepha a sua face muito barbeada, onde os olhos reluziam inquietos.

—Está alli, disse a velha baixinho, n'uma expressão de triumpho. Fui eu mesmo buscal-a! Ai, fallei-lhe têso, senhor parocho, não lh'as poupei! Agora é comsigo!

—Obrigado, obrigado, D. Josepha! disse o padre, apertando-lhe as mãos ambas com força. Deus ha de lh'o levar em conta. [298]

Olhou em redor, nervoso; apalpou-se para sentir o lenço, a carteira dos papeis; e, cerrando devagarinho a porta da sacristia, desceu á igreja. Amelia ainda estava ajoelhada, fazendo um vulto negro immovel contra o pilar branco.

—Pst, fez-lhe D. Josepha.

Ella ergueu-se devagar, muito escarlate, compondo tremulamente com as mãos as pregas da mantilha em roda do pescoço.

—Aqui lh'a deixo, senhor parocho, disse a velha. Vou á Amparo da botica, e venho depois por ella... Ora vai, filha, vai, Deus t'alumie essa alma!

E sahiu, com mesuras a todos os altares.

O Carlos da botica—que era inquilino do conego e um pouco ronceiro na renda—desbarretou-se com espalhafato apenas D. Josepha appareceu á porta, e conduziu-a logo acima, á sala de cortinas de cassa, onde a Amparo costurava á janella.

—Ai, não se prenda, snr. Carlos, dizia-lhe a velha. Não largue os seus afazeres. Eu deixei a afilhada na Sé, e venho aqui descansar um bocadinho.

—Então, se me dá licença... E como vai o nosso conego?

—Não tornou a ter a dôr. Mas tem soffrido de tonturas.

—Começos da primavera, disse o Carlos que retomára o seu ar magestoso, de pé no meio da sala, com os dedos nas aberturas do collete. Tambem eu me tenho sentido perturbado... Nós, as pessoas sanguíneas, soffremos sempre d'isto que se póde chamar [299] o renascimento da seiva... Ha uma abundancia d'humores no sangue, que, não sendo eliminados pelos canaes proprios, vão, por assim dizer, abrir caminho, aqui e além, pelo corpo, sob a fórma de furunculo, espinha, nascida, ás vezes em logares bem incommodos, e, ainda que em si insignificantes, acompanhados sempre, por assim dizer, d'um cortejo... Perdão, sinto o praticante a palrar... Se me dá licença... Respeitos ao nosso conego. Que use a magnesia de James!

D. Josepha então quiz vêr a menina com o sarampo. Mas não passou da porta do quarto, recommendando á pequena, que arregalava uns olhos de febre, muito abafada na roupa, «não se descuidasse das suas oraçõesinhas de manhã e á noite». Aconselhou á Amparo alguns remedios, que eram milagrosos no sarampo; mas se a promessa fôra feita com fé, a menina podia-se considerar curada... Ai, todos os dias dava graças a Deus de se não ter casado! Que filhos eram só para trabalho e canceiras; e com as quezilias que traziam e o tempo que tomavam, eram até causa d'uma mulher se descuidar das suas praticas e metter a alma no inferno...

—Tem razão, D. Josepha, disse a Amparo, é um castigo... E eu com cinco! Ás vezes fazem-me tão doida, que me sento aqui na cadeirinha, e ponho-me a chorar só commigo...

Tinham voltado para junto da janella, e gozaram muito, espreitando o senhor administrador do concelho, que, por traz da vidraça da repartição, namorava [300] de binoculo a do Telles alfaiate.—Aí, era um escandalo! Que nunca houvera em Leiria auctoridades assim! O secretario geral em um desafôro com a Novaes... Que se podia esperar de homens sem religião, educados em Lisboa, que, segundo D. Josepha, estava predestinada a parecer como Gomorrha pelo fogo do céo?—A Amparo cosia com a cabeça baixa, envergonhada talvez diante d'aquella indignação piedosa, dos desejos culpados que a roiam de vêr o Passeio Publico e de ouvir os cantores em S. Carlos.

Mas bem depressa a snr.a D. Josepha começou a fallar do escrevente. A Amparo não sabia nada; e a velha teve a satisfação de contar prolixamente, «tim-tim por tim-tim», a historia do Communicado, o desgosto na rua da Misericordia, e a campanha de Natario para descobrir o liberal. Alargou-se principalmente sobre o caracter de João Eduardo, a sua impiedade, as suas orgias... E, considerando um dever de christã aniquilar o atheu, deu mesmo a entender que alguns roubos, ultimamente commettidos em Leiria, eram «obra de João Eduardo».

A Amparo declarou-se «banzada». O casamento então, com a Ameliasinha...

—Isso pertence á historia, declarou com jubilo D. Josepha Dias. Vão pôl-o fóra de casa! E por muito feliz se deve o homem dar em não ir parar ao banco dos réos... Que a mim o deve, e á prudencia do mano e do senhor padre Amaro. Que havia motivos para o ferrar na cadeia! [301]

—Mas a pequena gostava d'elle, ao que parece.

D. Josepha indignou-se. Credo, a Amelia era uma rapariga de juízo, de muita virtude! Apenas conheceu os desafôros, foi a primeira a dizer que não, e que não! Ai! detestava-o...—E D. Josepha, baixando a voz em confidencia, contou «que era positivo que elle vivia com uma desgraçada para os lados do quartel».

—Disse-m'o o senhor padre Natario, affirmou. E aquillo é homem que da sua boca nunca sae senão a verdade pura... Foi muito delicado commigo, devo-lhe esse favor. Apenas soube, veio-m'o logo dizer a casa, pedir-me conselhos... Emfim, muito attencioso.

Mas o Carlos appareceu de novo. Tinha a botica desembaraçada um momento (que não o tinham deixado respirar toda a manhã!) e vinha fazer companhia ás senhoras.

—Então já sabe, snr. Carlos, exclamou logo D. Josepha, o caso do Communicado e do João Eduardo?

O pharmaceutico arregalou os seus olhos redondos. Que relação havia entre um artigo tão indigno e esse mancebo que lhe parecia honesto?

—Honesto!? ganiu a snr.a D. Josepha Dias. Foi elle que o escreveu, snr. Carlos!

E vendo o Carlos morder o beiço de surpreza, D. Josepha, enthusiasmada, repetiu a historia da «maroteira».

—Que lhe parece, snr. Carlos, que lhe parece? [302]

O pharmaceutico deu a sua opinião, n'uma voz vagarosa, sobrecarregada da auctoridade d'um vasto entendimento:

—N'esse caso digo, e todas as pessoas de bem o dirão commigo, é uma vergonha para Leiria. Eu já tinha observado, quando li o Communicado: a religião é a base da sociedade, e minal-a é, por assim dizer, querer aluir o edificio... É uma desgraça que haja na cidade d'esses sectarios do materialismo e da republica, que, como é sabido, querem destruir tudo o que existe: proclamam que os homens e as mulheres se devem unir com a promiscuidade de cães e cadellas... (Desculpem exprimir-me assim, mas a sciencia é a sciencia). Querem ter o direito de entrar em minha casa, levar-me as pratas e o suor do meu rosto; não admittem que haja auctoridades, e se os deixassem seriam capazes de cuspir na sagrada hostia...

D. Josepha encolheu-se com um gritinho, muito arripiada.

—E ousa esta seita fallar em liberdade! Eu tambem sou liberal... Que, francamente o digo, eu não sou fanatico... Nem pelo facto d'um homem pertencer ao sacerdocio, o julgo um santo, não... Por exemplo, sempre embirrei com o parocho Migueis... Era uma giboia! Desculpe-me a senhora, mas era uma giboia. Disse-lh'o na cara, porque a lei das rolhas já lá vai... Derramamos o nosso sangue nas trincheiras do Porto, justamente para não haver lei das rolhas... Disse-lh'o na cara: «v. s.a é uma giboia!» [303] Mas, emfim, quando um homem veste uma batina deve ser respeitado... E o Communicado, repito, é um vergonha para Leiria... E tambem lhe digo, com esses atheus, esses republicanos, não deve haver consideração!... Eu sou homem pacifico, aqui a Amparosinho conhece-me bem; pois se eu tivesse d'aviar uma receita para um republicano declarado, não tinha duvida, em logar de lhe dar uma d'essas composições beneficas que são o orgulho de nossa sciencia, de lhe mandar uma dóse d'acido prussico... Não, não direi que lhe mandasse acido prussico... mas se estivesse no banco dos jurados havia de lhe fazer cahir em cima todo o peso da lei!

E balançou-se um momento sobre a ponta das chinelas, lançando um grande gesto em redor, como se esperasse os applausos d'um conselho de districto ou d'uma municipalidade em sessão.

Mas na Sé bateram então devagar as onze; e D. Josepha embrulhou-se á pressa no seu mantelete para ir buscar a pequena, coitada, que havia d'estar farta d'esperar.

O Carlos acompanhou-a, desbarretando-se, e dizendo-lhe (como um mimo que remettia ao seu senhorio):

—Repita ao nosso conego quaes são as minhas opiniões... Que n'essa questão do Communicado e d'ataques ao clero, estou d'alma e coração com suas senhorias... Criado seu, minha senhora... O tempo vai-se a embrulhar.

Quando D. Josepha entrou na igreja, Amelia estava [304] ainda no confessionario. A velha tossiu alto, ajoelhou, e, com as mãos sobre a face, abysmou-se n'uma devoção á Senhora do Rosario. A igreja ficou n'uma immobilidade e n'um silencio. Depois D. Josepha, voltando-se para o confessionario, espreitou por entre os dedos; Amelia conservava-se immovel, com a mantilha muito puxada para o rosto, a roda do vestido negro espalhada em redor; e D. Josepha recahiu na sua reza. Uma chuva fina fustigava agora os vidros d'uma janella ao lado. Emfim houve no confessionario um rangido da madeira, um frou-frou de vestidos nas lages,—e D. Josepha, voltando-se, viu de pé diante d'ella Amelia com a face escarlate e o olhar reluzindo muito.

—Está ha muito tempo á espera, madrinha!

—Um bocadinho. Estás promptinha, hein?

Ergueu-se, persignou-se, e as duas senhoras sahiram da Sé. Ainda cahia uma chuva fina; mas o snr. Arthur Couceiro, que passava no largo com officios para o governo civil, foi leval-as á rua da Misericordia debaixo do seu guardachuva.



XIV



João Eduardo, á noitinha, ia sahir de casa para a rua da Misericordia, levando debaixo do braço um rolo de amostras de papel de parede para Amelia escolher, quando á porta encontrou a Ruça que ia puxar a campainha.

—Que é, Ruça?

—As senhoras foram passar a noite fóra de casa, e aqui está esta carta que manda a menina.

João Eduardo sentiu apertar-se-lhe o coração, e seguia com o olhar pasmado a Ruça, que descia a rua, batendo os tamancos. Foi ao pé do candieiro, defronte, abriu a carta:

«Snr. João Eduardo.


«O que estava decidido a respeito do nosso casamento era na persuasão que era v. s.a uma pessoa [306] de bem e que me poderia fazer feliz; mas como se sabe tudo, e que foi o senhor que escreveu o artigo do Districto, e calumniou os amigos da casa e me insultou a mim, e como os seus costumes não me dão garantia de felicidade na vida de casada, deve desde hoje considerar tudo acabado entre nós, pois não ha banhos publicados nem despezas feitas. E eu espero, bem como a mamã, que o senhor seja bastante delicado para não nos voltar a casa, nem perseguir-nos na rua. O que tudo lhe communico por ordem da mamã, e sou

«criada de v. s.a

«Amelia Caminha».



João Eduardo ficou a olhar estupidamente a parede defronte onde batia a claridade do candieiro, immovel como uma pedra, com o seu rolo de papeis pintados debaixo do braço. Machinalmente voltou a casa. As mãos tremiam-lhe tanto, que mal podia accender o candieiro. De pé, junto da mesa, releu a carta. Depois ficou alli, fatigando a vista contra a chamma da torcida, com uma sensação arrefecedora de Immobilidade e de Silencio, como se subitamente, sem choque, toda a vida universal tivesse emmudecido e parado. Pensou onde teriam ellas ido passar a noite. Lembranças de serões felizes na rua da Misericordia atravessaram-lhe devagar na memoria: Amelia trabalhava, com a cabeça baixa, e entre o [307] cabello muito preto e o collar muito branco o seu pescoço tinha uma pallidez que a luz amaciava... Então a idéa de que a perdera para sempre varou-lhe o coração com um frio de punhalada. Apertou as fontes entre as mãos, tonto. Que havia de fazer? que havia de fazer? Resoluções bruscas relampejavam-lhe um momento no espirito, esvaiam-se. Queria escrever-lhe! tiral-a por justiça! ir para o Brazil! saber quem descobrira que elle era o auctor do artigo!—E como isto era o mais practicavel áquella hora, correu á redacção da Voz do Districto.

Agostinho, estirado no canapé, com a véla ao pé sobre uma cadeira, saboreava os jornaes de Lisboa. A face decomposta de João Eduardo assustou-o.

—Que é?

—É que me perdeste, maroto!

E d'um só fôlego accusou furiosamente o corcunda de o ter trahido.

Agostinho erguera-se devagar, procurando imperturbavel a bolsa do tabaco na algibeira da jaqueta.

—Homem, disse, nada d'espalhafatos... Eu dou-te a minha palavra d'honra que não disse a ninguem do Communicado. É verdade que ninguem me perguntou...

—Mas quem foi, então? gritou o escrevente.

Agostinho enterrou a cabeça nos hombros.

—Eu o que sei é que os padres andavam n'uma azafama para saber quem era. O Natario esteve ahi uma manhã, por causa do annuncio de uma viuva que recorre á caridade publica, mas do Communicado [308] não se disse nem palavra... O doutor Godinho é que sabia, entende-te com elle! Mas então fizeram-te alguma?

—Mataram-me! disse João Eduardo lugubremente.

Ficou um momento a fixar o soalho, aniquilado, e sahiu arremessando a porta. Passeou na Praça; foi ao acaso pelas ruas; depois, attrahido pela obscuridade, á estrada de Marrazes. Abafava, sentindo uma intoleravel palpitação surda latejar-lhe interiormente contra as fontes; apesar de ventar forte nos campos, parecia-lhe seguir n'um silencio universal; por vezes a idéa da sua desgraça rasgava-lhe subitamente o coração, e então imaginava vêr toda a paizagem oscillar e o chão da estrada afigurava-se-lhe molle como um lamaçal. Voltou pela Sé quando batiam onze horas; e achou-se na rua da Misericordia, com o olhar cravado para a janella da sala de jantar, onde havia ainda luz; a vidraça do quarto d'Amelia alumiou-se tambem; ella ia deitar-se, decerto... Veio-lhe um desejo furioso da sua belleza, do seu corpo, dos seus beijos. Fugiu para casa: uma fadiga intoleravel prostrou-o sobre a cama; depois uma saudade indefinida, profunda, foi-o amollecendo, e chorou muito tempo, enternecendo-se mais com o som dos seus proprios soluços,—até que ficou adormecido, de bruços, n'uma massa inerte.


Ao outro dia, cedo, Amelia vinha da rua da Misericordia [309] para a Praça, quando ao pé do Arco João Eduardo lhe sahiu d'emboscada.

—Quero-lhe fallar, menina Amelia.

Ella recuou assustada, disse a tremer:

—Não tem que me fallar...

Mas elle plantára-se diante d'ella, muito decidido, com os olhos vermelhos como carvões:

—Quero-lhe dizer... Lá do artigo, é verdade, fui eu que o escrevi, foi uma desgraça; mas a menina tinha-me ralado de ciumes... Mas o que a menina diz de maus costumes é uma calumnia. Eu sempre fui um homem de bem...

—O senhor padre Amaro é que o conhece! Faz favor de me deixar passar...

Ao nome do parocho, João Eduardo fez-se livido de raiva:

—Ah! é o senhor padre Amaro! É o maroto do padre! Pois veremos! Ouça...

—Faz favor de me deixar passar! disse ella irritada, tão alto, que um sujeito gordo de chale-manta parou olhando.

João Eduardo recuou, tirando o chapéo; e ella, immediatamente, refugiou-se na loja do Fernandes.


Então, n'um desespero, correu a casa do doutor Godinho. Já na vespera, por entre os seus-accessos de chôro, sentindo-se tão abandonado, se lembrára do doutor Godinho. Fôra outr'ora seu escrevente; e [310] como por pedido d'elle entrára no cartorio do Nunes Ferral, e por sua influencia ia ser accommodado no governo civil, julgava-o uma Providencia prodiga e inesgotavel! Demais, desde que escrevera o Communicado considerava-se da redacção da Voz do Districto, do grupo da Maia; agora, que era atacado pelos padres, devia claramente ir acolher-se á forte protecção do seu chefe, do doutor Godinho, do inimigo da reacção, o «Cavour de Leiria», como dizia, arregalando os olhos, o bacharel Azevedo, auctor dos Ferrões.—E João Eduardo, dirigindo-se ao casarão amarello, ao pé do Terreiro onde o doutor vivia, ia n'um alvoroço d'esperanças, contente com se refugiar, como um cão escorraçado, entre as pernas d'aquelle colosso.

O doutor Godinho descera já ao escriptorio, e repoltreado na sua poltrona abbacial de prégos amarellos, com os olhos no tecto de carvalho escuro, acabava com beatitude o charuto do almoço. Recebeu com magestade os «bons dias» de João Eduardo.

—Então que temos, amigo?

As altas estantes d'in-folios graves, as resmas d'autos, o apparatoso painel representando o marquez de Pombal, de pé n'um terraço sobre o Tejo, expulsando com o dedo a esquadra ingleza—acanharam como sempre João Eduardo; e foi com voz embaraçada que disse vinha alli para que sua excellencia lhe désse remedio n'uma desgraça que lhe succedia.

—Desordens, bordoada?

—Não, senhor, negocios de familia. [311]

Contou então, prolixamente, a sua historia desde a publicação do Communicado: leu muito commovido, a carta d'Amelia; descreveu a scena ao pé do Arco... Alli estava agora, escorraçado da rua da Misericordia por obras do senhor parocho! E parecia-lhe a elle, apesar de não ser formado em Coimbra, que contra um padre que se introduzia n'uma familia, desinquietava uma menina simples, a levava por intrigas a romper com o noivo e ficava de portas a dentro senhor d'ella—devia haver leis!

—Eu não sei, senhor doutor, mas deve haver leis!

O doutor Godinho parecia contrariado.

—Leis!? exclamou traçando vivamente a perna. Que leis quer vossê que haja? Quer querelar do parocho?... Porque? Elle bateu-lhe? roubou-lhe o relogio? insultou-o pela imprensa? Não. Então?...

—Oh, senhor doutor! mas intrigou-me com as senhoras! Eu nunca fui homem de maus costumes, senhor doutor! Calumniou-me!

—Tem testemunhas?

—Não, senhor.

—Então?

E o doutor Godinho, assentando os cotovêlos sobre a banca, declarou que como advogado não tinha nada a fazer. Os tribunaes não tomavam conhecimento d'essas questões, d'esses dramas moraes por assim dizer, que se passavam nas alcovas domesticas... Como homem, como particular, como Alipio de Vasconcellos Godinho tambem não podia intervir [312] porque não conhecia o senhor padre Amaro, nem essas senhoras da rua da Misericordia... Lamentava o facto, porque emfim fôra novo, sentira a poesia da mocidade, e sabia (infelizmente sabia!) o que eram esses transes do coração... E ahi está tudo o que elle podia fazer—lamentar! Tambem para que tinha elle dado a sua affeição a uma beata?...

João Eduardo interrompeu-o:

—A culpa não é d'ella, senhor doutor! A culpa é do padre que a anda a desencaminhar! A culpa é d'essa canalha do cabido!

O doutor Godinho estendeu com severidade a mão, e aconselhou o snr. João Eduardo que tivesse cuidado com semelhantes asserções! Nada provava que o senhor parocho possuisse n'essa casa outra influencia que não fosse a d'um habil director espiritual... E recommendava ao snr. João Eduardo, com a auctoridade que lhe davam os annos e a sua posição no paiz, que não fosse espalhar, por despeito, accusações que só serviam para destruir o prestigio do sacerdocio, indispensavel n'uma sociedade bem constituida!—Sem elle, tudo seria anarchia e orgia!

E recostou-se, pensando, satisfeito, que estava n'essa manhã com «o dom da palavra».

Mas a face consternada do escrevente, que não se movia, de pé junto á banca, impacientava-o; e disse com seccura, puxando para diante de si um volume d'autos:

—Emfim, acabemos, que quer o amigo? Já vê, eu não lhe posso dar remedio. [313]

João Eduardo replicou, com um movimento de coragem desesperada:

—Eu imaginei que o senhor doutor podia fazer alguma coisa por mim... Porque emfim eu fui uma victima... Tudo isto vem de se saber que eu escrevi o Communicado. E tinha-se combinado que havia de ser segredo. O Agostinho não o disse, só o senhor doutor o sabia...

O doutor pulou de indignação na sua cadeira abbacial:

—Que quer o senhor insinuar? Quer-me dar a entender que fui eu que o disse? Não disse... Isto é, disse; disse-o a minha mulher, porque n'uma familia bem constituida não deve haver segredos entre esposo e esposa. Ella perguntou-me, disse-lh'o... Mas supponhamos que fui eu que o espalhei pelas ruas. De duas uma: ou o Communicado era uma calumnia, e então sou eu que devo accusal-o de ter polluido um jornal honrado com um acervo de diffamaçães; ou era verdade, e então que homem é o senhor que se envergonha das verdades que solta, e que não se atreve a manter á luz do dia as opiniões que redigiu na escuridão da noite?

Duas lagrimas ennevoaram os olhos de João Eduardo. Então, diante d'aquella expressão esmorecida, satisfeito de o ter esmagado com uma argumentação tão logica e tão poderosa, o doutor Godinho abrandou:

—Bem, não nos zanguemos, disse. Não se falla [314] mais era pontos d'honra... O que póde acreditar é que lamento o seu desgosto.

Deu-lhe conselhos de uma solicitude paternal. Que não succumbisse; havia mais meninas em Leiria e meninas de bons principios que não viviam sob a direcção da sotaina. Que fosse forte, e que se consolasse pensando que elle, doutor Godinho—e era elle!—tambem tivera em moço desgostos do coração. Que evitasse o dominio das paixões que lhe seria prejudicial na carreira publica. E que se o não fizesse por seu interesse proprio, o fizesse ao menos em attenção a elle, doutor Godinho!

João Eduardo sahiu do escriptorio, indignado, julgando-se «trahido» pelo doutor.

—Isto succede-me a mim, resmungava, porque sou um pobre diabo, não dou votos nas eleições, não vou ás soirées do Novaes, não subscrevo para o club. Ah, que mundo! Se eu tivesse um par de contos de reis!...

Veio-lhe então um desejo furioso de se vingar dos padres, dos ricos, e da religião que os justifica. Voltou muito decidido ao escriptorio, e entreabrindo a porta:

—Vossa excellencia ao menos agora dá licença que eu desabafe no jornal?... Queria contar esta maroteira, cascar n'essa canalha...

Esta audacia do escrevente indignou o doutor. Endireitou-se com severidade na poltrona, e cruzando terrivelmente os braços: [315]

—O snr. João Eduardo está realmente a abusar! Pois o senhor vem-me pedir que transforme um jornal d'idéas n'um jornal de diffamações!? Vá, não se prenda! Peça-me que insulte os principios da religião, que achincalhe o Redemptor, que repita as babuseiras de Renan, que ataque as leis fundamentaes do Estado, que injurie o rei, que vitupere a instituição da familia! O senhor está ebrio!

—Oh, senhor doutor!

—O senhor está ebrio! Cuidado, meu caro amigo, cuidado, olhe que vai por um declive! É por esse caminho que se chega a perder o respeito da auctoridade, da lei, das coisas santas e do lar. É por esse caminho que se vai ao crime! Escusa d'arregalar os olhos... Ao crime, digo-lh'o eu! Tenho a experiencia de vinte annos de fôro. Homem, detenha-se! refreie essas paixões! Safa! Que idade tem o senhor?

—Vinte e seis annos.

—Pois não ha desculpa para um homem de vinte e seis annos ter essas idéas subversivas. Adeus, feche a porta. E escute: escusa de pensar em mandar outro Communicado para outro qualquer jornal. Não lh'o consinto, eu que o tenho protegido sempre! Havia de querer fazer espalhafato... Escusa de negar, estou-lh'o a lêr nos olhos. Pois não lh'o consinto! É para seu bem, para lhe poupar uma má acção social!

Tomou uma grande attitude na poltrona, repetiu com força: [316]

—Uma pessima acção social! Aonde nos querem os senhores levar com os seus materialismos, os seus atheismos?! Quando tiverem dado cabo da religião de nossos paes, que têm os senhores para a substituir?! Que têm?! Mostre lá!

A expressão embaraçada de João Eduardo (que não tinha alli, para a mostrar, uma religião que substituisse a de nossos paes) fez triumphar o doutor.

—Não têm nada! Têm lama, quando muito têm palavriado! Mas emquanto eu fôr vivo, pelo menos em Leiria, ha de ser respeitada a Fé e o principio da Ordem! Podem pôr a Europa a fogo e sangue, em Leiria não hão de erguer cabeça. Em Leiria estou eu álerta, e juro que lhes hei de ser funesto!

João Eduardo recebia d'hombros vergados estas ameaças, sem as comprehender. Como podia o seu Communicado e as intrigas da rua da Misericordia produzirem assim catastrophes sociaes e revoluções religiosas! Tanta severidade aniquilava-o. Ia perder decerto a amizade do doutor, o emprego no governo civil... Quiz abrandal-o:

—Oh, senhor doutor, mas vossa excellencia bem vê...

O doutor interrompeu-o com um grande gesto:

—Eu vejo perfeitamente. Vejo que as paixões, a vingança o vão levando por um caminho fatal... O que espero é que os meus conselhos o detenham. Bem, adeus. Feche a porta. Feche a porta, homem!

João Eduardo sahiu acabrunhado. Que havia de [317] fazer agora? O doutor Godinho, aquelle colosso, repellia-o com palavras tremendas! E que podia elle, pobre escrevente de cartorio, contra o padre Amaro que tinha por si o clero, o chantre, o cabido, os bispos, o Papa, classe solidaria e compacta que lhe apparecia como uma medonha cidadella de bronze erguendo-se até ao céo?! Eram elles que tinham causado a resolução d'Amelia, a sua carta, a dureza das suas palavras. Era uma intriga de parochos, conegos e beatas. Se elle pudesse arrancal-a áquella influencia, ella tornaria a ser bem depressa a sua Ameliasinha que lhe bordava chinelas, e que vinha toda córada vêl-o passar á janella! As suspeitas que outr'ora tivera tinham-se desvanecido n'aquelles serões felizes, depois de decidido o casamento, quando ella, costurando junto do candieiro, fallava da mobilia que havia de comprar e dos arranjos da sua casinha. Ella amava-o, decerto... Mas quê! tinham-lhe dito que elle era o auctor do Communicado, que era hereje, que tinha costumes devassos; o parocho, na sua voz pedante, ameaçára-a com o inferno; o conego, furioso, e todo poderoso na rua da Misericordia porque dava para a panella, fallára têso—e a pobre menina, assustada, dominada, com aquelle bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe ao ouvido, coitada, cedera! Estava talvez persuadida, de boa fé, que elle era uma fera! E áquella hora, emquanto elle alli andava pelas ruas, escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na saleta da rua da Misericordia, enterrado na poltrona, senhor [318] da casa e senhor da rapariga, de perna traçada, palrava d'alto! Canalha! E não haver leis que o vingassem! e não poder sequer «fazer escandalo», agora que a Voz do Districto se lhe tornava inaccessivel!

Vinham-lhe então desejos furiosos de demolir o parocho aos murros, com a força do padre Brito. Mas o que o satisfaria mais seriam artigos tremendos n'um jornal que revelassem as intrigas da rua da Misericordia, amotinassem a opinião, cahissem sobre o padre como catastrophes, o forçassem a elle, ao conego e aos outros a desapparecerem corridos da casa da S. Joanneira! Ah! estava certo que a Ameliasinha, livre d'aquelles galfarros, correria logo aos seus braços, com lagrimas de reconciliação...

Procurava assim á força convencer-se que «a culpa não era d'ella»; recordava os mezes de felicidade antes da chegada do parocho; arranjava explicações naturaes para aquellas maneirinhas ternas que ella outr'ora tinha para o padre Amaro, e que lhe tinham dado ciumes desesperados:—era o desejo, coitada, de ser agradavel ao hospede, ao amigo do senhor conego, de o reter para vantagem da mãi e da casa! E além d'isso, como ella andava contente depois de resolvido o casamento! A sua indignação contra o Communicado, estava certo, não era natural d'ella—vinha-lhe soprada pelo parocho e pelas beatas. E achava uma consolação n'esta idéa que não era repellido como namorado, como marido—mas que era uma victima das intrigas do torpe padre Amaro, que lhe desejava a noiva e que o [319] odiava como liberal! Isto accumulava-lhe na alma um rancor desordenado contra o padre; descendo a rua procurava anciosamente uma vingança, atirando a imaginação aqui e além—mas vinha-lhe sempre a mesma idéa, o artigo de jornal, a verrina, a imprensa! A certeza da sua fraqueza desprotegida revoltava-o. Ah, se tivesse por si um «figurão»!

Um homem do campo, amarello como uma cidra, que ia caminhando devagar, com o braço ao peito, deteve-o a perguntar-lhe onde morava o doutor Gouvêa.

—Na primeira rua, á esquerda, o portão verde ao pé do lampeão, disse João Eduardo.

E uma esperança immensa alumiou-lhe bruscamente a alma: o doutor Gouvêa é que o podia salvar! O doutor era seu amigo: tratava-o por tu desde que o curára havia tres annos da pneumonia; approvava muito o seu casamento com Amelia; havia ainda semanas perguntára-lhe ao pé da Praça:—«Então, quando se faz essa rapariga feliz?» E que respeitado, que temido na rua da Misericordia! Era medico de todas as amigas da casa que, apesar de se escandalisarem com a sua irreligião, dependiam humildemente da sua sciencia para os achaques, os flatos, os xaropes. Além d'isso, o doutor Gouvêa, inimigo decidido da «padraria», decerto se ia indignar com aquella intriga beata: e João Eduardo via-se já entrando na rua da Misericordia atraz do doutor Gouvêa, que reprehendia a S. Joanneira, arrasava [320] o padre Amaro, convencia as velhas,—e a sua felicidade recomeçava, inabalavel agora!

—O senhor doutor está? perguntou elle quasi alegre, á criada que no pateo estendia a roupa ao sol.

—Está na consulta, snr. Joãosinho, faça favor d'entrar.

Em dias de mercado os doentes do campo affluiam sempre. Mas áquella hora—quando os visinhos das freguezias se reunem nas tabernas—havia só um velho, uma mulher com uma criança ao collo e o homem do braço ao peito, esperando n'uma saleta baixa com bancos, dois manjaricões na janella e uma grande gravura da Coroação da Rainha Victoria. Apesar do sol claro que entrava do pateo, e de uma fresca folhagem de tilia que roçava o peitoril da janella, a saleta dava tristeza, como se as paredes, os bancos, os mesmos manjaricões estivessem saturados da melancolia das doenças que alli tinham passado. João Eduardo entrou e sentou-se a um canto.

Tinha batido meio dia, e a mulher estava-se queixando de ter esperado tanto: era de uma freguezia distante, deixára no mercado a irmã, e havia uma hora que o senhor doutor estava com duas senhoras! A cada momento a criança rabujava, ella sacudia-a nos braços: calavam-se depois: o velho arregaçava a calça, contemplava com satisfação uma chaga na canella envolta em trapos: e o outro homem dava bocejos desconsolados que tornavam mais lugubre a sua longa face amarella. Aquella demora [321] enervava, amollecia o escrevente; sentia perder gradualmente o animo de occupar o doutor Gouvêa; preparava laboriosamente a sua historia, mas ella parecia-lhe agora bem insufficiente para o interessar. Vinha-lhe então um desalento, que as faces insipidas dos doentes tornavam ainda mais intenso. Positivamente era uma coisa bem triste esta vida, cheia só de miserias, de sentimentos trahidos, de afflicções, de doenças! Erguia-se; e com as mãos atraz das costas ia olhar desconsoladamente a Coroação da Rainha Victoria.

De vez em quando a mulher entreabria a porta, a espreitar se as duas senhoras ainda lá estariam. Lá estavam; e através do batente de baeta verde, que fechava o gabinete do doutor, sentia-se as suas vozes pachorrentas palrarem.

—Em cahindo aqui é dia perdido! rosnava o velho.

Tambem elle deixára a cavalgadura á porta do Fumaça, e a rapariga na praça... E o que teria a esperar na botica, depois! Com tres legoas ainda a fazer para voltar á freguezia!... Ser doente é bom, mas para quem é rico e tem vagares!

A idéa da doença, da solidão que ella traz, faziam agora parecer a João Eduardo mais amarga a perda de Amelia. Se adoecesse teria de ir para o hospital. O malvado do padre tirára-lhe tudo—mulher, felicidade, confortos de familia, dôces companhias da vida!

Emfim sentiram no corredor as duas senhoras [322] que sahiam. A mulher com a criança apanhou o seu cabaz, precipitou-se. E o velho, apoderando-se logo do banco junto da porta, disse com satisfação:

—Agora cá o patrão!

—Vossemecê tem muito que consultar? perguntou-lhe João Eduardo.

—Não senhor, é só receber a receita.

E immediatamente contou a historia da sua chaga: fôra uma trave que lhe cahira em cima; não fizera caso; depois a ferida assanhára-se; e agora alli estava, manco e cortidinho de dôres.

—E vossa senhoria, é coisa de cuidado? perguntou elle.

—Eu não estou doente, disse o escrevente. São negocios com o senhor doutor.

Os dois homens olharam-n'o com inveja.

Emfim foi a vez do velho, depois a do homem amarello de braço ao peito. João Eduardo, só, passeava nervoso pela saleta. Parecia-lhe agora muito difficil ir assim, sem ceremonia, pedir protecção ao doutor. Com que direito?... Lembrou-se de se queixar primeiro de dôres do peito ou desarranjos de estomago, e depois, incidentalmente, contar os seus infortunios...

Mas a porta abriu-se. O doutor estava diante d'elle, com a sua longa barba grisalha que lhe cahia sobre a quinzena de velludo preto, o largo chapéo desabado na cabeça, calçando as luvas de fio d'Escocia. [323]

—Ólá! és tu, rapaz! Ha novidade na rua da Misericordia?

João Eduardo córou.

—Não senhor, senhor doutor, queria-lhe fallar em particular.

Seguiu-o ao gabinete—o conhecido gabinete do doutor Gouvêa, que com o seu cahos de livros, o seu tom poeirento, uma panoplia de flechas selvagens e duas cegonhas empalhadas, tinha na cidade a reputação d'uma «cella d'alchimista».

O doutor puxou o seu cebolão.

—Um quarto para as duas. Sê breve.

A face do escrevente exprimiu o embaraço de condensar uma narração tão complicada.

—Está bom, disse o doutor, explica-te como puderes. Não ha nada mais difficil que ser claro e breve; é necessario ter genio. Que é?

João Eduardo então tartamudeou a sua historia, insistindo sobretudo na perfidia do padre, exagerando a innocencia de Amelia...

O doutor escutava-o, cofiando a barba.

—Vejo o que é. Tu e o padre, disse elle, quereis ambos a rapariga. Como elle é o mais esperto e o mais decidido, apanhou-a elle. É lei natural: o mais forte despoja, elimina o mais fraco; a femea e a prêsa pertencem-lhe.

Aquillo pareceu a João Eduardo um gracejo. Disse com a voz perturbada:

—Vossa excellencia está a caçoar, senhor doutor, mas a mim retalha-se-me o coração! [324]

—Homem, acudiu o doutor com bondade, estou a philosophar, não estou a caçoar... Mas emfim, que queres tu que eu te faça?

Era o que o doutor Godinho lhe tinha dito, tambem, com mais pompa!

—Eu tenho a certeza que se vossa excellencia lhe fallasse...

O doutor sorriu:

—Eu posso receitar á rapariga este ou aquelle xarope, mas não lhe posso impôr este ou aquelle homem! Queres que lhe vá dizer: «A menina ha de preferir aqui o snr. João Eduardo?» Queres que vá dizer ao padre, um maganão que eu nunca vi: «O senhor faz favor de não seduzir esta menina?»

—Mas calumniaram-me, senhor doutor, apresentaram-me como um homem de maus costumes, um patife...

—Não, não te calumniaram. Sob o ponto de vista do padre e d'aquellas senhoras que jogam á noite o quino na rua da Misericordia tu és um patife: um christão que nos periodicos vitupera abbades, conegos, curas, personagens tão importantes para se communicar com Deus e para se salvar a alma, é um patife. Não te calumniaram, amigo!

—Mas, senhor doutor...

—Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediencia ás instrucções do senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como uma boa catholica. É o que te digo. Toda a vida do bom catholico, os seus pensamentos, as suas idéas, os seus sentimentos, as [325] suas palavras, o emprego dos seus dias e das suas noites, as suas relações de familia e de visinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuario e os seus divertimentos—tudo isto é regulado pela auctoridade ecclesiastica (abbade, bispo ou conego), approvado ou censurado pelo confessor, aconselhado e ordenado pelo director da consciencia. O bom catholico, como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem vontade, nem arbitrio, nem sentir proprio; o seu cura pensa, quer, determina, sente por ella. O seu unico trabalho n'este mundo, que é ao mesmo tempo o seu unico direito e o seu unico dever, é aceitar esta direcção; aceital-a sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde der; se ella contraria as suas idéas, deve pensar que as suas idéas são falsas; se ella fere as suas affeições, deve pensar que as suas affeições são culpadas. Dado isto, se o padre disse á pequena que não devia nem casar, nem sequer fallar comtigo, a creatura prova, obedecendo-lhe, que é uma boa catholica, uma devota consequente, e que segue na vida, logicamente, a regra moral que escolheu. Aqui está, e desculpa o sermão.

João Eduardo ouvia com respeito, com espanto estas phrases, a que a face placida, a bella barba grisalha do doutor davam uma auctoridade maior. Parecia-lhe agora quasi impossivel recuperar Amelia, se ella pertencia assim tão absolutamente, alma e sentidos, ao padre que a confessava. Mas emfim, porque era elle considerado um marido prejudicial?

—Eu comprehenderia, disse, se fosse um homem [326] de maus costumes, senhor doutor. Mas eu porto-me bem; eu não faço senão trabalhar; eu não frequento tabernas nem troças; eu não bebo, eu não jógo; as minhas noites passo-as na rua da Misericordia, ou em casa a fazer serão para o cartorio...

—Meu rapaz, tu pódes ter socialmente todas as virtudes; mas, segundo a religião de nossos paes, todas as virtudes que não são catholicas são inuteis e perniciosas. Ser trabalhador, casto, honrado, justo, verdadeiro, são grandes virtudes; mas para os padres e para a Igreja não contam. Se tu fôres um modelo de bondade mas não fôres á missa, não jejuares, não te confessares, não te desbarretares para o senhor cura—és simplesmente um maroto. Outros personagens maiores que tu, cuja alma foi perfeita e cuja regra de vida foi impeccavel, têm sido julgados verdadeiros canalhas porque não foram baptisados antes de ter sido perfeitos. Has de ter ouvido fallar de Socrates, d'um outro chamado Platão, de Catão, etc... Foram sujeitos famosos pelas suas virtudes. Pois um certo Bossuet, que é o grande chavão da doutrina, disse que das virtudes d'esses homens estava cheio o inferno... Isto prova que a moral catholica é differente da moral natural e da moral social... Mas são coisas que tu comprehendes mal... Queres tu um exemplo? Eu sou, segundo a doutrina catholica, um dos grandes desavergonhados que passeiam as ruas da cidade; e o meu visinho Peixoto, que matou a mulher com pancadas e que vai dando cabo pelo mesmo processo de uma [327] filhita de dez annos, é entre o clero um homem excellente porque cumpre os seus deveres de devoto e toca figle nas missas cantadas. Emfim, amigo, estas coisas são assim. E parece que são boas, porque ha milhares de pessoas respeitaveis que as consideram boas, o Estado mantem-as, gasta até um dinheirão para as manter, obriga-nos mesmo a respeital-as—e eu, que estou aqui a fallar, pago todos os annos um quartinho para que ellas continuem a ser assim. Tu naturalmente pagas menos...

—Pago sete vintens, senhor doutor.

—Mas emfim vaes ás festas, ouves musica, sermão, desforras-te dos teus sete vintens. Eu, o meu quartinho perco-o; consolo-me apenas com a idéa de que vai ajudar a manter o esplendor da Igreja—da Igreja que em vida me considera um bandido, e que para depois de morto me tem preparado um inferno de primeira classe. Emfim, parece-me que temos cavaqueando bastante... Que queres mais?

João Eduardo estava acabrunhado. Agora que escutava o doutor, parecia-lhe, mais que nunca, que se um homem de palavras tão sabias, de tantas idéas, se interessasse por elle, toda a intriga seria facilmente desfeita e a sua felicidade, o seu logar na rua da Misericordia recobrados para sempre.

—Então vossa excellencia não póde fazer nada por mim? disse muito desconsolado.

—Eu posso talvez curar-te d'outra pneumonia. Tens outra pneumonia a curar? Não? Então...

João Eduardo suspirou: [328]

—Sou uma victima, senhor doutor!

—Fazes mal. Não deve haver victimas, quando não seja senão para impedir que haja tyrannos—disse o doutor, pondo o seu largo chapéo desabado.

—Porque no fim de tudo, exclamou ainda João Eduardo que se prendia ao doutor com uma sofreguidão d'afogado, no fim de tudo o que o patife do parocho quer, com todos os seus pretextos, é a rapariga! Se ella fosse um camafeu, bem se importava o maroto que eu fosse um impio ou não! O que elle quer é a rapariga!

O doutor encolheu os hombros.

—É natural, coitado—disse, já com a mão no fecho da porta. Que queres tu? Elle tem para as mulheres, como homem, paixões e orgãos; como confessor, a importancia d'um Deus. É evidente que ha de utilisar essa importancia para satisfazer essas paixões; e que ha de cobrir essa satisfação natural com as apparencias e com os pretextos do serviço divino... É natural.

João Eduardo então, vendo-o abrir a porta, desvanecer-se a esperança que o trouxera alli, disse, furioso, vergastando o ar com o chapéo:

—Canalha de padres! Foi raça que sempre detestei! Queria-a vêr varrida da face da terra, senhor doutor!

—Isso é outra tolice, disse o doutor, resignando-se a escutal-o ainda, e parando á porta do quarto. Ouve lá. Tu crês em Deus? no Deus do céo, no Deus [329] que lá está no alto do céo, e que é lá de cima o principio de toda a justiça e de toda a verdade?

João Eduardo, surprehendido, disse:

—Eu creio, sim senhor.

—E no peccado original?

—Tambem...

—Na vida futura, na redempção, etc?

—Fui educado n'essas crenças...

—Então para que queres varrer os padres da face da terra? Deves pelo contrario ainda achar que são poucos. És um liberal racionalista nos limites da Carta, ao que vejo... Mas se crês no Deus do céo, que nos dirige lá de cima, e no peccado original, e na vida futura, precisas d'uma classe de sacerdotes que te expliquem a doutrina e a moral revelada de Deus, que te ajudem a purificar da macula original e te preparem o teu logar no paraiso! Tu necessitas dos padres. E parece-me mesmo uma terrivel falta de logica que os desacredites pela imprensa...

João Eduardo, attonito, balbuciou:

—Mas vossa excellencia, senhor doutor... Desculpe-me vossa excellencia, mas...

—Dize, homem. Eu quê?

—Vossa excellencia não precisa dos padres n'este mundo...

—Nem no outro. Eu não preciso dos padres no mundo, porque não preciso do Deus do céo. Isto quer dizer, meu rapaz, que tenho o meu Deus dentro em mim, isto é, o principio que dirige as minhas acções e os meus juizos. Vulgo Consciencia... Talvez [330] não comprehendas bem... O facto é que estou aqui a expôr doutrinas subversivas... E realmente são tres horas...

E mostrou-lhe o cebolão.

Á porta do pateo, João Eduardo disse-lhe ainda:

—Vossa excellencia então desculpe, senhor doutor...

—Não ha de quê... Manda a rua da Misericordia ao diabo!

João Eduardo interrompeu com calor:

—Isso é bom de dizer, senhor doutor, mas quando a paixão está a roer cá por dentro!...

—Ah! fez o doutor, é uma bella e grande coisa a paixão! O amor é uma das grandes forças da civilisação. Bem dirigida levanta um mundo e bastava para nos fazer a revolução moral...—E mudando de tom:—Mas escuta. Olha que isso ás vezes não é paixão, não está no coração... O coração é ordinariamente um termo de que nos servimos, por decencia, para designar outro orgão. É precisamente esse orgão o unico que está interessado, a maior parte das vezes, em questões de sentimento. E n'esses casos o desgosto não dura. Adeus, estimo que seja isso!



XV



João Eduardo desceu a rua, embrulhando o cigarro. Sentia-se enervado, todo cansado da noite desesperada que passára, d'aquella manhã cheia de passos inuteis, das conversas do doutor Godinho e do doutor Gouvêa.

—Acabou-se, pensava, não posso fazer mais nada! É aguentar.

Tinha a alma extenuada de tantos esforços de paixão, d'esperança e de cólera. Desejaria ir estirar-se ao comprido, n'um sitio isolado, longe de advogados, de mulheres e de padres, e dormir durante mezes. Mas como já passava das tres horas, apressava-se para o cartorio do Nunes. Teria talvez ainda de ouvir um sermão por ter chegado tão tarde! Triste vida a sua!

Dobrára a esquina no Terreiro, quando ao pé da [332] casa de pasto do Osorio se encontrou com um moço de quinzena clara, debruada de uma fita negra muito larga, e com um bigodinho tão preto que parecia postiço sobre as suas feições extremamente pallidas.

—Ólé! Que é feito, João Eduardo?

Era um Gustavo, typographo da Voz do Districto, que havia dois mezes fôra para Lisboa. Segundo dizia o Agostinho, era «rapaz de cabeça e instruidote, mas d'idéas do diabo». Escrevia ás vezes artigos de Politica Estrangeira, onde introduzia phrases poeticas e retumbantes, amaldiçoando Napoleão III, o czar e os oppressores do povo, chorando a escravidão da Polonia e a miseria do proletario. A sympathia entre elle e João Eduardo proviera de conversas sobre religião, em que ambos exhalavam o seu odio ao clero e a sua admiração por Jesus Christo. A revolução d'Hespanha enthusiasmára-o tanto que aspirára a pertencer á Internacional; e o desejo de viver n'um centro operario, onde houvesse associações, discursos e fraternidade, levára-o a Lisboa. Encontrára lá bom trabalho e bons camaradas. Mas como sustentava a mãi, velha e doente, e como era mais economico viverem juntos, voltára a Leiria. O Districto, além d'isso, na perspectiva d'eleições, prosperava a ponto de augmentar o salario aos tres typographos.

—De modo que lá estou outra vez com o rachitico...

Vinha jantar, e convidou logo João Eduardo a que lhe fizesse companhia. Não havia d'acabar o mundo, que diabo, por elle faltar um dia ao cartorio! [333]

João Eduardo então lembrou-se que desde a vespera não tinha comido. Era talvez a debilidade que o trouxera assim estonteado, tão prompto a desanimar... Decidiu-se logo—contente, depois das emoções e das fadigas da manhã, de se estirar no banco da taberna, diante d'um prato cheio, na intimidade com um camarada d'odios iguaes aos seus. Demais, os repellões que soffrera davam-lhe uma necessidade, uma avidez de sympathia; e foi com calor que disse:

—Homem, valeu! Caes-me do céo! Este mundo é uma choldra. Se não fosse por alguma hora que se passa em amizade, caramba, não valia a pena andar por cá!

Este modo, tão novo no João Eduardo, no Pâcatinho, espantou Gustavo.

—Porquê? As coisas não correm bem? Turras com a besta do Nunes, hein? perguntou-lhe.

—Não. Um bocado de spleen.

—Isso de spleen é d'inglez! Oh menino, havias de vêr o Taborda no Amor londrino!... Deixa lá o spleen. É deitar lastro para dentro e carregar no liquido!

Travou-lhe do braço, metteu-o pela porta da taberna.

—Viva o tio Osorio! Saude e fraternidade!

O dono da casa de pasto, o tio Osorio, personagem obeso e contente da vida, com as mangas da camisa arregaçadas até aos hombros, os braços nús muito brancos apoiados sobre o balcão, a face balofa [334] e finoria, felicitou logo Gustavo de o vêr de novo em Leiria. Achava-o mais magrito... Havia de ser das más aguas de Lisboa e do muito pau campeche nos vinhos... E que havia d'elle servir aos cavalheiros?

Gustavo, plantando-se diante do contador, de chapéo para a nuca, apressou-se a soltar o gracejo, que tanto o enthusiasmára em Lisboa:

—Tio Osorio, sirva-nos figado de rei, com rim grelhado de padre!

O tio Osorio, prompto á réplica, disse logo, dando um raspão de rodilha sobre o zinco do contador:

—Não temos cá d'isso, snr. Gustavo. Isso é petisco da capital.

—Então estão vossês muito atrazados! Em Lisboa era todos os dias o meu almoço... Bem, acabou-se, dê-nos duas iscas com batatas... E bem saltadinho, isso!

—Hão de ser servidos como amigos.

Accommodaram-se á «mesa dos envergonhados», entre dois tabiques de pinho fechados por uma cortina de chita. O tio Osorio, que apreciava Gustavo, «moço instruido e de pouca troça», veio elle mesmo trazer a garrafa do tinto e as azeitonas; e limpando os copos ao avental enxovalhado:

—Então que ha de novo pela capital, snr. Gustavo? Como vai por lá aquillo?

O typographo deu immediatamente seriedade ao rosto; passou a mão pelos cabellos, e deixou cahir algumas phrases enigmaticas:

—Tremidito... Muito pouca vergonha em politica... [335] A classe operaria começa a mexer-se... Falta d'união, por ora... Está-se á espera de vêr como as coisas correm em Hespanha... Ha de havel-as bonitas! Tudo depende d'Hespanha ...

Mas o tio Osorio, que juntára alguns vintens e comprára uma fazenda, tinha horror a tumultos... O que se queria no paiz era paz... Sobretudo o que lhe desagradava era contar-se com hespanhoes... De Hespanha, deviam os cavalheiros sabel-o, «nem bom vento nem bom casamento»!

—Os povos são todos irmãos! exclamou Gustavo. Quando se tratar d'atirar abaixo Bourbons e imperadores, camarilhas e fidalguia, não ha portuguezes nem hespanhoes, todos são irmãos! Tudo é fraternidade, tio Osorio!

—Pois então é beber-lhe á saude, e beber-lhe rijo, que isso é que faz andar o negocio, disse o tio Osorio tranquillamente, rolando a sua obesidade para fóra do cubiculo.

—Elephante! rosnou o typographo, chocado com aquella indifferença pela Fraternidade dos Povos. Que se podia esperar, de resto, d'um proprietario e d'um agente d'eleições?

Trauteou a Marselheza, enchendo os copos d'alto, e quiz saber o que tinha feito o amigo João Eduardo... Já se não ia pelo Districto? O rachitico dissera-lhe que não havia despegal-o da rua da Misericordia...

—E quando é esse casamento, por fim?

João Eduardo córou, disse vagamente: [336]

—Nada decidido... Tem havido difficuldades.—E acrescentou com um sorriso desconsolado:—Temos tido arrufos.

—Pieguices! soltou o typographo, com um movimento d'hombros, que exprimia um desdem de revolucionario pelas frivolidades do sentimento.

—Pieguices... Não sei se são pieguices, disse João Eduardo. O que sei é que dão desgostos... Arrasam um homem, Gustavo...

Calou-se, mordendo o beiço, para recalcar a emoção que o revolvia.

Mas o typographo achava todas essas historias de mulheres ridiculas. O tempo não estava para amores... O homem do povo, o operario que se agarrava a uma saia para não despegar, era um inutil... era um vendido! Em que se devia pensar não era em namoros: era em dar a liberdade ao povo, livrar o trabalho das garras do capital, acabar com os monopolios, trabalhar para a republica! Não se queria lamuria, queria-se acção, queria-se a força!—E carregava furiosamente no r da palavra—a forrrça!—agitando os seus pulsos magrissimos de tisico sobre o grande prato d'iscas que o moço trouxera.

João Eduardo, escutando-o, lembrava-se do tempo em que o typographo, doido pela Julia padeira, apparecia sempre com os olhos vermelhos como carvões, e atroava a typographia com suspiros medonhos. A cada ai os camaradas, troçando, davam uma tossesinha de garganta. Um dia mesmo, Gustavo e o Medeiros tinham-se esmurrado no pateo... [337]

—Olha quem falla! disse por fim. És como os outros... Estás ahi a palrar, e quando te chega és como os outros.

O typographo então—que, desde que em Lisboa frequentára um Club democratico d'Alcantara e ajudára a redigir um manifesto aos irmãos cigarreiros em grève, se considerava exclusivamente votado ao serviço do Proletariado e da Republica—escandalisou-se. Elle? Elle como os outros? Perder o seu tempo com saias?...

—Está vossa senhoria muito enganado!—E recolheu-se a um silencio chocado, partindo com furor a sua isca.

João Eduardo receou tel-o offendido.

—Ó Gustavo, sejamos razoaveis: um homem póde ter os seus principios, trabalhar pela sua causa, mas casar, arranjar o seu conchego, ter uma família.

—Nunca! exclamou o typographo exaltado. O homem que casa está perdido! D'ahi por diante é ganhar a papa, não se mexer do buraco, não ter um momento para os amigos, passear de noite os marmanjos quando elles berram com os dentes... É um inutil! é um vendido! As mulheres não entendem nada de politica. Têm medo que o homem se metta em barulhos, tenha turras com a policia... Está um patriota atado de pés e mãos! E quando ha um segredo a guardar? O homem casado não póde guardar um segredo!... E ahi está ás vezes uma revolução compremettida... Sêbo p'r'á familia! Outra de azeitonas, tio Osorio! [338]

A pansa do tio Osorio appareceu entre os tabiques.

—Então que estão os senhores aqui a questionar, que parece que entraram os da Maia no conselho de districto?

Gustavo atirou-se para o fundo do banco, de perna estirada, e interpellando-o d'alto:

—O tio Osorio é que vai dizer. Diga lá o amigo. Vossemecê era homem de mudar as suas opiniões politicas para fazer a vontade á sua patrôa?

O tio Osorio acariciou o cachaço e disse com um tom finorio:

—Eu lhe respondo, senhor Gustavo. Mulheres são mais espertas que nós... E em politica, como em negocio, quem fôr com o que ellas dizem vai pelo seguro... Eu sempre consulto a minha, e se quer que lhe diga, já vai em vinte annos e não me tenho achado mal.

Gustavo pulou no banco:

—Vossê é um vendido! gritou.

O tio Osorio, acostumado áquella expressão querida do typographo, não se escandilisou; gracejou até, com o seu amor ás boas réplicas:

—Vendido não direi, mas vendedor p'r'ó que quizer... Pois é o que lhe digo, snr. Gustavo. O senhor casará, e depois m'as contará.

—O que lhe hei de contar, é quando houver uma revolução, entrar-lhe por aqui d'espingarda ao hombro, e mettel-o em conselho de guerra, seu capitalista! [339]

—Pois emquanto isso não chega é beber-lhe e beber-lhe rijo, disse o tio Osorio retirando-se com pachorra.

—Hippopotamo! resmungou o typographo.

E, como adorava discussões, recomeçou logo—sustentando que o homem, embeiçado por uma saia, não tem firmeza nas suas convicções politicas...

João Eduardo sorria tristemente, n'uma negação muda, pensando comsigo que, apesar da sua paixão por Amelia, não se tinha confessado nos dois ultimos annos!

—Tenho provas! berrava Gustavo.

Citou um livre-pensador das suas relações que, para manter a paz domestica, se sujeitava a jejuar ás sextas-feiras, e a palmilhar aos domingos o caminho da capella de ripanço debaixo do braço...

—E é o que te ha de succeder!... Tu tens idéas menos más a respeito de religião, mas ainda te hei de vêr d'opa vermelha e cirio na mão na procissão do Senhor dos Passos... Philosophia e atheismo não custam nada quando se conversa no bilhar entre rapazes... Mas pratical-os em familia, quando se tem uma mulher bonita e devota, é o diabo! É o que te ha de succeder, se é que te não vai succedendo já: has de atirar as tuas convicções liberaes para o caixão do cisco, e fazer barretadas ao confessor da casa!

João Eduardo fazia-se escarlate de indignação. Mesmo nos tempos da sua felicidade, quando tinha Amelia certa, aquella accusação (que o typographo fazia só para questionar, para palrar) tel-o-hia escandalisado. [340] Mas hoje! Justamente quando elle perdera Amelia por ter dito d'alto, n'um jornal, o seu horror a beatos! Hoje que se achava alli, com o coração partido, roubado de toda a alegria, exactamente pelas suas opiniões liberaes!...

—Isso dito a mim tem graça! disse com uma amargura sombria.

O typographo galhofou:

—Homem, não me constou ainda que fosses um martyr da liberdade!

—Por quem és não me apoquentes, Gustavo, disse o escrevente muito chocado. Tu não sabes o que se tem passado. Se soubesses não me dizias isso...

Contou-lhe então a historia do Communicado—calando todavia que o escrevera n'um fogo de ciumes, e apresentando-o como uma pura affirmação de principios... E que notasse esta circumstancia, ia então casar com uma rapariga devota, n'uma casa que era mais frequentada por padres que a sacristia da Sé...

—E assignaste? perguntou Gustavo, espantado da revelação.

—O doutor Godinho não quiz, disse o escrevente córando um pouco.

—E déste-lhes uma desanda, hein?

—A todos, de rachar!

O typographo, enthusiasmado, berrou por «outra de tinto»!

Encheu os copos com transporte, bebeu uma grande saude a João Eduardo. [341]

—Caramba, quero vêr isso! Quero mandal-o á rapaziada em Lisboa!... E que effeito fez?

—Um escandalo mestre.

—E os padrecas?

—Em braza!

—Mas como souberam que eras tu?

João Eduardo encolheu os hombros. O Agostinho não o dissera. Desconfiava da mulher do Godinho, que o sabia pelo marido, e que o fôra metter no bico do padre Silverio, seu confessor, o padre Silverio da rua das Therezas...

—Um gordo, que parece hydropico?

—Sim.

—Que bêsta! rugiu o typographo com rancor.

Olhava agora João Eduardo com respeito, aquelle João Eduardo que se lhe revelava inesperadamente um paladino do livre-pensamento.

—Bebe, amigo, bebe!—dizia-lhe, enchendo-lhe o copo com affecto, como se aquelle esforço heroico de liberalismo necessitasse ainda, depois de tantos dias, reconfortos excepcionaes.

E que se tinha passado? Que tinha dito a gente da rua da Misericordia?

Tanto interesse commoveu João Eduardo: e d'um fôlego fez a sua confidencia. Mostrou-lhe mesmo a carta d'Amelia que ella decerto, coitada, fôra levada a escrever n'um terror do inferno, sob a pressão dos padres furiosos...

—E aqui tens a victima que eu sou, Gustavo!

Era-o com effeito; e o typographo considerava-o [342] com uma admiração crescente. Já não era o Pacatinho, o escrevente do Nunes, o chichisbéo da rua da Misericordia—era uma victima das perseguições religiosas. Era a primeira que o typographo via; e, apesar de não lhe apparecer na attitude tradicional das estampas de propaganda, amarrado a um poste de fogueira ou fugindo com a familia espavorida a soldados que galopam da sombra do ultimo plano, achava-o interessante. Invejava-lhe secretamente aquella honra social. Que chic que lhe daria a elle entre a rapaziada d'Alcantara! Famosa pechincha, ser uma victima da reacção sem perder o conforto das iscas do tio Osorio e os salarios inteiros ao sabbado!—Mas sobretudo o procedimento dos padres enfurecia-o! Para se vingarem d'um liberal, intrigarem-no, tiraram-lhe a noiva!—Oh, que canalha!... E esquecendo os seus sarcasmos ao Casamento e á Familia, trovejou d'alto contra o clero, que é quem sempre destroe essa instituição social, perfeita, d'origem divina!

—Isso precisa uma vingança medonha, menino! É necessario arrasal-os!

Uma vingança? João Eduardo desejava-a, vorazmente! Mas qual?

—Qual? Contar tudo no Districto, n'um artigo tremendo!

João Eduardo citou-lhe as palavras do doutor Godinho: d'alli por diante o Districto estava fechado aos senhores livre-pensadores!

—Cavalgadura! rugiu o typographo. [343]

Mas tinha uma idéa, caramba! Publicar um folheto! Um folheto de vinte paginas, o que se chama no Brazil uma mofina, mas n'um estylo floreado (elle se encarregava d'isso), cahindo sobre o clero com um desabamento de verdades mortaes!

João Eduardo enthusiasmou-se. E diante d'aquella sympathia activa de Gustavo, vendo n'elle um irmão, soltou as ultimas confidencias, as mais dolorosas. O que havia no fundo da intriga era a paixão do padre Amaro pela pequena, e era para se apoderar d'ella que o escorraçava a elle... O inimigo, o malvado, o carrasco—era o parocho!

O typographo apertou as mãos na cabeça: semelhante caso (que todavia era para elle trivial, nas locaes que compunha) succedido a um amigo seu que estava alli bebendo com elle, a um democrata, parecia-lhe monstruoso, alguma coisa semelhante aos furores de Tiberio na velhice, violando, em banhos perfumados, as carnes delicadas de mancebos patricios.

Não queria acreditar. João Eduardo accumulou as provas. E então Gustavo, que tinha molhado vastamente de tinta as iscas de figado, ergueu os punhos fechados, e com a face entumecida, dente rilhado, berrou em rouco:

—Abaixo a religião!

Do outro lado do tabique uma voz trocista grasnou em réplica:

—Viva Pio Nono!

Gustavo ergueu-se para ir esbofetear o entremettido. Mas João Eduardo socegou-o. E o typographo, [344] sentando-se tranquillamente, rechupou o fundo do copo.

Então, com os cotovêlos sobre a mesa, a garrafa entre elles, conversaram baixo, de rosto a rosto, sobre o plano do folheto. A coisa era facil: escrevel-o-hiam ambos. João Eduardo queria-o em fórma de romance, d'enredo negro, dando ao personagem do parocho os vicios e as perversidades de Caligula e d'Hellogabalo. O typographo porém queria um livro philosophico, de estylo e de principios, que demolisse d'uma vez para sempre o Ultramontanismo! Elle mesmo se encarregava de imprimir a obra aos serões, gratis, já se sabe.—Mas appareceu-lhes então, bruscamente, uma difficuldade.

—O papel? Como se ha de arranjar o papel?

Era uma despeza de nove ou dez mil reis; nenhum os tinha—nem um amigo que, por dedicação aos principios, lh'os adiantasse.

—Pede-os ao Nunes por conta do teu ordenado! lembrou vivamente o typographo.

João Eduardo coçou desconsoladamente a cabeça. Estava justamente pensando no Nunes e na sua indignação de devoto, de membro da junta de parochia, d'amigo do chantre, apenas lêsse o pamphleto! E se soubesse que era o seu escrevente que o compuzera, com as pennas do cartorio, no papel almaço do cartorio... Via-o já rôxo de cólera, alçando sobre o bico dos sapatos brancos a sua pessoa gordalhufa, e gritando na voz de grillo:—«Fóra d'aqui, pedreiro-livre, fóra d'aqui!» [345]

—Ficava eu bem arranjado, disse João Eduardo muito sério, nem mulher nem pão!

Isto fez lembrar tambem a Gustavo a cólera provavel do doutor Godinho, dono da typographia. O doutor Godinho, que depois da reconciliação com a gente da rua da Misericordia, retomára publicamente a sua consideravel posição de pilar da Igreja e esteio da Fé...

—É o diabo, póde-nos sahir caro, disse elle.

—É impossivel! disse o escrevente.

Então praguejaram de raiva. Perder uma occasião d'aquellas para pôr a calva á mostra ao clero!

O plano do folheto, como uma columna tombada que parece maior, afigurava-se-lhes, agora que estava derrubado, d'uma altura, d'uma importancia colossal. Não era já a demolição local d'um parocho scelerado, era a ruina, ao longe e ao largo, de todo o clero, dos jesuitas, do poder temporal, de outras coisas funestas...—Maldição! se não fosse o Nunes, se não fosse o Godinho, se não fossem os nove mil reis do papel...

Aquelle perpetuo obstaculo do pobre, falta de dinheiro e dependencia do patrão, que até para um folheto era estorvo, revoltou-os contra a sociedade.

—Positivamente é necessario uma revolução! affirmou o typographo. É necessario arrasar tudo, tudo!—E o seu largo gesto sobre a mesa indicava, n'um formidavel nivelamento social, uma demolição de igrejas, palacios, bancos, quarteis e predios de Godinhos!—Outra do tinto, tio Osorio!... [346]

Mas o tio Osorio não apparecia. Gustavo martellou a mesa a toda a força com o cabo da faca. E emfim, furioso, sahiu fóra ao contador «para arrebentar a pansa áquelle vendido que fazia assim esperar um cidadão».

Encontrou-o desbarretado, radiante, conversando com o barão de Via-Clara, que, em vesperas d'eleições, vinha pelas casas de pasto apertar a mão aos compadres. E alli na taberna, parecia magnifico o barão, com a sua luneta d'ouro, os botins de verniz sobre o sólo terreo, tossicando ao cheiro acre do azeite fervido e das emanações das borras de vinho.

Gustavo, avistando-o, recolheu discretamente ao cubiculo.

—Está com o barão, disse n'uma surdina respeitosa.

Mas vendo João Eduardo aniquilado, com a cabeça entre os punhos, o typographo exhortou-o a não esmorecer. Que diabo! No fim, livrava-se de casar com uma beata...

—Não me poder vingar d'aquelle maroto! interrompeu João Eduardo com um repellão no prato.

—Não te afflijas, prometteu o typographo com solemnidade, que a vingança não vem longe!

Fez-lhe então, baixo, a confidencia «das coisas que se preparavam em Lisboa». Tinham-lhe afiançado que havia um club republicano a que até pertenciam figurões—o que era para elle uma garantia superior de triumpho. Além d'isso, a rapaziada do trabalho mexia-se... Elle mesmo—e murmurava [347] quasi contra a face de João Eduardo, estirado sobre a mesa—fôra fallado para pertencer a uma secção da Internacional, que devia organisar um hespanhol de Madrid; nunca vira o hespanhol, que se disfarçava por causa da policia; e a coisa falhára porque o Comité tinha falta de fundos... Mas era certo haver um homem, que possuia um talho, que promettera cem mil reis... O exercito, além d'isso, estava na coisa: tinha visto n'uma reunião um sujeito barrigudo que lhe tinham dito que era major, e que tinha cara de major...—De modo que, com todos estes elementos, a opinião d'elle Gustavo, era que dentro de mezes, governo, rei, fidalgos, capitalistas, bispos, todos esses monstros iam pelos ares!

—E então somos nós os reisinhos, menino! Godinho, Nunes, toda a cambada ferramol-a na enxovia de S. Francisco. Eu a quem me atiro é ao Godinho... Padres, derreamol-os á pancada! E o povo respira, emfim!

—Mas d'aqui até lá! suspirou João Eduardo, que pensava com amargura que quando a revolução viesse já seria tarde para recuperar a Ameliasinha...

O tio Osorio então appareceu com a garrafa.

—Ora até que emfim, «seu fidalgo»! disse o typographo a trasbordar de sarcasmo.

—Não se pertence á classe, mas é-se tratado por ella com consideração, replicou logo o tio Osorio, a quem a satisfação fazia parecer mais pansudo.

—Por causa de meia duzia de votos!

—Dezoito na freguezia, e esperanças de dezenove. [348] E que se ha de servir mais aos cavalheiros? Nada mais? Pois é pena. Então é beber-lhe, é beber-lhe!

E correu a cortina, deixando os dois amigos em frente da garrafa cheia, aspirarem a uma Revolução que lhes permittisse—a um rehaver a menina Amelia, a outro espancar o patrão Godinho.

Eram quasi cinco horas quando sahiram emfim do cubiculo. O tio Osorio, que se interessava por elles por serem rapazes d'instrucção, notou logo, examinando-os do canto do balcão onde saboreava o seu Popular, que «vinham tocaditos». João Eduardo, sobretudo, de chapéo carregado e beiço trombudo: «pessoa de mau vinho», pensou o tio Osorio, que o conhecia pouco. Mas o snr. Gustavo, como sempre, depois dos seus tres litros, resplandecia de jubilo. Grande rapaz! Era elle que pagava a conta; e gingando para o balcão, batendo d'alto com as suas duas placas:

—Encafua mais essas na burra, Osorio pipa!

—O que é pena é que sejam só duas, snr. Gustavo.

—Ah bandido! imaginas que o suor do povo, o dinheiro do trabalho é para encher a pansa dos Philistinos? Mas não as perdes! Que no dia do ajuste de contas quem ha de ter a honra de te furar esse bandulho ha de ser cá o Bibi... E o Bibi sou eu... Eu é que sou o Bibi! Não é verdade, João, quem é o Bibi?

João Eduardo não o escutava: muito carrancudo, olhava com desconfiança um borracho, que na mesa [349] do fundo, diante do seu litro vazio, com o queixo na palma da mão e o cachimbo nos dentes, embasbacára, maravilhado, para os dois amigos.

O typographo puxou-o para o balcão:

—Dize aqui ao tio Osorio quem é o Bibi! Quem é o Bibi?... Olhe p'ra isto, tio Osorio! Rapaz de talento, e dos bons! Veja-me isto! Com duas pennadas dá cabo do ultramontanismo! É cá dos meus! Tambem entre nós é p'r'á vida e p'r'á morte. Deixa lá a conta, Osorio barrigudo, ouve o que te digo! Este é dos bons... E se elle aqui voltar e quizer dois litros a credito, é dar-lh'os... Cá o Bibi responde por tudo.

—Temos pois, começou o tio Osorio, iscas a dois, salada a dois...

Mas o borracho arrancára-se com esforço ao seu banco: de cachimbo espetado, arrotando forte, veio plantar-se diante do typographo, e, tremeleando nas pernas, estendeu-lhe a mão aberta.

Gustavo considerou-o d'alto, com nojo:

—Que quer vossê? Aposto que foi vossê que berrou ha pouco «Viva Pio Nono»? Seu vendido... Tire p'ra lá a pata!

O borracho, repellido, grunhiu; e, embicando contra João Eduardo, offereceu-lhe a mão espalmada.

—Arrede p'ra lá, seu animal! disse-lhe o escrevente desabrido.

—Tudo amizade... Tudo amizade... resmungava o borracho.

E não se arredava, com os cinco dedos muito espetados, despedindo um halito fetido. [350]

João Eduardo, furioso, atirou-o de repellão contra o contador.

—Brincadeiras de mãos, não! exclamou logo severamente o tio Osorio. Brutalidades, não!

—Que se não mettesse commigo, rosnou o escrevente. E a vossê faço-lhe o mesmo...

—Quem não tem decencia vai p'r'á rua, disse muito grave o tio Osorio.

—Quem vai p'r'á rua, quem vai p'r'á rua? rugiu o escrevente, empinando-se, de punho fechado. Repita lá isso d'ir p'r'á rua! Com quem está vossê a fallar?

O tio Osorio não replicava, apoiado sobre as mãos ao balcão, patenteando os seus enormes braços que lhe faziam o estabelecimento respeitado.

Mas Gustavo, com auctoridade, poz-se entre os dois, e declarou que era necessario ser-se cavalheiro! Questões e más palavras, não! Podia-se chalacear e troçar os amigos, mas como cavalheiros! E alli só havia cavalheiros!

Arrastou para um canto o escrevente, que resmungava muito resentido.

—Oh, João! oh, João! dizia-lhe com grandes gestos, isso não é d'um homem illustrado!

Que diabo! Era necessario ter-se boas maneiras! Com repentes, com vinho desordeiro, não havia pandega, nem sociedade, nem fraternidade!

Voltou ao tio Osorio, fallando-lhe sobre o hombro, excitado:

—Eu respondo por elle, Osorio! É um cavalheiro! [351] Mas tem tido desgostos, e não está acostumado a um litro de mais. É o que é! Mas é dos bons... Vossê desculpe, tio Osorio. Que eu respondo por elle...

Foi buscar o escrevente, persuadiu-o a apertar a mão ao tio Osorio. O taberneiro declarou com emphase que não quizera insultar o cavalheiro. Os shake-hands então succederam-se com vehemencia. Para consolidar a reconciliação, o typographo pagou tres «canas brancas». João Eduardo, por brio, offereceu tambem um «giro» de cognac. E com os copos em fila sobre o balcão, trocavam boas palavras, tratavam-se de cavalheiros—emquanto o borracho, esquecido ao seu canto, derreado para cima da mesa, a cabeça sobre os punhos e o nariz sobre o litro, se babava silenciosamente, com o cachimbo cravado nos dentes.

—D'isto é que eu gósto! dizia o typographo a quem a aguardente augmentára a ternura. Harmonia! Cá o meu fraco é a harmonia! Harmonia entre a rapaziada e entre a humanidade... O que eu queria era vêr uma grande mesa, e toda a humanidade sentada n'um banquete, e fogo preso, e chalaça, e decidirem-se as questões sociaes! E o dia não vem longe em que vossê o ha de vêr, tio Osorio!... Em Lisboa as coisas vão-se preparando p'ra isso. E o tio Osorio é que ha de fornecer o vinho... Hein, que negociosinho! Diga que não sou amigo!

—Obrigado, snr. Gustavo, obrigado...

—Isto aqui entre nós, hein, que somos todos [352] cavalheiros! E cá este—abraçava João Eduardo—é como se fosse irmão! Entre nós é p'r'á vida e p'r'á morte! E é mandar a tristeza ao diabo, rapaz! Toca a escrever o folheto... O Godinho, e o Nunes...

—O Nunes racho-o! soltou com força o escrevente, que, depois das «saudes» com cana, parecia mais sombrio.

Dois soldados entraram então na taberna—e Gustavo julgou que eram horas d'ir para a typographia. Senão, não se haviam de separar todo o dia, não se haviam de separar toda a vida!... Mas o trabalho é dever, o trabalho é virtude!

Sahiram, emfim, depois de mais shake-hands com o tio Osorio. Á porta, Gustavo jurou ainda ao escrevente uma lealdade d'irmão; obrigou-o a aceitar a sua bolsa de tabaco; e desappareceu á esquina da rua, de chapéo para a nuca, trauteando o Hymno do trabalho.


João Eduardo, só, abalou logo para a rua da Misericordia. Ao chegar á porta da S. Joanneira, apagou com cuidado o cigarro na sola do sapato, e deu um puxão tremendo ao cordão da campainha.

A Ruça veio, correndo.

—A Ameliasinha? Quero-lhe fallar!

—As senhoras sahiram, disse a Ruça espantada do modo do snr. Joãosinho. [353]

—Mente, sua bebeda! berrou o escrevente.

A rapariga, aterrada, fechou a porta d'estalo.

João Eduardo foi-se encostar á parede defronte, e ficou alli, de braços cruzados, observando a casa: as janellas estavam fechadas, as cortinas de cassa corridas: dois lenços de rapé do conego seccavam em baixo na varanda.

Aproximou-se de novo e bateu devagarinho a aldrava. Depois repicou com furor a campainha. Ninguem appareceu: então, indignado, partiu para os lados da Sé.

Ao desembocar no largo, diante da fachada da igreja, parou, procurando em redor com o sobr'olho carregado: mas o largo parecia deserto; á porta da pharmacia do Carlos um rapazito, sentado no degrau, guardava pela arreata um burro carregado de herva; aqui e além, gallinhas iam picando o chão vorazmente; o portão da igreja estava fechado; e apenas se ouvia o ruido de martelladas n'uma casa ao pé em que havia obras.

E João Eduardo ia seguir para os lados da Alameda—quando appareceram no terraço da igreja, da banda da sacristia, o padre Silverio e o padre Amaro, conversando, devagar.

Batia então um quarto na torre, e o padre Silverio parou a acertar o seu cebolão. Depois os dois padres observaram maliciosamente a janella da administração, de vidraças abertas, onde se via, no escuro, o vulto do senhor administrador de binoculo cravado para a casa do Telles alfaiate. E desceram [354] emfim a escadaria da Sé, rindo d'hombro a hombro, divertidos com aquella paixão que escandalisava Leiria.

Foi então que o parocho viu João Eduardo que estacára no meio do largo. Parou para voltar á Sé decerto, evitar o encontro; mas viu o portão fechado, e ia seguir d'olhos baixos, ao lado do bom Silverio que tirava tranquillamente a sua caixa de rapé,—quando João Eduardo, arremessando-se, sem uma palavra, atirou a toda a força um murro ao hombro d'Amaro.

O parocho, aturdido, ergueu frouxamente o guardachuva.

—Acudam! berrou logo o padre Silverio, recuando de braços no ar. Acudam!

Da porta da administração um homem correu, agarrou furiosamente o escrevente pela gola:

—Está preso! rugia. Está preso!

—Acudam, acudam! berrava Silverio a distancia.

Janellas no largo abriam-se á pressa. A Amparo da botica, em saia branca, appareceu á varanda, espavorida; o Carlos precipitára-se do laboratorio em chinelas; e o senhor administrador, debruçado na sacada, bracejava, com o binoculo na mão.

Emfim o escrivão da administração, o Domingos, compareceu, muito grave, de mangas de lustrina enfiadas: e com o cabo de policia levou logo para a administração o escrevente, que não resistia, todo pallido...

O Carlos, esse, apressou-se a conduzir o senhor [355] parocho para a botica; fez preparar, com estrepito, flôr de laranja e ether; gritou pela esposa, para arranjar uma cama... Queria examinar o hombro de sua senhoria: haveria intumecencia?

—Obrigado, não é nada, dizia o parocho muito branco. Não é nada. Foi um raspão. Basta-me uma gota d'agua...

Mas a Amparo achava melhor um calix de vinho do Porto; e correu acima a buscar-lh'o, tropeçando nos pequenos que se lhe penduravam das saias, dando ais, explicando pela escada á criada que tinham querido matar o senhor parocho!

Á porta da botica juntára-se gente, que embascava para dentro; um dos carpinteiros que trabalhavam nas obras affirmava que «fôra uma facada»; e uma velha por traz debatia-se, de pescoço esticado, para vêr o sangue. Emfim, a pedido do parocho, que receava escandalo, o Carlos veio magestosamente declarar que não queria motim à porta! O senhor parocho estava melhor. Fôra apenas um sôco, um raspão de mão... Elle respondia por sua senhoria.

E, como o burro ao lado começára a ornear, o pharmaceutico voltando-se indignado para o rapazito que o segurava pela arreata:

—E tu não tens vergonha, no meio d'um desgosto d'estes, um desgosto para toda a cidade, de ficar aqui com esse animal, que não faz senão zurrar! Para longe, insolente, para longe!

Aconselhou então os dois sacerdotes a que subissem para a sala, para evitar a «curiosidade da populaça». [356] E a boa Amparo appareceu logo com dois calices do Porto, um para o senhor parocho, outro para o senhor padre Silverio que se deixára cahir a um canto do canapé, apavorado ainda, extenuado d'emoção.

—Tenho cincoenta e cinco annos, disse elle depois de ter chupado a ultima gota de porto, e é a primeira vez que me vejo n'um barulho!

O padre Amaro, mais socegado agora, affectando bravura, chasqueou o padre Silverio:

—Vossê tomou o caso muito ao tragico, collega... E lá ser a primeira, vamos lá... Todos sabem que o collega esteve pegado com o Natario...

—Ah, sim, exclamou o Silverio, mas isso era entre sacerdotes, amigo!

Mas a Amparo, ainda muito tremula, enchendo outro calix ao senhor parocho, quiz saber «os particulares, todos os particulares...»

—Não ha particulares, minha senhora, eu vinha aqui com o collega... Vinhamos cavaqueando... O homem chegou-se a mim, e, como eu estava desprevenido, deu-me um raspão no hombro.

—Mas porquê? porquê? exclamou a boa senhora, apertando as mãos, n'um assombro.

O Carlos então deu a sua opinião. Ainda havia dias, elle dissera, diante da Amparosinho e de D. Josepha, a irmã do respeitavel conego Dias, que estas idéas de materialismo e atheismo estavam levando a mocidade aos mais perniciosos excessos... E mal sabia elle então que estava prophetisando! [357]

—Vejam vossas senhorias este rapaz! Começa por esquecer todos os deveres de christão (assim nol-o affirmou D. Josepha), associa-se com bandidos, achincalha os dogmas nos botequins... Depois (sigam vossas senhorias a progressão), não contente com estes extravios, publica nos periodicos ataques abjectos contra a religião... E emfim, possuido de uma vertigem d'atheismo, atira-se, diante mesmo da cathedral, sobre um sacerdote exemplar (não é por vossa senhoria estar presente) e tenta assassinal-o! Ora, pergunto eu, o que ha no fundo de tudo isto? Odio, puro odio á religião de nossos paes!

Infelizmente assim é, suspirou o padre Silverio.

Mas a Amparo, indifferente ás causas philosophicas do delicto, ardia na curiosidade de saber o que se passaria na administração, o que diria o escrevente, se o teriam posto a ferros... O Carlos promptificou-se logo a ir averiguar.

De resto, disse elle, era o seu dever, como homem de sciencia, esclarecer a justiça sobre as consequencias que podia ter trazido um murro, a força de braço, na região delicada da clavicula... (ainda que, louvado Deus, não havia fractura, nem inchaço), e sobretudo queria revelar á auctoridade, para que ella tomasse as suas providencias, que aquella tentativa d'espancamento não provinha de vingança pessoal. Que podia ter feito o senhor parocho da Sé ao escrevente do Nunes? Provinha d'uma vasta conspiração d'atheus e republicanos contra o sacerdocio de Christo! [358]

—Apoiado, apoiado! disseram os dois sacerdotes gravemente.

—E é o que eu vou provar cabalmente ao senhor administrador do concelho!

Na sua precipitação zelosa de conservador indignado, ia mesmo de chinelas e quinzena de laboratorio: mas Amparo alcançou-o no corredor:

—Oh, filho! a sobrecasaca, põe a sobrecasaca ao menos, que o administrador é de ceremonia!

Ella mesmo lha ajudou a enfiar, emquanto o Carlos, com a imaginação trabalhando viva (aquella desgraçada imaginação que, como elle dizia, até ás vezes lhe dava dôres de cabeça), ia preparando o seu depoimento, que faria ruido na cidade. Fallaria de pé. Na saleta da administração seria um apparato judicial: á sua mesa, o senhor administrador, grave como a personificação da Ordem; em redor os amanuenses, activos sobre o seu papel sellado; e o réo, defronte, na attitude tradicional dos criminosos politicos, os braços cruzados sobre o peito, a fronte alta desafiando a morte. Elle, Carlos, então, entraria e diria: Senhor administrador, aqui venho espontaneamente pôr-me ao serviço da vindicta social!

—Hei de lhes mostrar, com uma logica de ferro, que é tudo resultado d'uma conspiração do racionalismo. Pódes estar certa, Amparosinho, é uma conspiração do racionalismo! disse, puxando, com um gemido d'esforço, as presilhas dos botins de cano. [359]

—E repara se elle falla da pequena, da S. Joanneira...

—Hei de tomar notas. Mas não se trata da S. Joanneira. Isto é um processo politico!

Atravessou o largo magestosamente, certo que os visinhos, pelas portas, murmuravam: Lá vai o Carlos depôr... Ia depôr, sim, mas não sobre o murro no hombro de sua senhoria. Que importava o murro? O grave era o que estava por traz do murro—uma conspiração contra a Ordem, a Igreja, a Carta e a Propriedade! É o que elle provaria d'alto ao senhor administrador. Este murro, excellentissimo senhor, é o primeiro excesso d'uma grande revolução social!

E empurrando o batente de baeta que dava accesso para a administração do concelho de Leiria, ficou um momento com a mão no ferrolho, enchendo o vão da porta da pompa da sua pessoa. Não, não havia o apparato judicial que elle concebera. O réo lá estava, sim, pobre João Eduardo, mas sentado á beira do banco, com as orelhas em braza, olhando estupidamente o soalho. Arthur Couceiro, embaraçado com a presença d'aquelle intimo dos serões da S. Joanneira, alli no assento dos presos, para o não olhar fixára o nariz sobre o immenso copiador d'officios, onde desdobrára o Popular da vespera. O amanuense Pires, de sobrancelhas muito erguidas e muito sérias, embebia-se na ponta da penna de pato que aparava sobre a unha. O escrivão Domingos, esse, sim, vibrava d'actividade! O seu lapis rascunhava com furor; o processo estava-se decerto apressando; [360] era tempo de trazer a sua idéa... E o Carlos então adiantando-se:

—Meus senhores! O senhor administrador?

Justamente a voz de sua excellencia chamou de dentro do seu gabinete:

—Ó snr. Domingos?

O escrivão perfilou-se, puxando os oculos para a testa.

—Senhor administrador!

—O senhor tem phosphoros?

O Domingos procurou anciosamente pela algibeira, na gaveta, entre os papeis...

—Algum dos senhores tem phosphoros?

Houve um rebuscar de mãos sobre a mesa... Não, não havia phosphoros.

—Ó snr. Carlos, o senhor tem phosphoros?

—Não tenho, snr. Domingos. Sinto.

O senhor administrador appareceu então, ageitando as suas lunetas de tartaruga:

—Ninguem tem phosphoros, hein? É extraordinario que não haja aqui nunca phosphoros! Uma repartição d'estas sem um phosphoro... Que fazem os senhores aos phosphoros? Mande buscar por uma vez meia duzia de caixas!

Os empregados olhavam-se consternados d'essa falta flagrante no material do serviço administrativo. E o Carlos, apoderando-se logo da presença e da attenção de sua excellencia:

—Senhor administrador, eu aqui venho... Aqui venho solicito e espontaneo, por assim dizer... [361]

—Diga-me uma coisa, snr. Carlos, interrompeu a auctoridade. O parocho e o outro ainda estão lá na botica?

—O senhor parocho e o senhor padre Silverio ficaram com minha esposa a repousar da commoção que...

—Tem a bondade de lhes ir dizer que são cá precisos...

—Eu estou á disposição da lei.

—Que venham quanto antes... São cinco horas e meia, queremo-nos ir embora! Vejam que massada tem sido esta aqui, todo o dia! A repartição fecha-se ás tres!

E sua excellencia, rodando sobre os tacões, foi debruçar-se á sacada do seu gabinete—áquella sacada d'onde elle diariamente, das onze ás tres, retorcendo o bigode louro e entesando o plastron azul, depravava a mulher do Telles.

O Carlos abria já o batente verde, quando um pst do Domingos o deteve.

—Ó amigo Carlos—e o sorrisinho do escrivão tinha uma supplicação tocante—desculpe, hein? Mas... Traz-me de lá uma caixita de phosphoros?

N'este momento à porta apparecia o padre Amaro; e por traz a massa enorme do Silverio.

—Eu desejava fallar ao senhor administrador em particular, disse Amaro.

Todos os empregados se ergueram; João Eduardo tambem, branco como a cal do muro. O parocho, com as suas passadas subtis d'ecclesiastico, atravessou [362] a repartição, seguido do bom Silverio que ao passar diante do escrevente descreveu d'esguelha um semi-circulo cauteloso, com terror ao réo; o senhor administrador acudira a receber suas senhorias; e a porta do gabinete fechou-se discretamente.

—Temos composição, rosnou o experiente Domingos, piscando o olho aos collegas.

O Carlos sentára-se descontente. Viera alli para esclarecer a auctoridade sobre os perigos sociaes que ameaçavam Leiria, o Districto e a Sociedade, para ter o seu papel n'aquelle processo, que, segundo elle, era um processo politico—e alli estava calado, esquecido, no mesmo banco ao lado do réo! Nem lhe tinham offerecido uma cadeira! Seria realmente intoleravel que as coisas se arranjassem entre o parocho e o administrador sem o consultarem a elle! Elle, o unico que percebera n'aquelle murro dado no hombro do padre—não o punho do escrevente, mas a mão do Racionalismo! Aquelle desdem pelas suas luzes parecia-lhe um erro funesto na administração do Estado. Positivamente o administrador não tinha a capacidade necessaria para salvar Leiria dos perigos da revolução! Bem se dizia na Arcada—era uma bambocha!

A porta do gabinete entreabriu-se, e as lunetas do administrador reluziram.

—Ó snr. Domingos, faz favor, vem-nos fallar? disse sua excellencia.

O escrivão apressou-se com importancia; e a [363] porta cerrou-se de novo, confidencialmente. Ah! aquella porta, fechada diante d'elle, deixando-o de fóra, indignava o Carlos. Alli ficava, com o Pires, com o Arthur, entre as intelligencias subalternas, elle que promettera á Amparosinho fallar d'alto ao administrador! E quem era ouvido, e quem era chamado? O Domingos, um animal notorio, que começava satisfação com um c cedilhado! Que se podia de resto esperar d'uma auctoridade que passava as manhãs de binoculo a deshonrar uma familia? Pobre Telles, seu visinho, seu amigo!... Não, realmente devia fallar ao Telles!

Mas a sua indignação cresceu quando viu o Arthur Couceiro, um empregado da repartição, na ausencia do seu chefe, erguer-se da sua escrivaninha, vir familiarmente junto do réo, dizer-lhe com melancolia:

—Ah, João, que rapaziada, que rapaziada!... Mas a coisa arranja-se, verás!

João tinha encolhido tristemente os hombros. Havia meia hora que alli estava, sentado á beira d'aquelle banco, sem se mexer, sem despregar os olhos do soalho, sentindo-se interiormente tão vazio de idéas, como se lhe tivessem tirado os miolos. Todo o vinho, que na taberna do Osorio e no largo da Sé lhe accendia na alma fogachos de cólera, lhe retesava os pulsos n'um desejo de desordem, parecia subitamente eliminado do seu organismo. Sentia-se agora tão inoffensivo como quando no cartorio aparava cautelosamente a sua penna [364] de pato. Um grande cansaço entorpecia-o; e alli esperava, sobre o banco, n'uma inercia de todo o seu sêr, pensando estupidamente que ia viver para uma enxovia em S. Francisco, dormir n'uma palhoça, comer da Misericordia... Não tornaria a passear na Alameda, não veria mais Amelia... A casita em que vivia seria alugada a outro... Quem tomaria conta do seu canario? Pobre animalzinho, ia morrer de fome, decerto... A não ser que a Eugenia, a visinha, o recolhesse...

O Domingos de repente sahiu do gabinete de sua excellencia, e fechando vivamente a porta sobre si, em triumpho:

—Que lhes dizia eu? Composição! Arranjou-se tudo!

E para João Eduardo:

—Seu felizão! Parabens! parabens!

O Carlos pensou que era aquelle o maior escandalo administrativo desde o tempo dos Cabraes! E ia retirar-se enojado (como no quadro classico o Stoico que se afasta d'uma orgia patricia) quando o senhor administrador abriu a porta do seu gabinete. Todos se ergueram.

Sua excellencia deu dois passos na repartição, e revestido de gravidade, distillando as palavras, com as lunetas cravadas no réo:

—O senhor padre Amaro, que é um sacerdote todo caridade e bondade, veio-me expôr... Emfim, veio-me supplicar que não désse mais andamento a este negocio... Sua senhoria com razão não quer [365] vêr o seu nome arrastado nos tribunaes. Além d'isso, como sua senhoria disse muito bem, a religião, de que elle é... de que elle é, posso dizel-o, a honra e o modêlo, impõe-lhe o perdão da offensa... Sua senhoria reconhece que o ataque foi brutal, mas frustrado... Além d'isso parece que o senhor estava bebedo...

Todos os olhos se fixaram em João Eduardo, que se fez escarlate. Aquillo pareceu-lhe n'esse momento peor que a prisão.

—Emfim, continuou o administrador, por altas considerações que eu pesei devidamente, tomo a responsabilidade de o soltar. Veja agora como se porta. A auctoridade não o perde d'olho... Bem, póde ir com Deus!

E sua excellencia recolheu-se ao gabinete. João Eduardo ficou immovel, como parvo.

—Posso ir, hein? balbuciou.

—P'r'á China, p'ra onde quizer! Liberus, libera, liberum! exclamou o Domingos que, interiormente detestando padres, jubilava com aquelle final.

João Eduardo olhou um momento em redor os empregados, o carrancudo Carlos; duas lagrimas bailavam-lhe nas palpebras; de repente agarrou o chapéo e abalou.

—Poupa-se um rico trabalhinho! resumiu o Domingos, esfregando vivamente as mãos.

Immediatamente a papelada foi arrumada, aqui e além, á pressa. É que era tarde! O Pires recolhia as suas mangas de lustrina e a sua almofadinha de [366] vento. O Arthur enrolou os seus papeis de musica. E no vão da janella, amuado, esperando ainda, o Carlos olhava sombriamente o largo.

Emfim os dois padres sahiram acompanhados até á porta pelo senhor administrador, que, terminados os deveres publicos, reapparecia homem de sociedade.—Então porque não tinha o amigo Silverio vindo a casa da baroneza de Via-Clara? Houvera um voltarete furibundo. O Peixoto levára dois codilhos. Tinha dito blasphemias medonhas!... Criado de suas senhorias. Estimava bem que tudo se tivesse harmonisado. Cuidado com o degrau... Ás ordens de suas senhorias...

Ao voltar porém ao seu gabinete dignou-se parar diante da mesa do Domingos, e retomando alguma solemnidade:

—A coisa passou-se bem. É um bocado irregular, mas sensata! Bem basta já os ataques que ha contra o clero nos jornaes... A coisa podia fazer barulho. O rapaz era capaz de dizer que tinham sido ciumes do padre, que queria desinquietar a rapariga, etc. É mais prudente abafar a coisa... Quanto mais que, segundo o parocho me provou, toda a influencia que elle tem exercido na rua da Misericordia ou onde diabo é, tem tido por fim livrar a rapariga de casar com aquelle amigo, que, como se vê, é um bebedo e uma fera!

O Carlos roia-se. Todas aquellas explicações eram dadas ao Domingos! A elle, nada! Alli ficava, esquecido no vão da janella! [367]

Mas não! Sua excellencia, de dentro do seu gabinete, chamou-o mysteriosamente com o dedo.

Emfim! Precipitou-se, radiante, subitamente reconciliado com a auctoridade.

—Eu estava para passar pela botica—disse-lhe o administrador baixo e sem transição, dando-lhe um papel dobrado—para que me mandasse isto a casa, hoje. É uma receita do doutor Gouvêa... Mas já que o amigo aqui está...

—Eu tinha vindo para me pôr á disposição da vindicta...

—Isso está acabado! interrompeu vivamente sua excellencia. Não se esqueça, mande-me isso antes das seis. É para tomar ainda esta noite. Adeus. Não se esqueça!

—Não faltarei, disse sêccamente o Carlos.

Ao entrar na botica, a sua cólera flammejava. Ou elle não se chamava Carlos, ou havia de mandar uma correspondencia tremenda ao Popular!... Mas a Amparo, que lhe espreitára a volta da varanda, correu, atirando-lhe as perguntas:

—Então? Que se passou? O rapaz foi p'r'á rua? Que disse elle? Como foi?

O Carlos fixava-a, com as pupillas chammejantes.

—Não foi culpa minha, mas triumphou o materialismo! Elles o pagarão!

—Mas tu que disseste?

Então, vendo os olhos da Amparo e os do praticante abertos para devorar a citação do seu depoimento—o Carlos, tendo de resalvar a dignidade de [368] esposo e a superioridade de patrão, disse laconicamente:

—Dei a minha opinião, com firmeza!

—E elle que disse, o administrador?

Foi então que o Carlos, recordando-se, leu a receita que amarrotára na mão. A indignação emmudeceu-o—vendo que era aquelle todo o resultado da sua grande entrevista com a auctoridade!

—Que é? perguntou sôfregamente a Amparo.

O que era? E no seu furor, desdenhando o segredo profissional e o bom renome da auctoridade, o Carlos exclamou:

—É um frasco de xarope de Gibert para o senhor administrador! Ahi tem a receita, snr. Augusto.

A Amparo, que, com alguma pratica de pharmacia, conhecia os beneficios do mercurio, fez-se tão escarlate como as fitas flammejantes que lhe enfeitavam a cuia.


Toda essa tarde se fallou com excitação pela cidade «da tentativa d'assassinato de que estivera para ser victima o senhor parocho». Algumas pessoas censuravam o administrador por não ter procedido: os cavalheiros da opposição sobretudo, que viram na debilidade d'aquelle funccionario uma prova incontestavel de que o governo ia, com os seus desperdicios e as suas corrupções, levando o paiz a um abysmo! [369]

Mas o padre Amaro, esse, era admirado como um santo. Que piedade! que mansidão! O senhor chantre mandou-o chamar á noitinha, recebeu-o paternalmente com um «viva o meu cordeiro paschal»! E depois de escutar a historia do insulto, a generosa intervenção...

—Filho, exclamou, isso é alliar a mocidade de Telemacho á prudencia de Mentor! Padre Amaro, vossê era digno de ser sacerdote de Minerva na cidade de Salento!

Quando Amaro entrou á noite em casa da S. Joanneira—foi como a apparição d'um santo escapo ás feras do Circo ou á plebe de Diocleciano! Amelia, sem disfarçar a sua exaltação, apertou-lhe ambas as mãos, muito tempo, toda tremula, com os olhos humidos. Deram-lhe, como nos grandes dias, a poltrona verde do conego. A snr.a D. Maria da Assumpção quiz mesmo que se lhe puzesse uma almofada para elle apoiar o hombro dorido. Depois teve de contar miudamente toda a scena, desde o momento em que, conversando com o collega Silverio (que se portára muito bem), avistára o escrevente no meio do largo, de bengalão alçado e ar de matamouros...

Aquelles detalhes indignavam as senhoras. O escrevente apparecia-lhes peor que Longuinhos e que Pilatos. Que malvado! O senhor parocho devia-o ter calcado aos pés! Ah! era d'um santo, ter perdoado!

—Fiz o que me inspirou o coração, disse elle [370] baixando os olhos. Lembrei-me das palavras de Nosso Senhor Jesus Christo: elle manda offerecer a face esquerda depois de se ter sido esbofeteado na face direita...

O conego, a isto, escarrou grosso e observou:

—Eu lhe digo. Eu, se me atirarem um bofetão á face direita... Emfim, são ordens de Nosso Senhor Jesus Christo, offereço a face esquerda. São ordens de cima!... Mas depois de ter cumprido esse dever de sacerdote, oh, senhoras, desanco o patife!

—E doeu-lhe muito, senhor parocho? perguntou do canto uma vozinha expirante e desconhecida.

Acontecimento extraordinario! Era a snr.a D. Anna Gansoso que fallára depois de dez longos annos de taciturnidade somnolenta! Aquelle torpor que nada sacudira, nem festas, nem lutos, tinha emfim, sob um impulso de sympathia pelo senhor parocho, uma vibração humana!—Todas as senhoras lhe sorriram, agradecidas, e Amaro, lisonjeado, respondeu com bondade:

—Quasi nada, snr.a D. Anna, quasi nada, minha senhora... Que elle deu de rijo! Mas eu sou de boa carnadura.

—Ai, que monstro! exclamou D. Josepha Dias, furiosa á idéa do punho do escrevente descarregado sobre aquelle hombro santo. Que monstro! Eu queria-o vêr com uma grilheta a trabalhar na estrada! Que eu é que o conhecia! A mim nunca elle me enganou... Sempre lhe achei cara d'assassino! [371]

—Estava embriagado, homens com vinho... arriscou timidamente a S. Joanneira.

Foi um clamor. Ai, que o não desculpasse! Parecia até sacrilegio! Era uma fera, era uma fera!

E a exultação foi grande quando Arthur Couceiro, apparecendo, deu logo da porta a novidade, a ultima: o Nunes mandára chamar o João Eduardo e dissera-lhe (palavras textuaes): «Eu, bandidos e malfeitores não os quero no meu cartorio. Rua!»

A S. Joanneira então commoveu-se:

—Pobre rapaz, fica sem ter que comer...

—Que beba! que beba! gritou a snr.a D. Maria da Assumpção.

Todos riram. Só Amelia, curvada sobre a sua costura, se fizera muito pallida, aterrada áquella idéa que João Eduardo teria talvez fome...

—Pois olhem, não acho caso para rir! disse a S. Joanneira. É até coisa que me vai tirar o somno... Pensar que o rapaz ha de querer um bocado de pão e não ha de ter... Credo! Não, isso não! E o senhor padre Amaro desculpe...

Mas Amaro tambem não desejava que o rapaz cahisse em miseria! Não era homem de rancor, elle! E se o escrevente viesse á sua porta com necessidade, duas ou tres placas (não era rico, não podia mais), mas tres ou quatro placas dava-lh'as... Dava-lh'as de coração.

Tanta santidade fanatisou as velhas. Que anjo! Olhavam-n'o, babosas, com as mãos vagamente postas. A sua presença, como a d'um S. Vicente de Paulo, [372] exhalando caridade, dava á sala uma suavidade de capella: e a snr.a D. Maria da Assumpção suspirou de gozo devoto.

Mas Natario appareceu, radiante. Deu grandes apertos de mãos em redor, rompeu em triumpho:

—Então já sabem? O patife, o assassino, escorraçado de toda a parte como um cão! O Nunes expulsou-o do cartorio. O doutor Godinho disse-me agora que no governo civil não punha elle os pés. Enterrado, demolido! É um allivio p'r'á gente de bem!

—E ao senhor padre Natario se deve! exclamou D. Josepha Dias.

Todos o reconheciam. Fôra elle, com a sua habilidade, a sua labia, que descobrira a perfidia de João Eduardo, salvára a Ameliasinha, Leiria, a Sociedade.

—E em tudo o que pretender, o maroto, ha de me encontrar pela frente. Emquanto elle estiver em Leiria não o largo! Que lhes disse eu, minhas senhoras?... «Eu é que o esmago!» Pois ahi o têm esmagado!

A sua face biliosa resplandecia. Estirou-se na poltrona, regaladamente, no repouso merecido de uma victoria difficil. E voltando-se para Amelia:

—E agora, o que lá vai, lá vai! Livrou-se de uma fera, é o que lhe posso dizer!

Então os louvores—que já lhe tinham repetido prolixamente desde que ella rompera com a fera—recomeçaram, mais vivos:

—Foi a coisa de mais virtude que tens feito em toda a tua vida! [373]

—É a graça de Deus que te tocou!

—Estás em graça, filha!

—Emfim é Santa Amelia, disse o conego erguendo-se, enfastiado d'aquellas glorificações. Pois parece-me que temos fallado bastante do patife... Mande agora a senhora vir o chá, hein?

Amelia permanecia calada, cosendo á pressa; erguia ás vezes rapidamente para Amaro um olhar desassocegado; pensava em João Eduardo, nas ameaças de Natario; e imaginava o escrevente com as faces encovadas de fome, foragido, dormindo pelas portas dos casaes... E emquanto as senhoras se accommodavam, palrando, á mesa do chá, ella pôde dizer baixo a Amaro:

—Não posso socegar com a idéa que o rapaz soffra necessidades... Eu bem sei que é um malvado, mas... É como um espinho cá por dentro. Tira-me toda a alegria.

O padre Amaro disse-lhe então, com muita bondade, mostrando-se superior á injuria, n'um alto espirito de caridade christã:

—Minha rica filha, são tolices... O homem não morre de fome. Ninguem morre de fome em Portugal. É novo, tem saude, não é tolo, ha de se arranjar... Não pense n'isso... Aquillo é palavriado do padre Natario... O rapaz naturalmente sae de Leiria, não tornamos a ouvir fallar d'elle... E em toda a parte ha de ganhar a vida... Eu por mim perdoei-lhe, e Deus ha de tomar isso em conta.

Estas palavras tão generosas, ditas baixo, com [374] um olhar amante, tranquillisaram-na inteiramente. A clemencia, a caridade do senhor parocho pareceram-lhe melhores que tudo o que ouvira ou lera de santos e de monges piedosos.

Depois do chá, ao quino, ficou junto d'elle. Uma alegria plena e suave penetrava-a deliciosamente. Tudo o que até ahi a importunára e a assustára, João Eduardo, o casamento, os deveres, desapparecera emfim da sua vida: o rapaz iria para longe, empregar-se—e o senhor parocho alli estava, todo d'ella, todo apaixonado! Por vezes, por baixo da mesa, os seus joelhos tocavam-se, a tremer: n'um momento em que todos faziam um alarido indignado contra Arthur Couceiro que pela terceira vez quinára e brandia o cartão triumphante, foram as mãos que se encontraram, se acariciaram; um pequeno suspiro simultaneo, perdido na gralhada das velhas, ergueu o peito d'ambos; e até ao fim da noite foram marcando os seus cartões, muito calados, com as faces accêsas, sob a pressão brutal do mesmo desejo.

Emquanto as senhoras se agasalhavam, Amelia aproximou-se do piano para correr uma escala, e Amaro pôde murmurar-lhe ao ouvido:

—Oh, filhinha, que te quero tanto! E não podermos estar sós...

Ella ia responder—quando a voz de Natario, que se embrulhava no seu capote ao pé do aparador, exclamou, muito severa:

—Então as senhoras deixam andar por aqui semelhante livro? [375]

Todos se voltaram, na surpreza que dava aquella indignação, a olhar o largo volume encadernado que Natario indicava com a ponta do guardachuva, como um objecto abominavel. D. Maria da Assumpção aproximou-se logo d'olho reluzente, imaginando que seria alguma d'essas novellas, tão famosas, em que se passam coisas immoraes. E Amelia chegando-se tambem, disse, admirada de tal reprovação:

—Mas é o Panorama... É um volume do Panorama...

—Que é o Panorama vejo eu, disse Natario com seccura. Mas tambem vejo isto.—Abriu o volume na primeira pagina branca, e leu alto:—«Pertence-me este volume a mim, João Eduardo Barbosa, e serve-me de recreio nos meus ocios.» Não comprehendem, hein? Pois é muito simples... Parece incrivel que as senhoras não saibam que esse homem, desde que poz as mãos n'um sacerdote, está ipso facto excommungado, e excommungados todos os objectos que lhe pertencem!

Todas as senhoras, instinctivamente, afastaram-se do aparador onde jazia aberto o Panorama fatal, arrebanhando-se, n'um arripiamento de medo, áquella idéa da Excommunhão que se lhes representava como um desabamento de catastrophes, um aguaceiro de raios despedidos das mãos do Deus Vingador: e alli ficaram mudas, n'um semi-circulo apavorado, em torno de Natario, que, de capotão pelos hombros e braços cruzados, gozava o effeito da sua revelação. [376]

Então a S. Joanneira, no seu assombro, arriscou-se a perguntar:

—O senhor padre Natario está a fallar sério?

Natario indignou-se:

—Se estou a fallar sério!? Essa é forte! Pois eu havia de gracejar sobre um caso d'excommunhão, minha senhora? Pergunte ahi ao senhor conego se eu estou a gracejar!

Todos os olhos se voltaram para o conego, essa inesgotavel fonte de saber ecclesiastico.

Elle então, tomando logo o ar pedagogico que lhe voltava dos seus antigos habitos do seminario sempre que se tratava de doutrina, declarou que o collega Natario tinha razão. Quem espanca um sacerdote, sabendo que é um sacerdote, está ipso facto excommungado. É doutrina assente. É o que se chama a excommunhão latente; não necessita a declaração do pontifice ou do bispo, nem o ceremonial, para ser valida, e para que todos os fieis considerem o offensor como excommungado. Devem-no tratar portanto como tal... Evital-o a elle, e ao que lhe pertence... E este caso de pôr mãos sacrilegas n'um sacerdote era tão especial, continuava o conego n'um tom profundo, que a bulla do Papa Martinho V, limitando os casos de excommunhão tacita, conserva-a todavia para o que maltrata um sacerdote...—Citou ainda mais bullas, as Constituições de Innocencio IX e de Alexandre VII, a Constituição Apostolica, outras legislações temerosas; rosnou latins, aterrou as senhoras. [377]

—Esta é a doutrina, concluiu dizendo; mas a mim parece-me melhor não se fazer d'isso espalhafato...

D. Josepha Dias acudiu logo:

—Mas nós é que não podemos arriscar a nossa alma a encontrar aqui por cima das mesas coisas excommungadas.

—É destruir! exclamou D. Maria da Assumpção. É queimar! é queimar!

D. Joaquina Gansoso arrastára Amelia para o vão da janella, perguntando-lhe se tinha outros objectos pertencentes ao homem. Amelia, atarantada, confessou que tinha algures, não sabia onde, um lenço, uma luva desirmanada, e uma cigarreira de palhinha.

—É para o fogo, é para o fogo! gritava a Gansoso excitada.

A sala vibrava agora com a gralhada das senhoras, arrebatadas n'um furor santo. D. Josepha Dias, D. Maria da Assumpção fallavam com gozo do fogo, enchendo a boca com a palavra, n'uma delicia inquisitorial de exterminação devota. Amelia e a Gansoso, no quarto, rebuscavam pelas gavetas, por entre a roupa branca, as fitas e as calcinhas, á caça dos «objectos excommungados». E a S. Joanneira assistia, attonita e assustada, áquelle alarido d'auto-de-fé que atravessava bruscamente a sua sala pacata, refugiada ao pé do conego, que depois de ter rosnado algumas palavras sobre «a Inquisição em casas particulares», se enterrára commodamente na poltrona.

—É para lhes fazer sentir que se não perde impunemente [378] o respeito á batina, dizia Natario baixo a Amaro.

O parocho assentiu, com um gesto mudo de cabeça, contente d'aquellas cóleras beatas que eram como a affirmação ruidosa do amor que lhe tinham as senhoras.

Mas D. Josepha impacientava-se. Agarrára já o Panorama com as pontas do chale, para evitar o contagio, e gritava para dentro, para o quarto, onde continuava pelos gavetões uma rebusca furiosa:

—Então appareceu?

—Cá está, cá está!

Era a Gansoso que entrava triumphante com a cigarreira, a velha luva e o lenço de algodão.

E as senhoras, em alarido, arremetteram para a cozinha. A mesma S. Joanneira as seguiu, como boa dona de casa, para fiscalisar a fogueira.

Os tres padres então, sós, olharam-se—e riram.

—As mulheres têm o diabo no corpo, disse o conego philosophicamente.

—Não senhor, padre-mestre, não senhor, acudiu logo Natario fazendo-se sério. Eu rio porque a coisa, assim vista, parece patusca. Mas o sentimento é bom. Prova a verdadeira devoção ao sacerdocio, horror á impiedade... Emfim o sentimento é excellente.

—O sentimento é excellente, confirmou Amaro, tambem sério.

O conego ergueu-se:

—E é que se pilhassem o homem eram capazes de o queimar... Não lh'o digo a brincar, que a mana [379] tem figados para isso... É um Torquemada de saias...

—Está na verdade, está na verdade, affirmou Natario.

—Eu não resisto a ir vêr a execução! exclamou o conego. Eu quero vêr com os meus olhos!

E os tres padres então foram até á porta da cozinha. As senhoras lá estavam, em pé diante da lareira, batidas da luz violenta da fogueira que fazia destacar estranhamente as mantas d'agasalho de que já se tinham coberto. A Ruça, de joelhos, soprava esfalfada. Tinham cortado com o facão a encardernação do Panorama; e as folhas retorcidas e negras, com um faiscar de fagulhas, voavam pela chaminé nas linguas do fogo claro. Só a luva de pellica não se consumia. Debalde com as tenazes a punham no vivo da chamma: tisnava, reduzida a um caroço engorolado; mas não ardia. E a sua resistencia aterrava as senhoras.

—É que é a da mão direita com que commetteu o desacato! dizia furiosa D. Maria da Assumpção.

—Bufa-lhe, rapariga, bufa-lhe! aconselhava da porta o conego muito divertido.

—O mano faz favor de não troçar com coisas sérias! gritou D. Josepha.

—Oh, mana! a senhora quer saber melhor que um sacerdote como é que se queima um impio? A pretenção não está má! É bufar-lhe, é bufar-lhe!

Então, confiadas na sciencia do senhor conego, a Gansoso e D. Maria da Assumpção, acocoradas, bufaram [380] tambem. As outras olhavam, n'um sorriso mudo, o olho brilhante e cruel, no gozo d'aquella exterminação grata a Nosso Senhor. O fogo estalava, pulando com uma força galharda, na gloria da sua antiga funcção de purificador dos peccados.—E por fim sobre as achas em braza, nada restou do Panorama, do lenço e da luva do impio.

A essa hora João Eduardo, o impio, no seu quarto, sentado aos pés da cama, soluçava, com a face banhada em lagrimas, pensando em Amelia, nos bons serões da rua da Misericordia, na cidade para onde iria, na roupa que empenharia, e perguntando em vão a si mesmo porque o tratavam assim, elle que era tão trabalhador, que não queria mal a ninguem, e que a adorava tanto, a ella?



XVI



No domingo seguinte havia missa cantada na Sé, e a S. Joanneira e Amelia atravessaram a Praça para ir buscar D. Maria da Assumpção, que em dias de mercado e de «populacho» nunca sahia só, receosa que lhe roubassem as joias ou lhe insultassem a castidade.

N'essa manhã, com effeito, a affluencia das freguezias enchia a Praça: os homens em grupo, atravancando a rua, muito sérios, muito barbeados, de jaqueta ao hombro; as mulheres aos pares, com uma fortuna de grilhões e de corações d'ouro sobre peitos pejados; nas lojas, os caixeiros azafamavam-se por traz dos balcões alastrados de lençaria e de chitas; nas tabernas apinhadas gralhava-se alto; pelo mercado, entre os saccos de farinha, os montões de [382] louça, os cestos de brôa, ia um regatear sem fim; havia multidão ao pé das tendas onde reluzem os espelhinhos redondos e transbordam os mólhos de rosarios; velhas faziam pregão por traz dos seus taboleiros de cavacas; e os pobres, afreguezados á cidade, choramingavam Padre-nossos pelas esquinas.

Já senhoras passavam para a missa, todas em sêdas, de rostinho sisudo; e a Arcada estava cheia de cavalheiros, têsos nos seus fatos de casimira nova, fumando caro, gozando o domingo.

Amelia foi muito olhada: o filho do recebedor, um atrevido, disse mesmo alto d'um grupo: Ai, que me leva o coração! E as duas senhoras, apressando-se, dobravam para a rua do Correio, quando lhes appareceu o Libaninho de luvas pretas e cravo ao peito. Não as tinha visto desde «o desacato do largo da Sé», e rompeu logo em exclamações. Ai, filhas, que desgosto aquelle! O malvado do escrevente! Elle tinha tido tanto que fazer, que só n'essa manhã é que pudera ir ao senhor parocho dar-lhe os sentimentos; o santinho recebera-o muito bem, estava-se a vestir; elle quiz-lhe vêr o braço e felizmente, louvores a Deus, nem uma pisadura... E se ellas vissem, que carnadura tão delicada, que pelle tão branca... Uma pellinha d'archanjo!

—Mas querem vossês saber, filhas? Encontrei-o n'uma grande afflicção!

As duas senhoras assustaram-se. Porquê, Libaninho?

A criada, a Vicencia, que havia dias se queixava, [383] tinha ido n'essa madrugada para o hospital com um febrão...

—E alli está o pobre santo sem criada, sem nada! Vejam vossês! Para hoje bem, que vai jantar com o nosso conego (tambem lá estive, ai, que santo!), mas ámanhã, mas depois? Que elle já tem em casa a irmã da Vicencia, a Dionysia... Mas, oh, filhas, a Dionysia! Foi o que eu lhe disse: a Dionysia póde ser uma santa, mas que reputação!... É que não ha peor em Leiria... Uma perdida que não põe os pés na igreja... Tenho a certeza que o senhor chantre até havia de reprovar!

As duas senhoras concordaram logo que a Dionysia (mulher que não cumpria os preceitos, que representára em theatros de curiosos) não convinha ao senhor parocho...

—Olha, S. Joanneira, disse Libaninho, sabes o que lhe convinha? Eu lá lh'o disse, lá lhe fiz a proposta. É ferrar-se outra vez em tua casa. Que é onde está bem, com gente que o acarinha, que lhe trata da roupa, que lhe sabe os gostos, e onde tudo é virtude! Elle não disse que não nem que sim. Mas olha que se lhe podia lêr na cara que está a morrer por isso... Tu é que lhe devias fallar, S. Joanneirinha!

Amelia fizera-se tão escarlate como a sua gravata de sêda da India. E a S. Joanneira disse ambiguamente:

—Fallar-lhe não... Eu n'essas coisas sou muito delicada... Bem comprehendes... [384]

—Era como teres um santo de portas a dentro, filha! disse com calor o Libaninho. Lembra-te d'isso! E era um gosto para todos... Tenho a certeza que até Nosso Senhor se havia d'alegrar... E agora adeus, pequenas, que vou de fugida. Não vos demoreis, que está a missinha a cahir.

As duas senhoras continuaram caladas até casa de D. Maria da Assumpção. Nenhuma queria arriscar primeiro uma palavra sobre aquella possibilidade tão inesperada, tão grave, do senhor parocho voltar para a rua da Misericordia! Foi só quando pararam que a S. Joanneira disse, ao puxar à campainha:

—Ai, o senhor parocho realmente não póde ter a Dionysia de portas a dentro...

—Credo, até causa horror!

Foi tambem a expressão da snr.a D. Maria da Assumpção quando lhe contaram, em cima, a doença da Vicencia e a installação da Dionysia: causava horror!

—Que eu não a conheço, disse a excellente senhora. E tenho até vontade de a conhecer. Que me dizem que é dos pés à cabeça uma crosta de peccado!

A S. Joanneira então fallou da «proposta do Libaninho». D. Maria da Assumpção declarou logo com ardor que era uma inspiração de Nosso Senhor. Que nunca o senhor parocho devia ter sahido da rua da Misericordia! Até parece que mal elle se fôra embora, Deus retirára a sua graça da casa... Não houvera senão desgostos—o Communicado, a dôr de estomago do conego, a morte da entrevadinha, aquelle [385] desgraçado casamento (que estivera por um triz, que horror!), o escandalo do largo da Sé... A casa tinha parecido enguiçada!... E era até peccado deixar viver o santinho n'aquelle desarranjo, com a suja da Vicencia, que nem lhe sabia dar uma passagem nas meias!

—Em parte nenhuma póde estar melhor que em tua casa... Tem tudo o que necessita, de portas a dentro... E para ti é uma honra, é estar em graça. Olha, filha, se eu não fosse só, sempre o digo, quem o hospedava era eu! Que aqui é que elle estava bem... Que salinha para elle, hein?

Riam-se-lhe os olhos, contemplando em redor as suas preciosidades.

A sala com effeito era toda ella uma immensa armazenagem de santaria e de bric-à-brac devoto: sobre as duas commodas de pau preto com fechaduras de cobre apinhavam-se, sob redomas, em peanhas, as Nossas Senhoras vestidas de sêda azul, os Meninos Jesus frizados com o ventresinho gordo e a mão abençoadora, os Santo Antonios no seu burel, os S. Sebastiões bem fréchados, os S. Josés barbudos. Havia santos exoticos, que eram o seu orgulho, que lhe fabricavam em Alcobaça—S. Paschoal Baylão, S. Didacio, S. Chrisolo, S. Gorislano... Depois eram os bentinhos, os rosarios de metal e de caroços d'azeitonas, contas de côres, rendas amarellas d'antigas alvas, corações de vidro escarlate, almofadinhas com J. M. entrelaçados a missanga, ramos bentos, palmas de martyres, cartuchinhos d'incenso. [386] As paredes desappareciam forradas de estampas de Virgens de todas as devoções,—equilibradas sobre o orbe, enrodilhadas aos pés da cruz, trespassadas d'espadas. Corações d'onde gotejava sangue, corações d'onde sahia uma fogueira, corações d'onde dardejavam raios: orações encaixilhadas para as festas particularmente amadas—o Casamento de Nossa Senhora, a Invenção da Santa Cruz, os Estigmas de S. Francisco, sobretudo o Parto da Santa Virgem, a mais devota, que vem pelas quatro temporas. Sobre as mesas lamparinas accêsas, para serem collocadas sem demora aos santos especiaes, quando a boa senhora tivesse a sua sciatica, ou que o catarrho se assanhasse, ou lhe viessem as caimbras. Ella mesma, só ella, arrumava, espanejava, lustrava toda aquella santa população celeste, aquelle arsenal beato, que era apenas sufficiente para a salvação da sua alma e o allivio dos seus achaques. O seu grande cuidado era a collocação dos santos; alterava-a constantemente, porque ás vezes, por exemplo, sentia que Santo Eleuterio não gostava d'estar ao pé de S. Justino, e ia então pendural-o a distancia, n'uma companhia mais sympathica ao santo. E distinguia-os (segundo os preceitos do ritual que o confessor lhe explicava), dando-lhes uma devoção graduada, e não tendo por S. José de segunda classe o respeito que sentia por S. José de primeira classe. Aquella riqueza era a inveja das amigas, a edificação dos curiosos, e fazia sempre dizer ao Libaninho, quando a [387] vinha visitar, abrangendo a sala n'um olhar langoroso:—Ai, filha, é o reininho dos céos!

—Não é verdade, continuava a excellente senhora radiante, que elle aqui é que estava bem, o santinho do parocho? É como ter o céo debaixo da mão!

As duas senhoras concordaram. Ella podia ter a sua casa arranjada com devoção, ella que era rica...

—Não o nego, tenho aqui empregadinhos alguns centos de mil reis. Sem contar o que está no relicario...

Ah, o famoso relicario de sandalo forrado de setim! Tinha lá uma lascasinha da verdadeira Cruz, um bocado quebrado do espinho da Corôa, um farrapinho do cueiro do Menino Jesus. E murmurava-se com azedume, entre as devotas, que coisas tão preciosas, d'origem divina, deviam estar no sacrario da Sé. D. Maria da Assumpção, temendo que o senhor chantre soubesse d'aquelle thesouro seraphico, só o mostrava ás intimas, mysteriosamente. E o santo sacerdote, que lh'o obtivera, fizera-a jurar sobre o Evangelho de não revelar a procedencia «para evitar fallatorios».

A S. Joanneira, como sempre, admirou sobretudo o farrapinho do cueiro.

—Que reliquia, que reliquia! murmurava.

E D. Maria da Assumpção muito baixo:

—Não ha melhor. Trinta mil reis me custou... Mas dava sessenta, mas dava cem! mas dava tudo!—E babando-se toda, diante do trapinho precioso:—O [388] cueirinho! dizia quasi a chorar. Meu rico Menino, o seu cueirinho...

Deu-lhe um beijo muito repenicado, e foi fechar o relicario no gavetão.

Mas o meio dia ia bater—e as tres senhoras apressaram-se para a Sé, para pilhar logar no altar-mór.

Já no largo encontraram D. Josepha Dias, que se precipitava para a igreja, sôfrega da missa, com o mantelete descahido sobre o hombro e uma pluma do chapéo a despregar-se. Tinha estado toda a manhã n'um phrenesi com a criada! Fôra necessario fazer ella todos os preparos para o jantar... Ai, tinha medo que nem a missinha lhe dêsse virtude, de nervosa que estava...

—Que temos lá o senhor parocho hoje... Vossês sabem que adoeceu a criada... Ah, já me esquecia, o mano quer que tu lá vás jantar tambem, Amelia. Diz que é para haverem duas damas e dois cavalheiros...

Amelia riu d'alegria.

—E tu vai depois buscal-a, S. Joanneira, á noitinha... Credo, vesti-me tanto á pressa, que até parece que me está a cahir o saiote!

Quando as quatro senhoras entraram, a igreja estava já cheia. Era uma missa cantada ao Santissimo. E apesar de contrario ao rigor do ritual, por um costume diocesano (que o bom Silverio, muito estricto na liturgia, nunca cessava de reprovar) havia, estando presente a Eucharistia, musica de rebeca, violoncello [389] e flauta. O altar, muito ornado, com as reliquias expostas, destacava n'uma alvura festiva; docel, frontal, paramentos dos missaes eram brancos, com relevos d'ouro desmaiado; nos vasos erguiam-se ramos pyramidaes de flôres e folhagens brancas; os velludilhos decorativos, dispostos como velarios, punham dos dois lados do tabernaculo a brancura de duas vastas azas desdobradas, lembrando a Pomba Espiritual; e os vinte castiçaes erguiam as suas chammas amarellas em throno até ao sacrario aberto, que mostrava d'alto, engastada n'um rebrilhar d'ouros vivos, a hostia redonda e baça. Por toda a igreja apinhada corria uma susurração lenta; aqui e além um catarrho expectorava, uma criança choramigava; o ar adensava-se já dos halitos juntos e d'um cheiro d'incenso; e do côro, onde as figuras dos musicos se moviam por traz dos braços dos rebecões e das estantes, vinha a cada momento um afinar gemido de rebeca, ou um pio de flautim. As quatro amigas tinham-se apenas accommodado junto do altar-mór, quando os dois acolythos, um têso como um pinheiro, o outro gordalhufo e enxovalhado, entraram do lado da sacristia, sustentando alto e direito nas mãos os dois castiçaes consagrados; atraz o Pimenta vesgo, com uma sobrepelliz muito vasta para elle, lançando os seus sapatões em passadas pomposas, trazia o incensador de prata; depois successivamente, durante o rumor do ajoelhar pela nave e do folhear dos livrinhos, appareceram os dois diaconos; e emfim, paramentado de branco, [390] d'olhos baixos e mãos postas, com aquelle recolhimento humilde que pede o ritual e que exprime a mansidão de Jesus marchando ao Calvario, entrou o padre Amaro—ainda vermelho da questão furiosa que tivera na sacristia, antes de se revestir, por causa da lavagem das alvas.

E o côro immediatamente atacou o Introito.


Amelia passou a sua missa embebecida, pasmada para o parocho—que era, como dizia o conego, «um grande artista para missas cantadas»; todo o cabido, todas as senhoras o reconheciam. Que dignidade, que cavalheirismo nas saudações ceremoniosas aos diaconos! Como se prostrava bem diante do altar, aniquilado e escravisado, sentindo-se cinza, sentindo-se pó diante de Deus, que assiste de perto, cercado da sua côrte e da sua familia celeste! Mas era sobretudo admiravel nas bençãos; passava devagar as mãos sobre o altar como para apanhar, recolher a graça que alli cahia do Christo presente, e atirava-a depois com um gesto largo de caridade por toda a nave, por sobre o estendal de lenços brancos de cabeça, até ao fundo onde os homens do campo muito apertados, de varapau na mão, pasmavam para a scintillação do sacrario! Era então que Amelia o amava mais, pensando que aquellas mãos abençoadoras lh'as apertava ella com paixão por baixo da mesa do quino: aquella voz, com que elle lhe chamava [391] filhinha, recitava agora as orações ineffaveis, e parecia-lhe melhor que o gemer das rebecas, revolvia-a mais que os graves do orgão! Imaginava com orgulho que todas as senhoras decerto o admiravam tambem; mas só tinha ciumes, um ciume de devota que sente os encantos do céo, quando elle ficava diante do altar, na posição extatica que manda o ritual, tão immovel como se a sua alma se tivesse remontado longe, para as alturas, para o Eterno e para o Insensivel. Preferia-o, por o sentir mais humano e mais accessivel, quando, durante o Kirie ou a leitura da Epistola, elle se sentava com os diaconos no banco de damasco vermelho; ella queria então attrahir-lhe um olhar; mas o senhor parocho permanecia de olhos baixos n'uma compostura modesta.

Amelia, sentada sobre os calcanhares, com a face banhada n'um sorriso, admirava-lhe o perfil, a cabeça bem feita, os paramentos dourados—e lembrava-se quando o vira a primeira vez descendo a escada da rua da Misericordia, com o seu cigarro na mão. Que romance se passára desde essa noite! Recordava o Morenal, o salto do vallado, a scena da morte da titi, aquelle beijo ao pé da lareira... Ai, como acabaria tudo aquillo? Queria então rezar; folheava o livro, mas vinha-lhe á idéa o que o Libaninho n'essa manhã dissera: «o senhor parocho tinha uma pellesinha tão branca como um archanjo...» Devia-a ter decerto muito delicada, muito tenra... Um desejo intenso queimava-a: imaginava que era uma tentadora visitação do demonio,—e para a repellir arregalava [392] os olhos para o sacrario e para o throno que o padre Amaro, cercado dos diaconos, incensava em semi-circulos significando a Eternidade dos Louvores, emquanto o côro berrava o Offertorio... Depois elle mesmo, de pé, no segundo degrau do altar, de mãos postas, foi incensado; o Pimenta vesgo fazia ranger galhardamente as correntes de prata do thurifero; um perfume d'incenso derramava-se, como uma annunciação celeste; ennevoava-se o sacrario sob os rolos alvos de fumo; e o parocho apparecia a Amelia transfigurado, quasi divinisado!... Oh, adorava-o então!

A igreja tremia ao clamor do orgão em pleno; de bocas abertas, os coristas solfejavam a toda a força; em cima, alçando-se entre os braços dos rebecões, o mestre da capella, no fogo da execução, brandia desesperadamente a sua batuta feita d'um rolo de canto-chão.


Amelia sahiu da igreja muito fatigada, muito pallida.

Ao jantar, em casa do conego, a snr.a D. Josepha censurou-a repetidamente de «não dar palavra».

Não fallava, mas debaixo da mesa o seu pésinho não cessava de roçar, pisar o do padre Amaro. Como escurecera cedo tinham accendido as velas; o conego abrira uma garrafa, não do seu famoso duque de 1815, mas do «1847», para acompanhar a [393] travessa d'aletria, que enchia o centro da mesa, com as iniciaes do parocho desenhadas a canella; era, como explicára o conego, «uma galanteria da mana ao convidado». Amaro fizera logo uma saude com o 1847 «á digna dona da casa». Ella resplandecia, medonha no seu vestido de bareje verde. O que sentia é que o jantar fosse tão mau... Que aquella Gertrudes estáva-se a fazer uma desleixada... Ia-lhe deixando esturrar o pato com macarrão!

—Oh, minha senhora, estava delicioso! protestou o parocho.

—São favores do senhor parocho. É porque eu lhe acudi a tempo... Mais uma colhérzinha d'aletria, senhor parocho.

—Nada mais, minha senhora, tenho a minha conta.

—Então para desgastar, vá mais esse copito do 47, disse o conego.

Elle mesmo bebeu pausadamente um bom gole, deu um ah de satisfação, e repoltreando-se:

—Boa gota! Assim póde-se viver!

Estava já rubro, e parecia mais obeso, com o seu grosso jaquetão de flanella e o guardanapo atado ao pescoço.

—Boa gota! repetiu, d'este não provou hoje vossê nas galhetas...

—Credo, mano! exclamou D. Josepha com a boca cheia de fios d'aletria, muito escandalisada da irreverencia.

O conego encolheu os hombros com desprezo. [394]

—O credo é p'r'á missa! Esta pretenção de se metter sempre em questões que não percebe! Pois fique sabendo que é d'uma grande importancia a questão da qualidade do vinho, na missa. É que é necessario que o vinho seja bom...

—Concorre para a dignidade do santo sacrificio, disse o parocho muito sério, fazendo uma caricia de joelho a Amelia.

—E não é só isso, disse o conego tomando logo o tom pedagogo. É que o vinho, quando não é bom e tem ingredientes, deixa um deposito nas galhetas; e, se o sacristão não é cuidadoso e não as limpa, as galhetas ganham um cheiro pessimo. E sabe a senhora o que acontece? Acontece que o sacerdote, quando vai a beber o sangue de Nosso Senhor Jesus Christo, não está prevenido e faz-lhe uma careta. Ora ahi tem a senhora!

E deu um forte chupão ao calix. Mas estava fallador n'essa noite, e depois d'arrotar devagar, interpellou de novo D. Josepha, assombrada de tanta sciencia.

—E diga-me lá então a senhora, já que é tão doutora: o vinho, no divino sacrificio, deve ser branco ou tinto?

D. Josepha parecia-lhe que devia ser tinto, para se parecer mais com o sangue de Nosso Senhor.

—Emende a menina, mugiu o conego de dedo em riste para Amelia.

Ella recusou-se, com um risinho. Como não era sacristão, não sabia... [395]

—Emende o senhor parocho!

Amaro galhofou. Se era erro ser tinto, então devia ser branco...

—E porquê?

Amaro ouvira dizer que era o costume em Roma.

—E porque? continuava o conego, pedante e roncão.

Não sabia.

—Porque Nosso Senhor Jesus Christo, quando pela primeira vez consagrou, fel-o com vinho branco. E a razão é muito simples: é porque na Judéa n'esse tempo, como é notorio, não se fabricava vinho tinto... Repita-me a senhora a aletria, faça favor.

Então, a proposito do vinho e da limpeza das galhetas, o padre Amaro queixou-se do Bento sacristão. N'essa manhã antes de se paramentar—justamente quando entrára o senhor conego na sacristia—acabava de lhe dar uma desanda a respeito das alvas. Em primeiro logar dava-as a lavar a uma Antonia que vivia amancebada com um carpinteiro, em grande escandalo, e que era indigna de tocar os paramentos santos. Esta era a primeira. Depois, a mulher trazia-as tão enxovalhadas que era um desacato usal-as no divino sacrificio...

—Ai, mande-m'as a mim, senhor parocho, mande-m'as a mim, acudiu D. Josepha. Dou-as á minha lavadeira, que é pessoa de muita virtude e traz a roupa escarolada. Ai, até era uma honra para mim! Eu mesmo as passava a ferro, e até se podia benzer o ferro... [396]

Mas o conego (que positivamente estava n'aquella noite d'uma loquacidade copiosa) interrompeu-a, e voltando-se para o padre Amaro, fixando-o profundamente:

—Ora a proposito de eu entrar na sacristia, sempre lhe quero dizer, amigo e collega, que commetteu hoje um erro de palmatoria.

Amaro pareceu inquieto.

—Que erro, padre-mestre?

—Depois de se revestir, continuou o conego pausadamente, já com os diaconos ao lado, quando fez a cortezia á imagem da sacristia, em logar de fazer a cortezia profunda, fez só a meia cortezia.

—Alto lá, padre-mestre! exclamou o padre Amaro. É o texto da rubrica. Facta reverentia cruci, feita a reverencia á cruz: isto é, a reverencia simples, abaixar ligeiramente a cabeça...

E, para exemplificar, fez uma cortezia a D. Josepha que lhe sorriu toda, torcendo-se.

—Nego! exclamou formidavelmente o conego que em sua casa, á sua mesa, punha d'alto as suas opiniões. E nego com os meus auctores. Elles ahi vão!—E deixou-lhe cahir em cima, como penedos d'autoridade, os nomes venerados de Laboranti, Baldeschi, Merati, Turrino e Pavonio.

Amaro afastára a cadeira, puzera-se em attitude de controversia, contente de poder, diante d'Amelia, «enterrar» o conego, mestre de theologia moral e um colosso de liturgia pratica.

—Sustento, exclamou, sustento com Castaldus... [397]

—Alto, ladrão, bramiu o conego, Castaldus é meu!

—Castaldus é meu, padre-mestre!

E encarniçaram-se, puxando cada um para si o veneravel Castaldus e a auctoridade da sua facundia. D. Josepha pulava de gozo na cadeira, murmurando para Amelia com a cara franzida de riso:

—Ai, que gostinho vêl-os! Ai, que santos!

Amaro continuava, com o gesto alto:

—E além d'isso tenho por mim o bom-senso, padre-mestre. Primò, a rubrica, como expuz. Secundò, o sacerdote, tendo na sacristia o barrete na cabeça, não deve fazer cortezia inteira, porque lhe póde cahir o barrete e temos desacato maior. Tertiò, seguir-se-hia um absurdo, porque então a cortezia antes da missa á cruz da sacristia seria maior que a que se faz depois da missa á cruz do altar!

—Mas a cortezia á cruz do altar... bradou o conego.

—É meia cortezia. Leia a rubrica: Caput inclinat. Leia Gavantus, leia Garriffaldi. E nem podia deixar de ser assim! Sabe porquê? Porque depois da missa o sacerdote está no auge da dignidade, uma vez que tem dentro em si o corpo e sangue de Nosso Senhor Jesus Christo. Logo, o ponto é meu!

E de pé, esfregou vivamente as mãos, triumphando.

O conego abatera a papeira sobre as pregas do guardanapo, como um boi atordoado. E depois d'um momento: [398]

—Vossê não deixa de ter razão... Eu foi para o ouvir... Faz-me honra cá o discipulo, acrescentou piscando o olho a Amelia. Pois é beber, é beber! E depois salta o cafésinho bem quente, mana Josepha!

Mas um forte repique á campainha sobresaltou-os.

—É a S. Joanneira, disse D. Josepha.

A Gertrudes entrou com um chale e uma manta de lã:

—Aqui está isto que vem de casa da menina Amelia. A senhora manda muitos recados, que não póde vir, que se achou incommodada.

—Então com quem hei de eu ir? disse logo Amelia, inquieta.

O conego estendeu o braço sobre a mesa, e dando-lhe uma palmadinha na mão:

—Em ultimo caso com este seu criado. E essa virtudesinha podia ir socegada...

—Tem coisas, mano! gritou a velha.

—Deixe lá, mana. O que passa pela boca d'um santo, santo fica.

O parocho approvou ruidosamente:

—Tem muita razão o senhor conego Dias! O que passa pela pela boca d'um santo, santo fica! Para que viva!

—Á sua!

E tocaram os copos, com um olho gaiato, reconciliados da controversia.

Mas Amelia ficára assustada.

—Jesus, que terá a mamã! Que será? [399]

—Ora o que ha de ser! preguiça! disse-lhe o parocho, rindo.

—Não te agonies, filha, disse D. Josepha. Vou-te eu levar, vamos todos levar-te...

—Vai a menina em charola, rosnou o conego descascando a sua pêra.

Mas de repente pousou a faca, arregalou os olhos em redor, e passando a mão pelo estomago:

—Pois olhem, disse, não me estou tambem a sentir bem...

—Que é? que é?

—Um ameaçosito da dôr. Passou, não vale nada.

D. Josepha, já assustada, não queria que elle comesse a pêra. Que a ultima vez que lhe dera fôra por causa da fructa...

Mas elle, obstinado, cravou os dentes na pêra.

—Passou, passou, rosnava.

—Foi sympathia com a mamã, disse o parocho baixo a Amelia.

De repente o conego afastou a cadeira, e torcendo-se de lado:

—Não estou bem, não estou bem! Jesus! Oh, diabo! Oh, caramba! Ai! ai! morro!

Alvoroçaram-se em volta d'elle. D. Josepha amparou-o pelo braço até ao quarto, gritando á criada que fosse buscar o doutor. Amelia correu á cozinha a aquecer uma flanella para lhe pôr no estomago. Mas não apparecia flanella. Gertrudes topava contra as cadeiras, espavorida, á procura do seu chale para sahir. [400]

—Vá sem chale, sua estupida! gritou-lhe Amaro.

A rapariga abalou. Dentro o conego dava urros.

Amaro então, realmente assustado, entrou-lhe no quarto. D. Josepha de joelhos diante da commoda gemia orações a uma grande lithographia de Nossa Senhora das Dôres; e o pobre padre-mestre, estirado de barriga sobre a cama, rilhava o travesseiro.

—Mas, minha senhora, disse o parocho severamente, não se trata agora de rezar. É necessario fazer-lhe alguma coisa... Que se lhe costuma fazer?

—Ai, senhor parocho, não ha nada, não ha nada, choramingou a velha. É uma dôr que vem e vai n'um momento. Não dá tempo p'ra nada! Um chá de tilia allivia-o ás vezes... Mas por desgraça hoje nem tilia tenho! Ai, Jesus!

Amaro correu a casa a buscar tilia. E d'ahi a pouco voltava esbaforido com a Dionysia, que vinha offerecer a sua actividade e a sua experiencia.

Mas o senhor conego, felizmente, sentira-se de repente alliviado!

—Muito agradecida, senhor parocho, dizia D. Josepha. Rica tilia! É de muita caridade. Elle agora naturalmente cae em somnolencia. Vem-lhe sempre depois da dôr... Eu vou para ao pé d'elle, desculpem-me... Esta foi peor que as outras... São estas fructas mald...—Reteve a blasphemia, aterrada.—São as fructas de Nosso Senhor. É a sua divina vontade... Desculpem-me, sim?

Amelia e o parocho ficaram sós na sala. Os seus olhares reluziram logo do desejo de se tocar, de se [401] beijar, mas as portas estavam abertas; e sentiam no quarto, ao lado, as chinelas da velha. O padre Amaro disse então alto:

—Pobre padre-mestre! É uma dôr terrivel.

—Dá-lhe todos os tres mezes, disse Amelia. A mamã já andava com o presentimento. Ainda me tinha dito antes d'hontem: é o tempo da dôr do senhor conego, estou com mais cuidado...

O parocho suspirou, e baixinho:

—Eu é que não tenho quem pense nas minhas dôres...

Amelia pousou n'elle longamente os seus bellos olhos humedecidos de ternura:

—Não diga isso...

As suas mãos iam apertar-se ardentemente por sobre a mesa; mas D. Josepha appareceu, encolhida no seu chale. O mano tinha adormecido. E ella estava que não se podia ter nas pernas. Ai, aquelles abalos arrazavam-lhe a saude! Accendera duas velas a S. Joaquim e fizera uma promessa a Nossa Senhora da Saude. Era a segunda aquelle anno, por causa da dôr do mano. E Nossa Senhora não lhe tinha faltado...

—Nunca falta a quem a implora com fé, minha senhora, disse com unção o padre Amaro.

O alto relogio d'armario bateu então cavamente oito horas. Amelia fallou outra vez no cuidado em que estava pela mamã... Demais a mais ia-se a fazer tão tarde... [402]

—E é que quando eu sahi estava a choviscar, disse Amaro.

Amelia correu á janella, inquieta. O lagedo defronte, debaixo do candieiro, reluzia muito molhado. O céo estava tenebroso.

—Jesus, vamos ter uma noite d'agua!

D. Josepha estava afflicta com o contratempo; mas a Amelia bem via, ella agora não podia despegar de casa; a Gertrudes fôra ao doutor; naturalmente não o encontrára, andava a procural-o de casa em casa, quem sabe quando viria...

O parocho então lembrou que a Dionysia (que viera com elle e esperava na cozinha) podia ir acompanhar a snr.a D. Amelia. Eram dois passos, não havia ninguem pelas ruas. Elle mesmo iria com ellas até á esquina da Praça... Mas deviam apressar-se, que ia cahir agua!

D. Josepha foi logo buscar um guardachuva para Amelia. Recommendou-lhe muito que contasse á mamã o que tinha succedido. Mas que não se affligisse ella, que o mano estava melhor...

—E olha! gritou-lhe ainda de cima da escada, dize-lhe que se fez tudo o que se pôde, mas que a dôr não deu tempo para nada!

—Sim, lá direi. Boa noite.

Ao abrirem a porta a chuva cahia grossa. Amelia então quiz esperar. Mas o parocho, apressado, puxou-a pelo braço:

—Não vale nada, não vale nada! [403]

Desceram a rua deserta, aconchegados debaixo do guardachuva, com a Dionysia ao lado, muito calada, de chale pela cabeça. Todas as janellas estavam apagadas; no silencio as goteiras cantavam d'enxurrão.

—Jesus, que noite! disse Amelia. Vai-se-me a perder o vestido.

Estavam então na rua das Sousas.

—É que agora cae a cantaros, disse Amaro. Realmente parece-me que o melhor é entrar no pateo de minha casa e esperar um bocado...

—Não, não! acudiu Amelia.

—Tolices! exclamou elle impaciente. Vai-se-lhe estragar o vestido... É um instante, é um aguaceiro. Para aquelle lado, vê, está a alliviar. Vai passar... É uma tolice... A mamã, se a visse apparecer debaixo d'uma carga d'agua, zangava-se, e com razão!

—Não, não!

Mas Amaro parou, abriu rapidamente a porta, e empurrando Amelia de leve:

—É um instante, vai passar, entre...

E alli ficaram, calados, no pateo escuro, olhando as cordas d'agua que reluziam á luz do candieiro defronte. Amelia estava toda atarantada. A negrura do pateo e o silencio assustavam-n'a; mas parecia-lhe delicioso estar assim n'aquella escuridão, ao pé d'elle, ignorada de todos... Insensivelmente attrahida, roçava-se-lhe pelo hombro; e recuava logo, inquieta de ouvir a sua respiração tão agitada, de o sentir [404] tão junto das saias. Percebia por traz, sem a vêr, a escada que levava ao quarto d'elle; e tinha um desejo immenso de lhe ir vêr acima os seus moveis, os seus arranjos... A presença da Dionysia, encolhida contra a porta e muito calada, embaraçava-a; todavia a cada momento voltava os olhos para ella, receando que desapparecesse, se sumisse na negrura do pateo ou da noite...

Amaro então começou a bater com os pés no chão, a esfregar as mãos, arripiado.

—Estamos aqui a apanhar alguma, dizia. As lages estão regeladas... Realmente era melhor esperar em cima na sala de jantar...

—Não, não! disse ella.

—Pieguices! Até a mamã se havia de zangar... Vá, Dionysia, accenda luz em cima.

A matrona immediatamente galgou os degraus.

Elle então, muito baixo, tomando o braço d'Amelia:

—Porque não? Que pensas tu? É uma pieguice. É emquanto não passa o aguaceiro. Dize...

Ella não respondia, respirando muito forte. Amaro pousou-lhe a mão sobre o hombro, sobre o peito, apertando-lh'o, acariciando a sêda. Toda ella estremeceu. E foi-o emfim seguindo pela escada, como tonta, com as orelhas a arder, tropeçando a cada degrau na roda do vestido.

—Entra p'r'áhi, é o quarto, disse-lhe elle ao ouvido.

Correu á cozinha. Dionysia accendia a vela. [405]

—Minha Dionysia, tu percebes... Eu fiquei de confessar aqui a menina Amelia. É um caso muito sério... Volta d'aqui a meia hora. Toma.—Metteu-lhe tres placas na mão.

A Dionysia descalçou os sapatos, desceu em pontas de pés e fechou-se na loja do carvão.

Elle voltou ao quarto com a luz. Amelia lá estava, immovel, toda pallida. O parocho fechou a porta—e foi para ella, calado, com os dentes cerrados, soprando como um touro.


Meia hora depois Dionysia tossiu na escada. Amelia desceu logo, muito embrulhada na manta: ao abrirem a porta do pateo passavam na rua dois borrachos galrando: Amelia recuou rapidamente para o escuro. Mas Dionysia d'ahi a pouco espreitou; e vendo a rua deserta:

—Está a barra livre, minha rica menina...

Amelia embrulhou mais o rosto e apressaram o passo para a rua da Misericordia. Já não chovia; havia estrellas; e uma frialdade sêcca annunciava o norte e o bom tempo.



XVII



Ao outro dia Amaro, vendo no relogio que tinha á cabeceira que ia chegando a hora da missa, saltou alegremente da cama. E, enfiando o velho paletot que lhe servia de robe-de-chambre, pensava n'essa outra manhã em Feirão em que acordára aterrado por ter na vespera, pela primeira vez depois de padre, peccado brutalmente sobre a palha da estrebaria da residencia com a Joanna Vaqueira. E não se atrevera a dizer missa com aquelle crime na alma, que o abafava com um peso de penedo. Considerára-se contaminado, immundo, maduro para o inferno, segundo todos os santos padres e o seraphico concilio de Trento. Tres vezes chegára á porta da igreja, tres vezes recuára assombrado. Tinha a certeza de que, se ousasse tocar na Eucharistia com [408] aquellas mãos com que repanhára os saiotes da Vaqueira, a capella se aluiría sobre elle, ou ficaria paralysado vendo erguer-se diante do sacrario, d'espada alta, a figura rutilante de S. Miguel Vingador! Montára a cavallo e trotára duas horas, pelos barreiros de D. João, para ir á Gralheira confessar-se ao bom abbade Sequeira... Ah! Era nos seus tempos de innocencia, de exagerações piedosas e de terrores noviços! Agora tinha aberto os olhos em redor á realidade humana. Abbades, conegos, cardeaes e monsenhores não peccavam sobre a palha da estrebaria, não—era em alcovas commodas, com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluiam, e S. Miguel Vingador não abandonava por tão pouco os confortos do céo!

Não era isso o que o inquietava—o que o inquietava era a Dionysia, que elle ouvia na cozinha, arrumando e tossicando, sem se atrever a pedir-lhe agua para a barba. Desagradava-lhe sentir aquella matrona introduzida, installada no seu segredo. Não duvidava decerto da sua discrição, era o seu officio; e algumas meias libras manteriam a sua fidelidade. Mas repugnava ao seu pudor de padre saber que aquella velha concubina de auctoridades civis e militares, que rolára a sua massa de gordura por todas as torpezas seculares da cidade, conhecia as suas fragilidades, as concupiscencias que lhe ardiam sob a batina de parocho. Preferiria que fosse o Silverio ou Natario que o tivesse visto na vespera, todo inflammado: era entre sacerdotes, ao menos!... [409] E o que o incommodava era a idéa de ser observado por aquelles olhinhos cynicos, que não se impressionavam nem com a austeridade das batinas nem com a respeitabilidade dos uniformes, porque sabiam que por baixo estava igualmente a mesma miseria bestial da carne...

—Acabou-se, pensou, dou-lhe uma libra e imponho-a.

Nós de dedos bateram discretamente à porta do quarto.

—Entre! disse Amaro sentando-se logo, curvando-se vivamente sobre a mesa, como absorvido, abysmado nos seus papeis.

A Dionysia entrou, pousou o pucaro da agua sobre o lavatorio, tossiu, e fallando sobre as costas d'Amaro:

—Ó senhor parocho, olhe que isto assim não tem geito. Hontem iam vendo sahir daqui a pequena. É muito sério, menino... Para bem de todos é necessario segredo!

Não, não a podia impôr! A mulher estabelecia-se, à força, na sua confidencia. Aquellas palavras mesmo, murmuradas com medo das paredes, revelando uma prudencia de officio, mostravam-lhe a vantagem d'uma cumplicidade tão experiente.

Voltou-se na cadeira, muito vermelho.

—Iam vendo, hein?

—Iam vendo. Eram dois bebedos... Mas podiam ser dois cavalheiros.

—É verdade. [410]

—E na sua posição, senhor parocho, na posição da pequena!... Tudo se deve fazer pelo calado... Nem os moveis do quarto devem saber! Em coisas que eu protejo, exijo tanta cautela como se se tratasse de morte!

Amaro então decidiu-se bruscamente a aceitar a protecção da Dionysia.

Rebuscou n'um canto da gaveta, metteu-lhe meia libra na mão.

—Seja pelo amor de Deus, filho, murmurou ella.

—Bem; e agora, Dionysia, que lhe parece? perguntou elle recostado na cadeira, esperando os conselhos da matrona.

Ella disse muito naturalmente, sem affectação de mysterio ou de malicia:

—A mim parece-me que para vêr a pequena não ha como a casa do sineiro!

—A casa do sineiro!?

Ella recordou-lhe, muito tranquillamente, a excellente disposição do sitio. Um dos quartos ao pé da sacristia, como elle sabia, dava para um pateo onde se tinha feito um barracão no tempo das obras. Pois bem, justamente do outro lado eram as trazeiras da casa do sineiro... A porta da cozinha do tio Esguelhas abria para o pateo: era sahir da sacristia, atravessal-o, e o senhor parocho estava no ninho!

—E ella?

—Ella entra pela porta do sineiro, pela porta da rua que dá para o adro. Não passa viva alma, é [411] um ermo. E se alguem visse, nada mais natural, era a menina Amelia que ia dar um recado ao sineiro... Isto, já se vê, é ainda pelo alto, que o plano póde-se aperfeiçoar...

—Sim, comprehendo, é um esboço, disse Amaro que passeava pelo quarto reflectindo.

—Eu conheço bem o sitio, senhor parocho, e creia o que lhe digo: para um senhor ecclesiastico que tem o seu arranjinho, não ha melhor que a casa do sineiro!

Amaro parou diante d'ella, rindo, familiarisando-se:

—Ó tia Dionysia, diga lá com franqueza: não é a primeira vez que vossê aconselha a casa do sineiro, hein?

Ella então negou, muito decisivamente. Era homem que nem conhecia, o tio Esguelhas! Mas tinha-lhe vindo aquella idéa de noite, a malucar na cama. Pela manhã cedo fôra examinar o sitio, e reconhecera que estava a calhar.

Tossicou, foi-se aproximando sem ruido da porta; e voltando-se ainda, com um ultimo conselho:

—Tudo está em que vossa senhoria se entenda bem com o sineiro.


Era isso agora o que preoccupava o padre Amaro.

O tio Esguelhas passava na Sé, entre os serventes e os sacristães, por um macambusio. Tinha uma [412] perna cortada e usava muleta: e alguns sacerdotes, que desejariam o emprego para os seus protegidos, sustentavam mesmo que aquelle defeito o tornava, segundo a Regra, improprio para o serviço da Igreja. Mas o antigo parocho José Migueis, em obediencia ao senhor bispo, conservára-o na Sé, argumentando que o trambolhão desastroso que motivára a amputação fôra na torre, n'uma occasião de festa, collaborando no culto: ergo estava claramente indicada a intenção de Nosso Senhor em não prescindir do tio Esguelhas. E quando Amaro tomára conta da parochia, o côxo valera-se da influencia da S. Joanneira e d'Amelia para conservar, como elle dizia, a corda do sino. Era além d'isso (e fôra a opinião da rua da Misericordia) uma obra de caridade. O tio Esguelhas, viuvo, tinha uma filha de quinze annos paralytica, desde pequena, das pernas. «O diabo embirrou com as pernas da familia», costumava dizer o tio Esguelhas. Era decerto esta desgraça que lhe dava uma tristeza taciturna. Contava-se que a rapariga (cujo nome era Antonia, e que o pai chamava Tótó) o torturava com perrices, phrenesis, caprichos abominaveis. O doutor Gouvêa declarára-a hysterica: mas era uma certeza, para as pessoas de bons principios, que a Tótó estava possuida do Demonio. Houvera mesmo o plano de a exorcismar: o senhor vigario geral, porém, sempre assustado com a imprensa, hesitára em conceder a permissão ritual, e tinham-lhe feito apenas, sem resultado, as aspersões simples de agua benta. De resto não se sabia a natureza do [413] endemoninhamento da paralytica: a snr.a D. Maria da Assumpção ouvira dizer que consistia em uivar como um lobo; a Gansosinho, em outra versão, assegurava que a desgraçada se dilacerava com as unhas... O tio Esguelhas, esse, quando lhe perguntavam pela rapariga, respondia sêccamente:

—Lá está.

Os intervallos do seu serviço da igreja passava-os todos com a filha no casebre. Só atravessava o largo para ir á botica por algum remedio, ou comprar bolos á confeitaria da Thereza. Todo o dia aquelle recanto da Sé, o pateo, o barracão, o alto muro ao lado coberto de parietarias, a casa ao fundo com a sua janella de portada negra n'uma parede lazeirenta, permaneciam n'um silencio, n'uma sombra humida: e os meninos do côro, que ás vezes se arriscavam a ir pé-ante-pé, pelo pateo, espreitar o tio Esguelhas, viam-no invariavelmente curvado á lareira, com o cachimbo na mão, cuspilhando tristemente para as cinzas.

Costumava todos os dias respeitosamente ouvir a missa do senhor parocho. E Amaro, n'essa manhã, ao revestir-se, sentindo-lhe nas lageas do pateo a muleta, ia já ruminando a sua historia—porque não podia pedir ao tio Esguelhas o uso do seu casebre sem explicar, d'algum modo, que o desejava para um serviço religioso... E que serviço, a não ser preparar, em segredo e longe das opposições mundanas, alguma alma terna para o convento e para a santidade?

Ao vêl-o entrar na sacristia, deu-lhe logo uns [414] «bons dias» amaveis. Achou-lhe uma bella cara de saude! Tambem não admirava—porque, segundo todos os santos padres, a frequentação dos sinos, pela virtude particular que lhes communica a consagração, dão uma alegria e um bem-estar especiaes. Contou então com bonhomia ao tio Esguelhas e aos dois sacristães que, quando era pequeno, em casa da senhora marqueza d'Alegros, o seu grande desejo era ser um dia sineiro...

Riram muito, extasiando-se com a pilheria de sua senhoria.

—Não se riam, é verdade. E não me ficava mal... N'outros tempos eram clerigos d'ordens menores que tocavam os sinos. Os nossos santos padres consideram-n'os um dos meios mais efficazes da piedade. Lá disse a glosa pondo o verso na bôca do sino:


Laudo Deum, populum voco, congrego clerum.
Defunctum ploro, pestem fugo, festa decoro...


O que quer dizer, como sabem: Louvo a Deus, chamo o povo, congrego o clero, choro os mortos, afugento as pestes, alegro as festas.

Citava a glosa com respeito, já revestido d'amicto e alva, no meio da sacristia; e o tio Esguelhas impertigava-se sobre a sua muleta áquellas palavras que lhe davam uma auctoridade e uma importancia imprevista.

O sacristão tinha-se aproximado com a casula [415] rôxa. Mas Amaro não terminára a glorificação dos sinos;—explicou ainda a sua grande virtude em dissipar as tempestades (apesar do que dizem alguns sabios presumpçosos), não só porque communicam ao ar a unção que recebem da benção, mas porque dispersam os demonios que erram entre os vendavaes e os trovões. O santo concilio de Milão recommenda que se toquem os sinos sempre que haja tormenta...

—Em todo o caso, tio Esguelhas, acrescentou sorrindo com solicitude pelo sineiro, aconselho-lhe que n'esses casos é melhor não se arriscar. Sempre é estar no alto, e perto da trovoada... Vamos a isso, tio Mathias.

E recebeu sobre os hombros a casula, murmurando com muita compostura:

-Domine, quis dixisti jugum meum... Aperte mais os cordões por traz, tio Mathias. Suave est, et onus meum leve...

Fez uma cortezia á imagem e entrou na igreja, na attitude da rubrica, d'olhos baixos e corpo direito; emquanto o Mathias, depois de ter tambem saudado com um raspão de pé o Christo da sacristia, se apressava com as galhetas, tossindo forte para clarear a garganta.

Durante toda a missa, ao voltar-se para a nave, no Offertorio e ao Orate fratres, o padre Amaro dirigia-se sempre (por uma benevolencia que o ritual permitte) para o sineiro, como se o Sacrificio fosse por sua intenção particular;—e o tio Esguelhas, com [416] a sua muleta pousada ao lado, abysmava-se então n'uma devoção mais respeitosa. Mesmo ao Benedicat, depois de ter começado a benção voltado para o altar para recolher do Deus vivo o deposito da Misericordia, terminou-a, virando-se devagar para o tio Esguelhas especialmente, como para lhe dar a elle só as Graças e Dons de Nosso Senhor!

—E agora, tio Esguelhas, disse-lhe baixo ao entrar na sacristia, vá-me esperar ao pateo que temos que conversar.

Não tardou a vir ter com elle, com uma face grave que impressionou o sineiro.

—Cubra-se, cubra-se, tio Esguelhas. Pois eu venho fallar-lhe d'um caso sério... Verdadeiramente pedir-lhe um favor...

—Oh, senhor parocho!

Não, não era um favor... Porque, quando se tratava do serviço de Deus, todos tinham o dever de concorrer na proporção das suas forças... Tratava-se d'uma menina que se queria fazer freira. Emfim, para lhe provar a confiança que tinha n'elle, ia-lhe dizer o nome...

—É a Ameliasinha da S. Joanneira!

—Que me diz, senhor parocho?!

—Uma vocação, tio Esguelhas! Vê-se o dedo de Deus! É extraordinario...

Contou-lhe então uma historia diffusa que ia forjando laboriosamente, segundo as sensações que imaginava vêr na face pasmada do sineiro. A rapariga desgostára-se da vida, com as desavenças que tivera [417] com o noivo. Mas a mãi, que estava velha, que a necessitava para o governo da casa, não queria consentir, suppondo que era uma velleidade... Mas não, era vocação... Elle sabia-o... Infelizmente, quando havia opposição, a conducta do sacerdote era muito delicada... Todos os dias os jornaes impios (e infelizmente era a maioria!) gritavam contra as influencias do clero... As auctoridades, mais impias que os jornaes, punham obstaculos... Havia leis terriveis... Se soubessem que elle andava a instruir a menina para professar, ferravam-no na cadeia! Que queria o tio Esguelhas?... Impiedade, alheismo do tempo! Ora, elle necessitava ter com a pequena muitas e muitas conferencias: para a experimentar, para conhecer as suas disposições, vêr bem se é para a Solidão que ella tem geito, ou para a Penitencia, ou para o serviço dos enfermos, ou para a Adoração Perpetua, ou para o ensino... Emfim, estudal-a por dentro e por fóra.

—Mas onde? exclamou, abrindo os braços como na desolação d'um santo dever contrariado. Onde? Em casa da mãi não póde ser, já andam desconfiados. Na igreja impossivel, era o mesmo que na rua. Em minha casa, já vê, menina nova...

—Está claro.

—De modo que, tio Esguelhas... E estou certo que vossê m'o ha de agradecer... pensei na sua casa...

—Oh, senhor parocho, acudiu o sineiro, eu, a casa, os trastes, está tudo ás ordens! [418]

—Bem vê, é no interesse d'aquella alma, é um regosijo para Nosso Senhor...

—E p'ra mim, senhor parocho, e p'ra mim!

O que o tio Esguelhas receava é que a casa não fosse decente e não tivesse as commodidades...

—Ora! fez o padre sorrindo, n'um renunciamento de todos os confortos humanos. Comtanto que haja duas cadeiras e uma mesa para pôr o livro da oração...

De resto, por outro lado, dizia o sineiro, lá como sitio retirado e casa socegada estava a preceito. Ficavam alli, elle e a menina, como os monges no deserto. Nos dias em que o senhor parocho viesse, elle sahia a dar o seu giro. Na cozinha não poderiam accommodar-se, porque o quartito da pobre Tótó era ao pé... Mas tinham o quarto d'elle, em cima.

O padre Amaro bateu com a mão na testa. Não se lembrára da paralytica!

—Isso estraga-nos o arranjinho, tio Esguelhas! exclamou.

Mas o sineiro tranquillisou-o, vivamente. Estava agora todo interessado n'aquella conquista d'uma noiva para Nosso Senhor; queria por força que o seu telhado abrigasse a santa preparação da alma da menina... Talvez lhe attrahisse a elle a piedade de Deus! Mostrou com calor as vantagens, as facilidades da casa. A Tótó não embaraçava. Não se mexia da cama. O senhor parocho entrava pela cozinha do lado da sacristia, a menina vinha pela porta da rua: subiam, fechavam-se no quarto... [419]

—E ella que faz, a Tótó? perguntou o padre Amaro, hesitando ainda.

Coitadita, para alli estava... Tinha manias: ora fazia bonecas e apaixonava-se por ellas a ponto de ter febre; outros dias passava-os n'um silencio medonho com os olhos cravados na parede. Mas ás vezes estava alegre, palrava, chalaceava... Uma desgraça!

—Devia-se entreter, devia lêr, disse o padre Amaro para mostrar interesse.

O sineiro suspirou. Não sabia lêr, a pequena, nunca quizera aprender. Era o que elle lhe dizia—se pudesses lêr já te não pesava tanto a vida! Mas então? Tinha horror a applicar-se... O senhor padre Amaro devia ter a caridade de a persuadir, quando viesse a casa...

Mas o parocho não o escutava, todo abysmado n'uma idéa que lhe alumiára a face d'um sorriso. Achára subitamente a explicação natural a dar á S. Joanneira e ás amigas das visitas d'Amelia a casa do sineiro: era a ensinar a lêr a paralytica! A educal-a! A abrir-lhe a alma ás bellezas dos livros santos, da historia dos martyres e da oração!...

—Está decidido, tio Esguelhas, exclamou, esfregando as mãos de jubilo. É em sua casa que se ha de fazer da rapariga uma santa. E d'isto—e a sua voz deu um grave profundo—um segredo inviolavel!

—Oh, senhor parocho! fez o sineiro, quasi offendido. [420]

—Conto comsigo! disse Amaro.

Veio logo á sacristia escrever um bilhete, que devia passar em segredo a Amelia, em que lhe explicava detalhadamente «o arranjinho que fizera para gozarem novas e divinas felicidades». Prevenia-a que o pretexto para ella vir todas as semanas a casa do sineiro devia ser a educação da paralytica: elle mesmo o proporia á noite em casa da mamã. «Que n'isto, dizia, ha alguma verdade, pois seria grato a Deus que se alumiasse com uma boa instrucção religiosa as trevas d'aquella alma. E matamos assim, querido anjo, dois coelhos com uma só cacheirada!»

Depois entrou em casa. Como se sentou regalamente á mesa do almoço, com um contentamento pleno de si, da vida e das dôces facilidades que n'ella encontrava! Ciumes, duvidas, torturas do desejo, solidão da carne, tudo o que o consumira mezes e mezes, além na rua da Misericordia e alli na rua das Sousas, passára. Estava emfim installado á larga na felicidade! E recordava, abysmado n'um gozo mudo, com o garfo esquecido na mão, toda aquella meia hora da vespera, prazer por prazer, resaboreando-os mentalmente um a um, saturando-se da deliciosa certeza da posse—como o lavrador que percorre a leira de terra adquirida que os seus olhos invejaram muitos annos. Ah, não tornaria a olhar de lado, com azedume, os cavalheiros que passeavam na Alameda com as suas mulheres pelo braço! Tambem elle agora tinha uma, toda sua, alma e carne, linda, que o adorava, que usava boas roupas brancas, [421] e trazia no peito um cheirinho d'agua de colonia! Era padre, é verdade... Mas para isso tinha o seu grande argumento: é que o comportamento do padre, logo que não dê escandalo entre os fieis, em nada prejudica a efficacia, a utilidade, a grandeza da religião. Todos os theologos ensinam que a ordem dos sacerdotes foi instituida para administrar os sacramentos; o essencial é que os homens recebam a santidade interior e sobrenatural que os sacramentos contêm; e comtanto que elles sejam dispensados segundo as formulas consagradas, que importa que o sacerdote seja santo ou peccador? O sacramento communica a mesma virtude. Não é pelos meritos do sacerdote que elles operam, mas pelos meritos de Jesus Christo. O que é baptisado ou ungido, ou seja por mãos puras ou por mãos torpes, fica igualmente bem lavado da macula original, ou bem preparado para a vida eterna. Isto lê-se em todos os santos padres, estabeleceu-o o seraphico concilio de Trento. Os fieis nada perdem, na sua alma e na sua salvação, com a indignidade do parocho. E se o parocho se arrepende á hora extrema, tambem se lhe não fecham as portas do céo. Logo em definitiva tudo acaba bem, e em paz geral...—E o padre Amaro, raciocinando assim, sorvia com prazer o seu café.

A Dionysia, ao fim do almoço, veio saber, muito risonha, se o senhor parocho fallára ao tio Esguelhas...

—Fallei por alto, disse elle ambiguamente. Não [422] ha nada decidido... Roma não se construiu n'um dia.

—Ah! fez ella.

E recolheu-se á cozinha, pensando que o senhor parocho mentia como um hereje. Tambem, não se importava... Nunca gostára de arranjos com os senhores ecclesiasticos; pagavam mal, e suspeitavam sempre...

E mesmo ouvindo Amaro que sahia, correu á escada a dizer-lhe—que emfim, ella tinha a olhar pela sua casa, e quando o senhor parocho tivesse arranjado criada...

—A snr.a D. Josepha Dias anda-me a tratar d'isso, Dionysia. Espero ter alguem ámanhã. Mas vossê appareça... Agora que somos amigos...

—Quando o senhor parocho quizer é chamar-me da janella para o quintal, disse ella do alto da escada. Para tudo que precisar. De tudo sei um bocadinho, até de desarranjos e de partos... E n'este ponto posso até dizer...

Mas o padre não a escutava: atirára com a porta de repellão, fugindo, indignado d'aquella utilidade torpe assim brutalmente offerecida.


Foi d'ahi a dias que elle fallou em casa da S. Joanneira da filha do sineiro.

Na vespera dera o bilhete a Amelia; e n'essa noite, emquanto na sala se galrava alto, aproximára-se do piano, onde Amelia, com os dedos preguiçosos, [423] corria escalas, e abaixando-se para accender o cigarro á vela, murmurára:

—Leu?

—Optimo!

Amaro recolheu logo ao grupo das senhoras, onde a Gansoso estava contando uma catastrophe que lêra n'um jornal, succedida em Inglaterra: uma mina de carvão que desabára, sepultando cento e vinte trabalhadores. As velhas arripiavam-se horrorisadas. A Gansoso então, gozando o effeito, accumulou loquazmente os detalhes: a gente que estava fóra esforçára-se por desatulhar os infelizes; ouviam-se-lhes em baixo os gemidos e os ais; era ao lusco-fusco; havia uma tormenta de neve...

—Desagradavel! rosnou o conego, aconchegando-se na sua poltrona, gozando o calor da sala e a segurança dos tectos.

A snr.a D. Maria da Assumpção declarou que todas essas minas, essas machinas estrangeiras lhe causavam medo. Vira uma fabrica ao pé d'Alcobaça, e parecera-lhe uma imagem do inferno. Estava certa que Nosso Senhor não as via com bons olhos...

—É como os caminhos de ferro, disse D. Josepha. Tenho a certeza que foram inspirados pelo demonio! Não o digo a rir. Mas vejam aquelles uivos, aquelle fogaracho, aquelle fragor! Ai, arripia!

O padre Amaro galhofou,—assegurando á snr.a D. Josepha que eram ricamente commodos para andar depressa! Mas, tornando-se logo sério, acrescentou: [424]

—Em todo o caso é incontestavel, que ha n'essas invenções da sciencia moderna muito do demonio. E é por isso que a nossa santa Igreja as abençôa, primeiro com orações e depois com agua benta. Hão de saber que é o costume. Com agua benta para lhes fazer o exorcismo, expulsar o espirito inimigo: e com orações para as resgatar do peccado original que não só existe no homem, mas nas coisas que elle construe. É por isso que se benzem e se purificam as locomotivas... Para que o demonio não se possa servir d'ellas para seu uso.

D. Maria da Assumpção quiz immediatamente uma explicação. Como era a maneira usual do Inimigo se servir dos caminhos de ferro?

O padre Amaro esclareceu-a, com bondade. O Inimigo tinha muitas maneiras, mas a habitual era esta: fazia descarrilar um trem de modo que morressem passageiros, e como essas almas não estavam preparadas pela Extrema-Unção, o demonio alli mesmo, zás, apoderava-se d'ellas!

—É de velhaco! rosnou o conego, com uma admiração secreta por aquella manha tão habil do Inimigo.

Mas D. Maria da Assumpção abanou-se langorosamente, com o rosto banhado n'um sorriso de beatitude:

—Ai, filhas! dizia pausadamente para os lados, a nós é que não nos succedia isso... Que não nos pilhava desprevenidas!

Era verdade; e todas gozaram um momento [425] aquella certeza deliciosa de estarem preparadas, de poderem lograr a malicia do Tentador!

O padre Amaro então tossiu como para preparar as vias, e apoiando as duas mãos sobre a mesa, n'um tom de pratica:

—É necessario muita vigilancia para conservar de longe o demonio. Ainda hoje eu estava a pensar n'isso (foi mesmo a minha meditação) a respeito de um caso bem triste que tenho lá ao pé da Sé... É a filhita do sineiro.

As senhoras tinham chegado as cadeiras, bebendo-lhe as palavras, n'uma curiosidade subitamente excitada, esperando ouvir a historia picante d'alguma façanha de Satanaz. E o parocho continuou com uma voz a que o silencio em redor dava solemnidade:

—Alli está aquella rapariga, todo o santo dia, pregada na cama! Não sabe lêr, não tem devoções habituaes, não tem o costume da meditação; é por consequencia, para empregar a expressão de S. Clemente—uma alma sem defeza. O que succede? Que o demonio, que ronda constantemente e não perde dentada, estabelece-se alli como em sua casa! Por isso, como me dizia hoje o pobre tio Esguelhas, são phrenesis, desesperos, furores sem razão... Emfim o pobre homem tem a vida estragada.

—E a dois passos da igreja do Senhor! exclamou D. Maria da Assumpção, indignada d'aquella impudencia de Satanaz, installando-se n'um corpo, n'um leito, que apenas a estreiteza do pateo separava dos contrafortes da Sé. [426]

Amaro acudiu:

—Tem a D. Maria razão. O escandalo é enorme. Mas então? Se a rapariga não sabe lêr! Se não sabe uma oração, se não tem quem a instrua, quem lhe leve a palavra de Deus, quem a fortifique, quem lhe ensine o segredo de frustrar o Inimigo!...

Ergueu-se animado, deu alguns passos pela sala, de hombros vergados, n'uma mágoa de pastor a quem uma força desproporcional arrebata uma ovelha amada. E, exaltado pelas suas palavras, sentia, com effeito, uma piedade que o invadia, uma compaixão verdadeira por aquella pobre creatura, a quem a falta de consolações devia tornar mais intensa a agonia da immobilidade...

As senhoras olhavam-se, magoadas com aquelle caso triste d'abandono d'alma,—sobretudo pela dôr que elle parecia trazer ao senhor parocho.

A snr.a D. Maria da Assumpção, que percorria em imaginação o abundante arsenal da devoção, lembrára logo que se lhe puzessem alguns santos á cabeceira, como S. Vicente, Nossa Senhora das Sete Chagas... Mas o silencio das amigas exprimiu bem a insufficiencia d'aquella galeria devota.

—As senhoras dir-me-hão talvez, disse o padre Amaro sentando-se de novo, que se trata apenas da filha do sineiro. Mas é uma alma! É uma alma como as nossas!

—Todos têm direito á graça do Senhor, disse o conego gravemente, n'um sentimento d'imparcialidade, admittindo a igualdade das classes logo que [427] não se tratava de bens materiaes e apenas dos confortos do céo.

—P'ra Deus não ha pobre nem rico, suspirou a S. Joanneira. Antes pobre, que dos pobres é o reino do céo!

—Não, antes rico, acudiu o conego, estendendo a mão para deter aquella falsa interpretação da lei divina. Que o céo tambem é para os ricos. A senhora não comprehende o preceito. Beati pauperes, bemditos os pobres, quer dizer que os pobres devem-se achar felizes na pobreza; não desejarem os bens dos ricos; não quererem mais que o bocado de pão que têm; não aspirarem a participar das riquezas dos outros, sob pena de não serem bemditos. É por isso, saiba a senhora, que essa canalha que préga que os trabalhadores e as clases baixas devem viver melhor do que vivem, vai d'encontro á expressa vontade da Igreja e de Nosso Senhor, e não merece senão chicote, como excommungados que são! Ouf!

E estirou-se, extenuado de ter fallado tanto. O padre Amaro, esse, permanecia calado, com o cotovêlo sobre a mesa, esfregando devagar a testa. Ia lançar a sua idéa, como vinda d'uma inspiração divina, propôr que fosse Amelia levar uma educação devota á triste paralytica... E hesitava supersticiosamente diante do seu motivo todo carnal, todo de concupiscencia. A filha do sineiro apparecia-lhe agora, exageradamente, abysmada n'uma treva d'agonia. Sentia toda a caridade que haveria em consolal-a, entretel-a, fazer-lhe os dias menos amargos... [428] Esta acção redimiria decerto muitas culpas, encantaria Deus, se fosse feita n'um puro espirito de fraternidade christã! Vinha-lhe uma compaixão sentimental de bom rapaz por aquelle miseravel corpo pregado n'uma cama, sem nunca vêr o sol nem a rua... E alli estava embaraçado, n'aquella piedade que o invadia, sem se decidir, coçando a nuca, arrependido quasi de ter fallado ás senhoras da Tótó...

Mas D. Joaquina Gansoso tivera uma idéa:

—Ó senhor padre Amaro, se se lhe mandasse aquelle livro com pinturas de vidas dos santos? Eram pinturas que edificavam. A mim tocavam-me alma... Não és tu que o tens, Amelia?

—Não, disse ella, sem erguer os olhos da costura.

Amaro então olhou-a. Tinha-a quasi esquecido. Estava agora do outro lado da mesa, abainhando um esfregão: a risca muita fina desapparecia na abundancia espessa do cabello, onde a luz do candieiro ao lado punha um traço lustroso; as pestanas pareciam mais longas, mais negras sobre a pelle da face, d'um trigueiro calido, que uma tinta rosada aquecia; o vestido justo, que se franzia n'uma prega sobre o hombro, elevava-se amplamente sobre a fórma dos peitos, que elle via arfar no rhythmo da respiração igual... Era aquella a belleza que mais appetecia n'ella; imaginava-os d'uma côr de neve, redondos e cheios; tivera-a nos braços, sim, mas vestida, e as suas mãos sôfregas tinham encontrado só a sêda fria... Mas na casa do sineiro seriam [429] d'elle, sem obstaculo, sem vestidos, á disposição dos seus labios. Por Deus! e nada impedia que ao mesmo tempo consolassem a alma da Tótó! Não hesitou mais. E erguendo a voz, no meio do palratorio das velhas que discutiam agora a desapparição da Vida dos Santos:

—Não, minhas senhoras, não é com livros que se vale á rapariga... Sabem a idéa que me veio? Era um de nós, o que estiver menos occupado, levar-lhe a palavra de Deus e educar aquella alma!—E acrescentou, sorrindo:—E a fallar a verdade, a pessoa mais desoccupada aqui de todos nós é a menina Amelia...

Então foi uma surpreza! Pareceu a mesma vontade de Nosso Senhor vinda n'uma revelação. Os olhos de todas accenderam-se n'uma excitação devota, á idéa d'aquella missão de caridade, que partia alli d'ellas, da rua da Misericordia... Extasiavam-se, no ante-gosto guloso dos elogios do senhor chantre e do cabido! Cada uma dava o seu conselho, n'uma assiduidade de participar da santa obra, de partilharem as recompensas que o céo certamente prodigalisaria. D. Joaquina Gansoso declarou com calor que invejava Amelia; e chocou-se muito vendo-a de repente rir.

—Imaginas que não o faria com a mesma devoção? Já estás com o orgulho da boa acção... Olha que assim não t'aproveita!

Mas Amelia continuava tomada d'um riso nervoso, [430] deitada para as costas da cadeira, suffocando-se para se conter.

Os olhinhos de D. Joaquina chammejavam.

—É indecente, é indecente! gritava.

Calmaram-na: Amelia teve de lhe jurar sob os Santos Evangelhos que fôra uma idéa extravagante que tivera, que era nervoso...

—Ai, disse D. Maria da Assumpção, ella tem razão em s'orgulhar. Que é uma honra p'r'á casa! Em se sabendo...

O parocho interrompeu com severidade:

—Mas não se deve saber, snr.a D. Maria da Assumpção! De que serve, aos olhos do Senhor, uma boa obra de que se tire alarde e vangloria?

D. Maria vergou os hombros, humilhando-se á reprehensão. E Amaro, com gravidade:

—Isto não deve sahir d'aqui. É entre Deus e nós. Queremos salvar uma alma, consolar uma enferma, e não ter elogios nos periodicos. Pois não é assim, padre-mestre?

O conego ergueu-se pesadamente:

—Vossê esta noite tem fallado com a lingua de ouro de S. Chrysostomo. Eu estou edificado; e não se me dava agora de vêr apparecer as torradas.

Foi então, emquanto a Ruça não trazia o chá, que se decidiu que Amelia, todas as semanas, uma ou duas vezes segundo fosse a sua devoção, iria em segredo, para que a acção fosse mais valiosa aos olhos de Deus, passar uma hora à cabeceira da paralytica, [431] lêr-lhe a Vida dos Santos, ensinar-lhe rezas e insufflar-lhe a virtude.

—Emfim, resumiu a snr.a D. Maria da Assumpção voltando-se para Amelia, não te digo senão uma coisa: abichaste!

A Ruça entrou com o taboleiro, no meio dos risos que provocára a «tolice de D. Maria», como disse Amelia, que se fizera escarlate.—E foi assim que ella e o padre Amaro se puderam vêr livremente, para gloria do Senhor e humilhação do Inimigo.


Encontravam-se todas as semanas, ora uma ora duas vezes, de modo que as suas visitas caridosas á paralytica perfizessem ao fim do mez o numero symbolico de sete, que devia corresponder, na idéa das devotas, ás Sete lições de Maria. Na vespera o padre Amaro tinha prevenido o tio Esguelhas, que deixava a porta da rua apenas cerrada, depois de ter varrido toda a casa e preparado o quarto para a pratica do senhor parocho. Amelia n'esses dias erguia-se cedo: tinha sempre alguma saia branca a engommar, algum laçarote a compôr; a mãi estranhava-lhe aquelles arrebiques, o desperdicio d'agua de colonia de que ella se inundava; mas Amelia explicava que «era para inspirar á Tótó idéas de aceio e de frescura». E depois de vestida sentava-se, esperando as onze horas, muito séria, respondendo distrahidamente ás conversas da mãi, com [432] uma côr nas faces, os olhos cravados nos ponteiros do relogio: emfim a velha matraca gemia cavamente as onze horas, e ella, depois d'uma olhadella ao espelho, sahia, dando uma beijoca á mamã.

Ia sempre receosa, n'uma inquietação de ser espreitada. Todas as manhãs pedia a Nossa Senhora da Boa Viagem que a livrasse de maus encontros; e se via um pobre dava-lhe invariavelmente esmola, para lisonjear os gostos de Nosso Senhor, amigo dos mendigos e vagabundos. O que a assustava era o largo da Sé, sobre o qual a Amparo da botica, costurando por traz da janella, exercia uma vigilancia incessante. Fazia-se então pequenina no seu mantelete, e abaixando o guardasol sobre o rosto, entrava emfim na Sé, sempre com o pé direito.

Mas a mudez da igreja, deserta e adormecida n'uma luz fusca, amedrontava-a: parecia-lhe sentir, na taciturnidade dos santos e das cruzes, uma reprehensão ao seu peccado; imaginava que os olhos de vidro das imagens, as pupillas pintadas dos paineis se fixavam n'ella, com uma insistencia cruel, e percebiam o arfar que ao seu seio dava a esperança do prazer. Ás vezes mesmo, atravessada d'uma superstição, para dissipar o descontentamento dos santos, promettia dar-se n'essa manhã toda á Tótó, occupar-se caridosamente só d'ella, e não se deixar tocar sequer no vestido pelo senhor padre Amaro. Mas se ao entrar na casa do sineiro o não encontrava, ia logo, sem se deter ao pé da cama da Tótó, postar-se à janella da cozinha, vigiando a porta massiça da sacristia [433] de que ella conhecia uma por uma as chapas negras de ferro.

Elle apparecia, emfim. Era então nos começos de março; já tinham chegado as andorinhas; ouviam-n'as chilrear, n'aquelle silencio melancolico, esvoaçando entre os contrafortes da Sé. Aqui e além, plantas dos logares humidos cobriam os cantos d'uma verdura escura. Amaro, ás vezes muito galante, ia procurar uma florzinha. Amelia impacientava-se, rufava na vidraça da cozinha. Elle apressava-se; ficavam um momento á porta, apertando-se as mãos, com olhos brilhantes que se devoravam; e iam emfim vêr a Tótó—e dar-lhe os bolos que o parocho lhe trazia no bolso da batina.

A cama da Tótó era na alcova, ao lado da cozinha; o seu corpinho de tisica quasi não fazia saliencia enterrado na cova da enxerga, sob os cobertores enxovalhados que ella se entretinha a esfiar. N'esses dias tinha vestido um chambre branco, os cabellos reluziam-lhe d'oleo; porque ultimamente, desde as visitas d'Amaro, viera-lhe «uma birra de parecer alguem», como dizia encantado o tio Esguelhas, a ponto de se não querer separar d'um espelho e d'um pente que escondia debaixo do travesseiro e obrigar o pai a encafuar sob a cama, entre a roupa suja, as bonecas que agora desprezava.

Amelia sentava-se um instante aos pés do catre, perguntando-lhe se estudára o A B C, obrigando-a a dizer aqui e além o nome d'uma letra. Depois queria que ella repetisse sem a errar a oração que lhe [434] andava ensinando;—emquanto o padre, sem passar da porta, esperava, com as mãos nos bolsos, enfastiado, embaraçado com os olhos reluzentes da paralytica que o não deixavam, penetrando-o, percorrendo-lhe o corpo com pasmo e com ardor, e que pareciam maiores e mais brilhantes no seu rosto trigueiro tão chupado que se lhe via a saliencia das maxillas. Não sentia agora nem compaixão nem caridade pela Tótó; detestava aquella demora; achava a rapariga selvagem e embirrenta. A Amelia tambem pesavam aquelles momentos em que, para não escandalisar muito Nosso Senhor, se resignava a fallar à paralytica. A Tótó parecia odial-a; respondia-lhe muito carrancuda; outras vezes persistia n'um silencio rancoroso, voltada para a parede; um dia despedaçára o alphabeto; e encolhia-se toda encruada se Amelia lhe queria compor o chale sobre os hombros ou conchegar-lhe a roupa...

Emfim Amaro, impaciente, fazia um signal a Amelia; ella punha logo diante da Tótó o livro com estampas da Vida dos Santos.

—Vá, ficas agora a vêr as figuras... Olha, este é S. Matheus, esta Santa Virginia... Adeus, eu vou lá a cima com o senhor parocho rezarmos para que Deus te dê saude e te deixe ir passear... Não estragues o livro, que é peccado.

E subiam a escada, emquanto a paralytica, estendendo o pescoço sôfregamente, os seguia, escutando o ranger dos degraus, com olhos chammejantes que lagrimas de raiva ennevoavam. O quarto, [435] em cima, era muito baixo, sem forro, com um tecto de vigas negras sobre que assentavam as telhas. Ao lado da cama pendia a candeia que puzera sobre a parede um penacho negro do fumo. E Amaro ria sempre dos preparativos que fizera o tio Esguelhas—a mesa ao canto com o Novo Testamento, uma caneca d'agua, e duas cadeiras dispostas ao lado...

—É p'r'á nossa conferencia, para te ensinar os deveres de freira, dizia elle, galhofando.

—Ensina, então! murmurava ella de braços abertos, pondo-se diante do padre, com um sorriso calido onde brilhava um branquinho dos dentes, n'um abandono que se offerecia.

Elle atirava-lhe beijos vorazes pelo pescoço, pelos cabellos; às vezes mordia-lhe a orelha; ella dava um gritinho; e ficavam então muito quedos, escutando, com medo da paralytica em baixo. O parocho depois fechava as portadas da janella e a porta muito perra que tinha d'empurrar com o joelho. Amelia ia-se despindo devagar; e com as saias cahidas aos pés ficava um momento immovel, como uma fórma branca na escuridão do quarto. Em redor o padre, preparando-se, respirava forte. Ella então persignava-se depressa, e sempre ao subir para o leito dava um suspirosinho triste.

Amelia só podia demorar-se até ao meio dia. O padre Amaro por isso pendurava o seu cebolão no prego da candeia. Mas quando não ouviam as badaladas da torre, Amelia conhecia a hora pelo cantar d'um gallo visinho. [436]

—Devo ir, filho, murmurava toda cansada.

—Deixa lá... Estás sempre com a pressa...

Ficavam ainda um momento calados, n'uma lassidão dôce, muito chegados um ao outro. Pelas vigas separadas do telhado mal junto viam aqui e além fendas de luz: ás vezes sentiam um gato, com as suas passadas fofas, vadiar, fazendo bolir alguma telha solta; ou um passaro, pousando, chilreava e ouviam-lhe o fremito das azas.

—Ai, são horas, dizia Amelia.

O padre queria detel-a; não se fartava de lhe beijar a orelhinha.

—Lambão! murmurava ella. Deixa-me!

Vestia-se á pressa no escuro do quarto; depois ia abrir a janella, vinha ainda abraçar o pescoço de Amaro, que ficára estatelado sobre o leito; e ia emfim arrastar a mesa e as cadeiras, para a paralytica sentir em baixo, saber que tinha acabado a conferencia.

Amaro não findava ainda de a beijocar: ella então, para acabar, fugia-lhe, ia escancarar a porta do quarto; o padre descia, atravessava em duas passadas a cozinha sem olhar para a Tótó, e entrava na sacristia.

Amelia, essa, antes de sahir, vinha vêr a paralytica, saber se gostára das estampas. Encontrava-a ás vezes com a cabeça debaixo dos cobertores, que entalava e prendia com as mãos para se esconder; outras vezes, sentada na cama, examinava Amelia com olhos em que se accendia uma curiosidade viciosa; [437] chegava o rosto para ella, com as narinas dilatadas que pareciam cheiral-a; Amelia recuava, inquieta, córando tambem; queixava-se então de ser tarde, recolhia a Vida dos Santos,—e sahia, amaldiçoando aquella creatura tão maliciosa na sua mudez.


Ao passar no largo, áquella hora, via sempre a Amparo á janella. Ultimamente mesmo julgára prudente contar-lhe em segredo a sua caridade com a Tótó. A Amparo, mal a via, chamava-a; e debruçando-se toda na varanda:

—Então como vai a Tótó?

—Lá vai.

—Já lê?

—Já soletra.

—E a oração a Nossa Senhora?

—Já a diz.

—Ai, que devoção a tua, filha!

Amelia baixava os olhos, modesta. E o Carlos, que estava tambem no segredo, deixava o balcão para vir á porta admirar Amelia.

—Vem da sua grande missão de caridade, hein? dizia, d'olho arregalado, balanceando-se na ponta das chinelas.

—Estive um bocado com a pequena, a entretel-a...

—Grandioso! murmurava o Carlos. Um apostolado! Pois vá, minha santa menina, recados á mamã. [438]

Voltava-se então para dentro, para o praticante:

—Veja o snr. Augusto aquillo... Em logar de passar o seu tempo, como as outras, em namoros, faz-se anjo da guarda! Passa a flôr dos annos com uma entrevada! Veja o senhor se a philosophia, o materialismo, e essas porcarias são capazes d'inspirar acções d'este jaez... Só a religião, meu caro senhor! Eu queria que os Renans e essa cambada de philosophos vissem isto! Que eu, tenha o senhor em vista, admiro a philosophia, mas quando ella, por assim dizer, vai de mãos dadas com a religião... Sou homem de sciencia e admiro um Newton, um Guizot... Mas (e grave o senhor estas palavras) se a philosophia se afasta da religião... (grave bem estas palavras) dentro de dez annos, snr. Augusto, está a philosophia enterrada!

E continuava a mexer-se pela pharmacia a passos lentos, de mãos atraz das costas, ruminando o fim da philosophia.



XVIII



Foi aquelle o periodo mais feliz da vida de Amaro.

«Ando na graça de Deus», pensava elle ás vezes á noite, ao despir-se, quando por um habito ecclesiastico, fazendo o exame dos seus dias, via que elles se seguiam faceis, tão confortaveis, tão regularmente gozados. Não houvera, nos ultimos dois mezes, nem attritos nem difficuldades no serviço da parochia; todo o mundo, como dizia o padre Saldanha, andava d'um humor de santo. D. Josepha Dias arranjára-lhe muito barata uma cozinheira excellente, e que se chamava Escolastica. Na rua da Misericordia tinha a sua côrte admiradora e devota; cada semana, uma ou duas vezes, vinha áquella hora deliciosa e celeste na casa do tio Esguelhas; e para completar a harmonia até a estação ia tão linda, que já no Morenal começavam a abrir as rosas. [440]

Mas o que o encantava era que nem as velhas, nem os padres, ninguem da sacristia suspeitava os seus rendez-vous com Amelia. Aquellas visitas á Tótó tinham entrado nos costumes da casa; chamavam-lhe «as devoções da pequena»; e não a interrogavam com particularidades, pelo principio beato que as devoções são um segredo que se tem com Nosso Senhor. Só ás vezes alguma das senhoras perguntava a Amelia—como ia a doente; ella assegurava que estava muito mudada, que começava a abrir os olhos á lei de Deus; então, muito discretamente, fallavam de coisas differentes. Havia apenas o plano vago de irem um dia, mais tarde, quando a Tótó soubesse bem o seu catecismo e pela efficacia da oração se tivesse tornado boa, admirar em romaria a obra santa de Amelia e a humilhação do Inimigo.

Amelia mesmo, perante esta confiança tão larga na sua virtude, propuzera um dia a Amaro, como muito habil—dizer ás amigas que o senhor parocho ás vezes vinha assistir á pratica piedosa que ella fazia á Tótó...

—Assim, se alguem te surprehendesse a entrar para a casa do tio Esguelhas, já não havia suspeitas.

—Não me parece necessario, disse elle. Deus está comnosco, filha, é claro. Não queiramos intrometter-nos nos seus planos. Elle vê mais longe que nós...

Ella concordou logo—como em tudo que sahia dos seus labios. Desde a primeira manhã, na casa [441] do tio Esguelhas, ella abandonára-se-lhe absolutamente, toda inteira, corpo, alma, vontade e sentimento: não havia na sua pelle um cabellinho, não corria no seu cerebro uma idéa a mais pequenina, que não pertencesse ao senhor parocho. Aquella possessão de todo o seu sêr não a invadira gradualmente; fôra completa, no momento que os seus fortes braços se tinham fechado sobre ella. Parecia que os beijos d'elle lhe tinham sorvido, esgotado a alma: agora era como uma dependencia inerte da sua pessoa. E não lh'o occultava; gozava em se humilhar, offerecer-se sempre, sentir-se toda d'elle, toda escrava; queria que elle pensasse por ella e vivesse por ella; descarregára-se n'elle, com satisfação, d'aquelle fardo da responsabilidade que sempre lhe pesára na vida; os seus juizos agora vinham-lhe formados do cerebro do parocho, tão naturalmente como se sahisse do coração d'elle o sangue que lhe corria nas veias. «O senhor parocho queria ou o senhor parocho dizia» era para ella uma razão toda sufficiente e toda poderosa. Vivia com os olhos n'elle, n'uma obediencia animal: tinha só a curvar-se quando elle fallava, e quando vinha o momento a desapertar o vestido.

Amaro gozava prodigiosamente esta dominação; ella desforrava-o de todo um passado de dependencias—a casa do tio, o seminario, a sala branca do senhor conde de Ribamar... A sua existencia de padre era uma curvatura humilde que lhe fatigava a alma; vivia da obediencia ao senhor bispo, á camara [442] ecclesiastica, aos canones, á Regra que nem lhe permittia ter uma vontade propria nas suas relações com o sacristão. E agora, emfim, tinha alli aos seus pés aquelle corpo, aquella alma, aquelle sêr vivo sobre quem reinava com despotismo. Se passava os seus dias, por profissão, louvando, adorando e incensando Deus,—era elle tambem agora o Deus d'uma creatura que o temia e lhe dava uma devoção pontual. Para ella ao menos, era bello, superior aos condes e aos duques, tão digno da mitra como os mais sabios. Ella mesmo, um dia, dissera-lhe, depois de ter estado um momento pensativa:

—Tu podias chegar a Papa!

—D'esta massa se fazem, respondeu elle com seriedade.

Ella acreditava-o—com um receio, todavia, que as altas dignidades o afastassem d'ella, o levassem para longe de Leiria. Aquella paixão, em que estava abysmada e que a saturava, tornára-a estupida e obtusa a tudo o que não respeitava ao senhor parocho ou ao seu amor. Amaro de resto não lhe consentia interesses, curiosidades alheias á sua pessoa. Prohibia-lhe até que lêsse romances e poesias. Para que se havia de fazer doutora? Que lhe importava o que ia no mundo? Um dia que ella fallára, com algum appetite, d'um baile que iam dar os Vias-Claras, offendeu-se como d'uma traição. Fez-lhe em casa do tio Esguelhas accusações tremendas: era uma vaidosa, uma perdida, uma filha de Satanaz!...

—Mas mato-te! Percebes? Mato-te!—exclamou, [443] agarrando-lhe os pulsos, fulminando-a com o olhar accêso.

Tinha um medo, que o pungia, de a vêr subtrahir-se ao seu imperio, perder-lhe a adoração muda e absoluta. Pensava ás vezes que ella se fatigaria, com o tempo, d'um homem que não lhe satisfazia as vaidades e os gostos de mulher, sempre mettido na sua batina negra, com a cara rapada e a corôa aberta. Imaginava que as gravatas de côres, os bigodes bem torcidos, um cavallo que trota, um uniforme de lanceiros exercem sobre as mulheres uma fascinação decisiva. E se a ouvia fallar d'algum official do destacamento, d'algum cavalheiro da cidade, eram ciumes desabridos...

—Góstas d'elle? Hein? É pelos trapos, pelo bigode?...

—Gósto d'elle! Oh, filho, eu nunca vi o homem!

Mas escusava de fallar da creatura, então! Era ter curiosidade, pôr o pensamento n'outro! D'essas faltas de vigilancia sobre a alma e a vontade é que se aproveitava o demonio!...

Viera assim a ter um odio a todo o mundo secular—que a poderia attrahir, arrastar para fóra da sombra da sua batina. Impedia-lhe, com pretextos complicados, toda a communicação com a cidade. Convenceu mesmo a mãi que a não deixasse ir só á Arcada e ás lojas. E não cessava de lhe representar os homens como monstros d'impiedade, cobertos de peccados como d'uma crosta, estupidos e falsos, votados ao inferno! Contava-lhe horrores de quasi [444] todos os rapazes de Leiria. Ella perguntava-lhe aterrada, mas curiosa:

—Como sabes tu?

—Não te posso dizer, respondia com uma reticencia, indicando que lhe fechava os labios o segredo da comfissão.

E ao mesmo tempo martellava-lhe os ouvidos com a glorificação do sacerdocio. Desenrolava-lhe com pompa a erudição dos seus antigos compendios, fazendo-lhe o elogio das funcções, da superioridade do padre. No Egypto, grande nação da antiguidade, o homem só podia ser rei se era sacerdote! Na Persia, na Ethiopia, um simples padre tinha o privilegio de desthronar os reis, dispôr das corôas! Onde havia uma auctoridade igual á sua? Nem mesmo na côrte do céo. O padre era superior aos anjos e aos seraphins—porque a elles não fôra dado como ao padre o poder maravilhoso de perdoar os peccados! Mesmo a Virgem Maria, tinha ella um poder maior que elle, padre Amaro? Não: com todo o respeito devido à magestade de Nossa Senhora, elle podia dizer com S. Bernardino de Sena: «o sacerdote excede-te, ó mãi amada!»—porque, se a Virgem tinha incarnado Deus no seu castissimo seio, fôra só uma vez, e o padre, no santo sacrificio da missa, incarnava Deus todos os dias! E isto não era argucia d'elle, todos os santos padres o admittiam...

—Hein, que te parece?

—Oh, filho! murmurava ella pasmada, desfallecida de voluptuosidade. [445]

Então deslumbrava-a com citações venerandas: S. Clemente, que chamou ao padre «o Deus da terra»; o eloquente S. Chrysostomo, que disse «que o padre é o embaixador que vem dar as ordens de Deus». E Santo Ambrosio que escreveu: «entre a dignidade do rei e a dignidade do padre ha maior differença que a que existe entre o chumbo e o ouro»!

—E o ouro é cá o menino, dizia Amaro com palmadinhas no peito. Que te parece?

Ella atirava-se-lhe aos braços, com beijos vorazes, como para tocar, possuir n'elle o «ouro de Santo Ambrosio», o «embaixador de Deus», tudo o que na terra havia mais alto e mais nobre, o sêr que excede em graça os archanjos!

Era este poder divino do padre, esta familiaridade com Deus, tanto ou mais que a influencia da sua voz—que a faziam crêr na promessa que elle lhe repetia sempre: que ser amada por um padre chamaria sobre ella o interesse, a amizade de Deus; que depois de morta dois anjos viriam tomal-a pela mão para a acompanhar e desfazer todas as duvidas que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do céo; e que na sua sepultura, como succedera em França a uma rapariga amada por um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova celeste de que a virgindade não se estraga nos abraços santos d'um padre...

Isto encantava-a. Áquella idéa da sua cova perfumada de rosas brancas, ficava toda pensativa, n'um [446] antegosto de felicidades mysticas, com suspirinhos de gozo. Affirmava, fazendo beicinho, que queria morrer.

Amaro galhofava.

—A fallar da morte, com essas carnesinhas...

Engordára com effeito. Estava agora d'uma belleza ampla e toda igual. Perdera aquella expressão inquieta que lhe punha nos labios uma seccura e lhe afilava o nariz. Nos seus beiços havia um vermelho quente e humido; o seu olhar tinha risos sob um fluido sereno; toda a sua pessoa uma apparencia madura de fecundidade. Fizera-se preguiçosa: em casa, a cada momento suspendia o seu trabalho, ficava a olhar longamente com um sorriso mudo e fixo; e tudo parecia ficar adormecido um momento, a agulha, o panno que ella costurava, toda a sua pessoa... Estava revendo o quarto do sineiro, o catre, o senhor parocho em mangas de camisa.

Passava os seus dias esperando as oito horas, em que elle apparecia regularmente com o conego. Mas os serões agora pezavam-lhe. Elle recommendára-lhe muita reserva; ella exagerava-a, por um excesso de obediencia, a ponto de nunca se sentar ao pé d'elle ao chá, e de nem mesmo lhe offerecer bolos. Odiava então a presença das velhas, a gralhada das vozes, as pachorras do quino: tudo lhe parecia intoleravel no mundo, excepto estar só com elle... Mas depois, em casa do sineiro, que desforra! Aquelle rosto todo alterado, aquellas suffocações de delirio, aquelles ais agonisantes, depois a immobilidade da [447] morte, assustavam ás vezes o padre. Erguia-se no cotovêlo, inquieto:

—Estás incommodada?

Ella abria os olhos espantados, como resurgindo de muito longe; e era realmente bella, cruzando os braços nús sobre o peito descoberto, dizendo lentamente com a cabeça que não...



XIX



Uma circumstancia inesperada veio estragar aquellas manhãs da casa do sineiro. Foi a extravagancia da Tótó. Como disse o padre Amaro, «a rapariga sahia-lhes um monstro»!

Tinha agora por Amelia uma aversão desabrida. Apenas ella se aproximava da cama, atirava a cabeça para debaixo dos cobertores, torcendo-se com phrenesi se lhe sentia a mão ou a voz. Amelia fugia, impressionada com a idéa de que o diabo que habitava a Tótó, recebendo o cheiro que ella trazia da igreja nos vestidos, impregnados d'incenso e salpicados d'agua benta, se espolinhava de terror dentro do corpo da rapariga...

Amaro quiz reprehender a Tótó, fazer-lhe sentir, em palavras tremendas, a sua ingratidão demoniaca [450] para com a menina Amelia que vinha entretel-a, ensinal-a a conversar com Nosso Senhor... Mas a paralytica rompeu n'um chôro hysterico; depois, de repente, ficou immovel, hirta, esbugalhando os olhos em alvo, com uma escuma branca na bôca. Foi um grande susto; inundaram-lhe a cama d'agua; Amaro, por prudencia, recitou os exorcismos... E Amelia desde então resolveu «deixar a fera em paz». Não tentou mais ensinar-lhe o alphabeto, nem orações a Sant'Anna.

Mas, por escrupulo, iam sempre ao entrar vêl-a um instante. Não passavam da porta da alcova, perguntando-lhe d'alto «como ia». Nunca respondia. E elles retiravam-se logo aterrados com aquelles olhos selvagens e brilhantes, que os devoravam, indo d'um a outro, percorrendo-lhes o corpo, fixando-se com uma faiscação metallica nos vestidos d'Amelia e na batina do padre, como para lhe adivinhar o que estava por baixo, n'uma curiosidade avida que lhe dilatava desesperadamente as narinas e lhe arreganhava os beiços lividos. Mas era a mudez, obstinada e rancorosa, que os incommodava sobretudo. Amaro, que não acreditava muito em possessos e endemoninhados, via alli os symptomas de loucura furiosa. Os sustos d'Amelia augmentaram.—Felizmente que as pernas inertes cravavam a Tótó alli na enxerga! Senão, Jesus, era capaz de lhes entrar no quarto e mordêl-os n'um accesso!

Declarou a Amaro que nem lhe sabia bem o prazer da manhã, «depois d'aquelle espectaculo»; e [451] decidiu então, d'ahi por diante, subir para o quarto sem fallar á Tótó.

Foi peor. Quando a via atravessar da porta da rua para a escada, a Tótó debruçava-se para fóra do leito, agarrada ás bordas da enxerga, n'um esforço ancioso para a seguir, para a vêr, com a face toda descomposta do desespero da sua immobilidade. E Amelia ao entrar no quarto sentia vir de baixo uma risadinha sêcca, ou um ui! prolongado e uivado que a gelava...

Andava agora aterrada: viera-lhe a idéa que Deus estabelecera alli, ao lado do seu amor com o parocho, um demonio implacavel para a escarnecer e apupar. Amaro, querendo-a tranquillisar, dizia-lhe que o nosso santo padre Pio IX, ultimamente, declarára peccado crêr em pessoas possessas...

—Mas para que ha rezas, então, e exorcismos?

—Isso é da religião velha. Agora vai-se mudar tudo isso... Emfim a sciencia é a sciencia...

Ella presentia que Amaro a enganava—e a Tótó estragava a sua felicidade. Emfim Amaro achou o meio de escaparem «á maldita rapariga»: era entrarem ambos pela sacristia: tinham apenas a atravessar a cozinha para subir a escada, e a posição da cama da Tótó, na alcova, não lhe permittia vêl-os, quando elles cautelosamente passassem pé ante pé. Era facil, de resto, porque á hora do rendez-vous, entre as onze e o meio dia, nos dias de semana, a sacristia estava deserta.

Mas succedia que, quando elles entravam em [452] pontas de pés e mordendo a respiração, os seus passos, por mais subtis, faziam ranger os velhos degraus da escada. E então a voz da Tótó sahia da alcova, uma voz rouca e aspera, berrando:

—Passa fóra cão! passa fóra cão!

Amaro tinha um desejo furioso de estrangular a paralytica. Amelia tremia, toda branca.

E a creatura uivava de dentro:

—Lá vão os cães! lá vão os cães!

Elles refugiavam-se no quarto, aferrolhando-se por dentro. Mas aquella voz d'um desolamento lugubre, que lhes parecia vir dos infernos, chegava-lhes ainda, perseguia-os:

—Estão a pegar-se os cães! estão a pegar-se os cães!

Amelia cahia sobre o catre, quasi desmaiada de terror. Jurava não voltar áquella casa maldita...

—Mas que diabo queres tu? dizia-lhe o padre furioso. Onde nos havemos de vêr então? Queres que nos deitemos nos bancos da sacristia?

—Mas que lhe fiz eu? que lhe fiz eu? exclamava Amelia, apertando as mãos.

—Nada! É doida... E o pobre tio Esguelhas tem tido um desgosto... Emfim, que queres que lhe faça?

Ella não respondia. Mas em casa, quando se ia aproximando o dia de rendez-vous, começava a tremer á idéa d'aquella voz que lhe atroava sempre nos ouvidos e que sentia em sonhos. E este terror ia-a despertando lentamente do adormecimento de [453] todo o sêr, era que cahira nos braços do parocho. Interrogava-se agora: não andaria commettendo um peccado irremissivel? As affirmações de Amaro, assegurando-lhe o perdão do Senhor, já não a tranquillisavam. Ella bem via, quando a Tótó uivava, uma pallidez cobrir o rosto do parocho, como correr-lhe no corpo um calefrio do inferno entrevisto. E se Deus os desculpava—porque deixava assim o demonio atirar-lhes, pela voz da paralytica, a injuria e o escarneo?

Ajoelhava então aos pés da cama, arremessava orações sem fim para Nossa Senhora das Dôres, pedindo-lhe que a alumiasse, que lhe dissesse o que era aquella perseguição da Tótó, e se era sua intenção divina mandar-lhe assim um aviso medonho. Mas Nossa Senhora não lhe respondia. Não a sentia como outr'ora descer do céo ás suas orações, entrar-lhe na alma aquella tranquillidade suave como uma onda de leite que era uma visitação da Senhora. Ficava toda murcha, torcendo as mãos, abandonada da graça. Promettia então não voltar a casa do sineiro;—mas quando o dia chegava, á idéa d'Amaro, do leito, d'aquelles beijos que lhe levavam a alma, d'aquelle fogo que a penetrava, sentia-se toda fraca contra a tentação; vestia-se, jurando que era a ultima vez; e ao toque das onze partia, com as orelhas a arder, o coração tremendo da voz da Tótó que ia ouvir, as entranhas abrazando-se no desejo do homem que a ia atirar para cima da enxerga. [454]

Ao entrar na igreja não rezava, com medo dos santos.

Corria para a sacristia para se refugiar em Amaro, abrigar-se á auctoridade sagrada da sua batina. Elle então, vendo-a chegar tão pallida e tão transtornada, galhofava para a tranquillisar. Não, era uma tolice, se iam agora estragar o regalosinho d'aquellas manhãs, porque havia uma doida na casa! Promettera-lhe de resto procurar outro sitio para se vêrem: e mesmo com o fim de a distrahir, aproveitando a solidão da sacristia, mostrava-lhe ás vezes os paramentos, os calices, as vestimentas, procurando interessal-a por um frontal novo ou por uma antiga renda de sobrepelliz, provando-lhe, pela familiaridade com que tocava nas reliquias, que era ainda o senhor parocho e não perdera o seu credito no céo.

Foi assim que uma manhã lhe fez vêr uma capa de Nossa Senhora, que havia dias chegára de presente d'uma devota rica d'Ourem. Amelia admirou-a muito. Era de setim azul, representando um firmamento, com estrellas bordadas, e um centro, de lavor rico, onde flammejava um coração d'ouro cercado de rosas d'ouro. Amaro desdobrára-a, fazendo scintillar junto da janella os bordados espessos.

—Rica obra, hein? centos de mil reis... Experimentamol-a hontem na imagem... Vai-lhe como um brinco. Um bocadito comprida, talvez...—E olhando Amelia, n'uma comparação da sua alta estatura com a figura atarracada da imagem da Senhora:—A [455] ti é que te havia de ficar bem. Deixa vêr...

Ella recuou:

—Não, credo, que peccado!

—Tolice! disse elle adiantando-se com a capa aberta, mostrando o forro de setim branco, d'uma alvura de nuvem matutina. Não está benzida... É como se viesse da modista.

—Não, não, dizia ella frouxamente, com os olhos já luzidios de desejo.

Elle então zangou-se. Queria talvez saber melhor do que elle o que era peccado, não? Vinha agora a menina ensinar-lhe o respeito que se deve aos vestuarios dos santos?

—Ora não seja tola. Deixe vêr.

Poz-lh'a nos hombros, apertou-lhe sobre o peito o fecho de prata lavrada. E afastou-se para a contemplar toda envolvida no manto, assustada e immovel, com um sorriso cálido de gozo devoto.

—Oh filhinha, que linda que ficas!

Ella então, movendo-se com uma cautela solemne, chegou-se ao espelho da sacristia—um antigo espelho de reflexo esverdeado com um caixilho negro de carvalho lavrado, tendo no topo uma cruz. Mirou-se um momento, n'aquella sêda azul celeste que a envolvia toda, picada do brilho agudo das estrellas, com uma magnificencia sideral. Sentia-lhe o peso rico. A santidade que o manto adquirira no contacto com os hombros da imagem penetrava-a d'uma voluptuosidade beata. Um fluido mais dôce que o ar da terra envolvia-a, fazia-lhe passar no [456] corpo a caricia do ether do paraiso. Parecia-lhe ser uma santa no andor, ou mais alto, no céo...

Amaro babava-se para ella:

—Oh filhinha, és mais linda que Nossa Senhora!

Ella deu uma olhadella viva ao espelho. Era, decerto, linda. Não tanto como Nossa Senhora... Mas com o seu rosto trigueiro, de labios rubros, alumiado por aquelle rebrilho dos olhos negros, se estivesse sobre o altar, com cantos ao orgão e um culto susurrando em redor, faria palpitar bem forte o coração dos fieis...

Amaro então chegou-se por detraz d'ella, cruzou-lhe os braços sobre o seio, apertou-a toda—e estendendo os labios por sobre os d'ella, deu-lhe um beijo mudo, muito longo... Os olhos d'Amelia cerravam-se, a cabeça inclinava-se-lhe para traz, pesada de desejo. Os beiços do padre não se desprendiam, avidos, sorvendo-lhe a alma. A respiração d'ella apressava-se, os joelhos tremiam-lhe: e com um gemido desfalleceu sobre o hombro do padre, descórada e morta de gozo.

Mas endireitou-se de repente, fixou Amaro batendo as palpebras como acordada de muito longe; uma onda de sangue escaldou-lhe o rosto:

—Oh Amaro, que horror, que peccado!...

—Tolice! disse elle.

Mas ella desprendia-se do manto, toda afflicta:

—Tira-m'o, tira-m'o! gritava, como se a sêda a queimasse. [457]

Então Amaro fez-se muito sério. Realmente não se devia brincar com coisas sagradas...

—Mas não está benzida... Não tem duvida...

Dobrou o manto cuidadosamente, envolveu-o no lençol branco, collocou-o no gavetão, sem uma palavra. Amelia olhava-o petrificada: e só os seus labios pallidos se moviam n'uma oração.

Quando elle lhe disse, emfim, que eram horas d'irem a casa do sineiro—recuou, como diante do demonio que a chamasse.

—Hoje não! exclamou, implorando-o.

Elle insistiu. Era levar realmente muito longe a pieguice... Ella bem sabia que não era peccado, quando as coisas não estavam benzidas... Era ser muito pobre d'espirito... Que demonio, só meia hora, ou um quarto d'hora!

Ella, sem responder, ia-se aproximando da porta.

—Então não queres?

Ella voltou-se, e com uns olhos supplicantes:

—Hoje não!

Amaro encolheu os hombros. E Amelia atravessou rapidamente a igreja, de cabeça baixa e olhos nas lages, como se passasse entre as ameaças cruzadas dos santos indignados.


No dia seguinte de manhã, a S. Joanneira, que estava na sala de jantar, sentindo o senhor conego subir soprando forte, veio encontral-o á escada e fechou-se com elle na saleta. [458]

Queria contar-lhe a afflicção que tivera de madrugada. A Amelia acordára de repente aos gritos, que Nossa Senhora lhe estava a pousar o pé no pescoço! que suffocava! que a Tótó a queimava por detraz! e que as labaredas do inferno subiam mais alto que as torres da Sé!... Emfim um horror!... Viera encontral-a em camisa a correr pelo quarto, como doida. D'ahi a pouco cahira para o lado com um ataque de nervos. Toda a casa estivera em alvoroço... A pobre pequena lá estava de cama, e em toda a manhã apenas tocára n'uma colher de caldo.

—Pesadêlos, disse o conego. Indigestão!

—Ai, senhor conego, não! exclamou a S. Joanneira, que parecia acabrunhada, sentada diante d'elle na borda d'uma cadeira. É outra coisa: são aquellas desgraçadas visitas á filha do sineiro!

E então desabafou, com a effusão labial de quem abre os diques a um descontentamento accumulado. Nunca quizera dizer nada, porque emfim reconhecia que era uma grande obra de caridade. Mas, desde que aquillo começára, a rapariga parecia transtornada. Ultimamente, então, andava de todo. Ora alegrias sem razão, ora umas trombas de dar melancolia aos moveis. De noite sentia-a passear pela casa até tarde, abrir as janellas... Ás vezes tinha até medo de lhe vêr o olhar tão exquisito: quando vinha de casa do sineiro era sempre branca como a cal, a cahir de fraqueza. Tinha de tomar logo um caldo... Emfim, dizia-se que a Tótó tinha o demonio no corpo. E o senhor chantre, o outro que [459] tinha morrido (Deus lhe falle n'alma), costumava dizer que n'este mundo as duas coisas que se pegavam mais ás mulheres eram tisicas e demonio no corpo. Parecia-lhe, pois, que não devia consentir que a pequena fosse a casa do sineiro, sem estar certa que aquillo nem lhe prejudicava a saude nem lhe prejudicava a alma. Emfim, queria que uma pessoa de juizo, d'experiencia, fosse examinar a Tótó...

—N'uma palavra, disse o conego que escutára d'olhos cerrados aquella verbosidade repassada de lamuria, o que a senhora quer é que eu vá vêr a paralytica e saber á justa o que se passa...

—Era um allivio p'ra mim, riquinho!

Aquella palavra, que S. Joanneira, na sua gravidade de matrona, reservava para a intimidade das séstas, enterneceu o conego. Fez uma caricia ao pescoço gordo da sua velhota, prometteu com bondade ir estudar o caso...

—Ámanhã, que a Tótó está só, lembrou logo a S. Joanneira.

Mas o conego preferia que Amelia estivesse presente. Podia assim vêr como as duas se davam, se havia influencia do espirito maligno...

—Que isto que eu faço é d'agradecer... É por ser p'ra quem é... Que bem me bastam os meus achaques, sem me occupar dos negocios de Satanaz.

A S. Joanneira recompensou-o com uma beijoca sonora. [460]

—Ah, sereias, sereias!... murmurou o conego philosophicamente.

No fundo aquelle encargo desagradava-lhe: era uma perturbação nos seus habitos, toda uma manhã desarranjada; ia decerto fatigar-se, tendo d'exercitar a sua sagacidade; além d'isso odiava o espectaculo de doenças e de todas as circumstancias humanas relacionadas com a morte. Mas, emfim, fiel á sua promessa, d'ahi a dias, na manhã em que fôra prevenido que Amelia ia á Tótó, arrastou-se contrariado para a botica do Carlos; e installou-se, com um olho no Popular e outro na porta, á espera que a rapariga atravessasse para a Sé. O amigo Carlos estava ausente; o snr. Augusto occupava os seus vagares sentado á escrivaninha, de testa sobre o punho, relendo o seu Soares de Passos; fóra, o sol já quente dos fins de abril fazia rebrilhar o lageado do largo; não passava ninguem; e só quebravam o silencio as martelladas nas obras do doutor Pereira. Amelia tardava. E o conego, depois de ter considerado longo tempo, com o Popular cahido nos joelhos, o medonho sacrificio que fazia pela sua velhota, ia cerrando as palpebras, já tomado da quebreira, n'aquelle repouso calado do meio dia proximo—quando entrou na botica um ecclesiastico.

—Oh, abbade Ferrão, vossê pela cidade! exclamou o conego Dias despertando do seu quebranto.

—De fugida, collega, de fugida, disse o outro collocando cuidadadosamente sobre uma cadeira dois grossos volumes que trazia, amarrados n'um barbante. [461]

Depois voltou-se e tirou com respeito o seu chapéo ao praticante.

Tinha o cabello todo branco; devia passar já dos sessenta annos; mas era robusto, uma alegria bailava sempre nos seus olhinhos vivos, e tinha dentes magnificos a que uma saude de granito conservava o esmalte; o que o desfigurava era um nariz enorme.

Informou-se logo com bondade se o amigo Dias estava alli de visita ou infelizmente por motivo de doença.

—Não, estou aqui á espera... Uma embaixada de truz, amigo Ferrão!

—Ah, fez o velho discretamente.—E emquanto tirava com methodo d'uma carteira atulhada de papeis a receita para o praticante, deu ao conego noticias da freguezia. Era lá, nos Poyaes, que o conego tinha a fazenda, a Ricoça. O abbade Ferrão passára de manhã diante da casa e ficára surprehendido vendo que lhe andavam a pintar a fachada. O amigo Dias tinha algumas idéas d'ir lá passar o verão?

Não, não tinha. Mas como trouxera obras dentro e a fachada estava uma vergonha, mandára-lhe dar uma mão d'oca. Emfim era necessario alguma apparencia, sobretudo n'uma casa que estava á beira da estrada, onde passava todos os dias o morgadelho dos Poyaes, um parlapatão que imaginava que só elle tinha um palacete decente em dez leguas á roda... Só para metter ferro áquelle atheu! Pois não lhe parecia, amigo Ferrão? [462]

O abbade estava justamente lamentando comsigo aquelle sentimento de vaidade n'um sacerdote; mas, por caridade christã, para não contrariar o collega, apressou-se a dizer:

—Está claro, está claro. A limpeza é a alegria das coisas...

O conego então, vendo passar no largo uma saia e um mantelete, foi á porta affirmar-se se era Amelia. Não era. E voltando, retomado agora da sua preoccupação, vendo que o praticante fôra dentro ao laboratorio, disse ao ouvido do Ferrão:

—Uma embaixada da fortuna! Vou vêr uma endemoninhada!

—Ah, fez o abbade, todo sério á idéa d'aquella responsabilidade.

—Quer vossê vir commigo, abbade? É aqui perto...

O abbade desculpou-se polidamente. Viera fallar ao senhor vigario geral, fôra depois ao Silverio para lhe pedir aquelles dois volumes, vinha alli aviar uma receita para um velho da freguezia, e tinha d'estar de volta aos Poyaes ao toque das duas horas.

O conego insistiu; era um instante, e o caso parecia curioso...

O abbade então confessou ao caro collega que eram coisas que não gostava d'examinar. Aproximava-se sempre d'ellas com um espirito rebelde á crença, com desconfianças e suspeitas que lhe diminuiam a imparcialidade.

—Mas emfim ha prodigios! disse o conego.—Apesar [463] das suas proprias duvidas, não gostava d'aquella hesitação do abbade, a proposito d'um phenomeno sobrenatural, em que elle, conego Dias, estava interessado. Repetiu com seccura:—Tenho alguma experiencia, e sei que ha prodigios.

—Decerto, decerto ha prodigios, disse o abbade. Negar que Deus ou a Rainha do céo possa apparecer a uma creatura é contra a doutrina da Igreja... Negar que o demonio possa habitar o corpo de um homem, seria estabelecer um erro funesto... Aconteceu a Job, sem ir mais longe, e á familia de Sara. Está claro, ha prodigios. Mas que rarissimos que são, conego Dias!

Calou-se um momento olhando o conego, que tapava o nariz com rapé em silencio—e continuou mais baixo, com o olho brilhante e fino:

—E depois não tem o collega notado que é uma coisa que só succede ás mulheres? É só a ellas, cuja malicia é tão grande que o proprio Salomão não lhes pôde resistir, cujo temperamento é tão nervoso, tão contradictorio que os medicos não as comprehendem. É só a ellas que succedem prodigios!... O collega já ouviu de ter apparecido a nossa Santa Virgem a um respeitavel tabellião? Já ouviu d'um digno juiz de direito possuido do espirito maligno? Não. Isto faz reflectir... E eu concluo que é malicia n'ellas, illusão, imaginação, doença, etc... Não lhe parece? A minha regra n'esses casos é vêr tudo isso d'alto e com muita indifferença. [464]

Mas o conego, que vigiava a porta, brandiu subitamente o guardasol, fazendo para o largo:

—Pst, pst! Eh lá!

Era Amelia que passava. Parou logo, contrariada d'aquelle encontro que a ia ainda retardar mais. E já o senhor parocho devia estar desesperado...

—De modo que, disse o conego á porta abrindo o seu guardasol, vossê, abbade, era lhe cheirando a prodigio...

—Suspeito logo escandalo.

O conego contemplou-o um momento, com respeito:

—Vossê, Ferrão, é capaz de dar quinaus a Salomão em prudencia!

—Oh, collega! oh, collega! exclamou o abbade, offendido com aquella injustiça feita á incomparavel sabedoria de Salomão.

—Ao proprio Salomão! affirmou ainda o conego da rua.

Tinha preparado uma historia habil para justificar a sua visita á paralytica; mas durante a sua conversação com o abbade ella escapára-lhe, como tudo o que deixava um momento nos reservatorios da memoria; e foi sem transição que disse simplesmente a Amelia:

—Vamos lá, tambem quero ir vêr essa Tótó!

Amelia ficou petrificada. E o senhor parocho, naturalmente, já lá estava! Mas sua madrinha Nossa Senhora das Dôres, que ella invocou logo n'aquella [465] afflicção, não a deixou enleada no embaraço.—E o conego, que caminhava ao lado d'ella, ficou surprehendido ouvindo-lhe dizer com um risinho:

—Viva, hoje é o dia das visitas á Tótó! O senhor parocho disse-me que tambem talvez hoje apparecesse por lá... Talvez lá esteja até.

—Ah! O amigo parocho tambem? Está bom, está bom. Faremos uma consulta á Tótó!

Amelia então, contente da sua malicia, tagarellou sobre a Tótó. O senhor conego ia vêr... Era uma creatura incomprehensivel... Ultimamente, ella não tinha querido contar em casa, mas a Tótó tomára-lhe birra... E dizia coisas, tinha um modo de fallar de cães e d'animaes, d'arripiar!... Ai, era um encargo que já lhe pesava... Que a rapariga não lhe escutava as lições, nem as orações, nem os conselhos... Era uma fera!

—O cheiro é desagradavel! rosnou o conego entrando.

Que queria! A rapariga era uma porca, não havia tel-a arranjado. O pai, esse, um desleixado tambem...

—É aqui, senhor conego, disse, abrindo a porta da alcova—que agora, em obediencia ás ordens do senhor parocho, o tio Esguelhas deixava sempre fechada.

Encontraram a Tótó meio erguida sobre a cama, com a face accêsa n'uma curiosidade, áquella voz do conego que não conhecia. [466]

—Ora viva lá a snr.a Tótó! disse elle da porta, sem se aproximar.

—Vá, comprimenta o senhor conego, disse Amelia, começando logo, com uma caridade desacostumada, a compôr a roupa da cama, a arrumar a alcova. Dize-lhe como estás... Não te faças amuada!

Mas a Tótó permaneceu tão muda como a imagem de S. Bento que tinha á cabeceira, examinando muito aquelle sacerdote tão gordo, tão grisalho, tão differente do senhor parocho... E os seus olhos, mais brilhantes todos os dias á medida que se lhe cavavam as faces, iam, como de costume, do homem para Amelia, n'uma anciedade de perceber porque o trazia ella alli, aquelle velho obeso, e se ia tambem subir com elle para o quarto.

Amelia agora tremia. Se o senhor parocho entrasse, e alli, diante do cónego, a Tótó, tomada do seu phrenesi, rompesse aos gritos, tratando-os de cães!... Com o pretexto de dar uma arrumadella foi à cozinha vigiar o pateo. Faria um signal da janella, apenas Amaro apparecesse.

E o conego, só na alcova da Tótó, preparando-se para começar as suas observações, ia perguntar-lhe quantas eram as pessoas da Santissima Trindade,—quando ella, adiantando a face, lhe disse n'uma voz subtil como um sôpro:

—E o outro?

O conego não comprehendeu. Que fallasse alto! Que era? [467]

—O outro, o que vem com ella!

O conego chegou-se, com a orelha dilatada de curiosidade:

—Que outro?

—O bonito. O que vai com ella p'ró quarto. O que a belisca...

Mas Amelia entrava: e a paralytica calou-se logo, repousada, com os olhos cerrados e respirando regaladamente, como n'um allivio repentino de todo o seu soffrimento. O conego, esse, immobilisado d'assombro, permanecia na mesma postura, dobrado sobre a cama como para ascultar a Tótó. Ergueu-se por fim, soprou como n'uma calma d'agosto, sorveu d'espaço uma pitada forte; e ficou com a caixa aberta entre os dedos, os olhos muito vermelhos cravados na colcha da Tótó.

—Então, senhor conego, que lhe parece cá a minha doente? perguntou Amelia.

Elle respondeu, sem a olhar:

—Sim senhor, muito bem... Vai bem... É exquisita... Pois é andar, é andar... Adeus...

Sahiu, resmungando que tinha negocios,—e voltou immediatamente á botica.

—Um copo d'agua! exclamou, cahindo em cheio sobre a cadeira.

O Carlos, que voltára, apressou-se, offerecendo flôr de laranja, perguntando se sua excellencia estava incommodado...

—Cansadote, disse.

Tomou o Popular de sobre a mesa, e alli ficou, [468] sem se mexer, abysmado nas columnas do periodico. O Carlos tentou fallar da politica do paiz, depois dos negocios d'Hespanha, depois dos perigos revolucionarios que ameaçavam a Sociedade, depois da deficiencia da administração do concelho de que era agora um adversario feroz... Debalde. Sua excellencia grunhia apenas monosyllabos soturnos. E o Carlos, emfim, recolheu-se a um silencio chocado, comparando, n'um desdem interior que lhe vincava de sarcasmo os cantos dos beiços, a obtusidade soturna d'aquelle sacerdote à palavra inspirada d'um Lacordaire e d'um Malhão! Por isso o Materialismo em Leiria, em todo o Portugal erguia a sua cabeça d'hydra...

Batia uma hora na torre quando o conego, que vigiava a Praça pelo canto do olho, vendo passar Amelia, arremessou o jornal, sahiu da botica sem dizer uma palavra e estugou o seu passo d'obeso para casa do tio Esguelhas. A Tótó estremeceu de medo ao vêr de novo aquella figura bojuda apparecer á porta da alcova. Mas o conego riu-se para ella, chamou-lhe Tótósinha, prometteu-lhe um pinto para bolos; e mesmo sentou-se aos pés da cama com um ah! regalado, dizendo:

—Ora vamos nós agora conversar, amiguinha... Esta é que é a pernita doente, hein? Coitadita! Deixa que te has de curar... Hei de pedir a Deus... Fica por minha conta.

Ella fazia-se ora toda branca ora toda vermelha, olhando aqui e além, inquieta, na perturbação que [469] lhe dava aquelle homem a sós com ella tão perto que lhe sentia o halito forte.

—Então, ouve cá, disse elle chegando-se mais para ella, fazendo ranger o catre com o seu peso. Ouve cá, quem é o outro? Quem é que vem com a Amelia?

Ella respondeu logo, atirando as palavras d'um fôlego:

—É o bonito, é o magro, vêm ambos, sobem p'r'ó quarto, fecham-se por dentro, são como cães!

Os olhos do conego injectaram-se para fóra das orbitas:

—Mas quem é elle, como se chama? O teu pai que te disse?

—É o outro, é o parocho, o Amaro! fez ella impaciente.

—E vão p'r'ó quarto, hein? lá p'ra cima? E tu que ouves, tu que ouves? Dize tudo, pequena, dize tudo!

A paralytica então contou, com um furor que dava tons sibilantes à sua voz de tisica,—como ambos entravam, e a vinham vêr, e se roçavam um pelo outro, e abalavam para o quarto em cima, e estavam lá uma hora fechados...

Mas o conego, com uma curiosidade lubrica que lhe punha uma chamma nos olhos mortiços, queria saber os detalhes torpes:

—E ouve lá, Tótósinha, tu que ouves? Ouves ranger a cama? [470]

Ella respondeu com a cabeça affirmativamente, toda pallida, os dentes cerrados.

—E olha, Tótósinha, já os viste beijarem-se, abraçarem-se? Anda, dize, que te dou dois pintos.

Ella não descerrava os labios; e a sua face transtornada parecia ao conego selvagem.

—Tu embirras com ella, não é verdade?

Ella fez que sim n'uma affirmação feroz de cabeça.

—E vistel-os beliscarem-se?

—São como cães! soltou ella por entre os dentes.

O conego então endireitou-se, bufou outra vez com o seu grande sôpro d'encalmado, e coçou vivamente a corôa.

—Bem, disse, erguendo-se. Adeus, pequena... Agasalha-te. Não te constipes...

Sahiu; e ao fechar com força a porta exclamou alto:

—Isto é a infamia das infamias! Eu mato-o! eu perco-me!

Esteve um momento considerando e partiu para a rua das Sousas, de guardasol em riste, apressando a sua obesidade, com a face apopletica de furor. No largo da Sé, porém, parou a reflectir ainda; e rodando sobre os tacões, entrou na igreja. Ia tão levado que, esquecendo um habito de quarenta annos, não dobrou o joelho ao Santissimo. E arremessou-se para a sacristia—justamente quando o padre Amaro sahia, calçando cuidadosamente as luvas pretas [471] que usava agora sempre para agradar á Ameliasinha.

O aspecto descomposto do conego assombrou-o.

—Que é isso, padre-mestre?

—O que é? exclamou o conego de golpe, é a maroteira das maroteiras! É a sua infamia! é a sua infamia!...

E emmudeceu, suffocado de cólera.

Amaro, que se fizera muito pallido, balbuciou:

—Que está vossê a dizer, padre-mestre?

O conego tomára fôlego:

—Não ha padre-mestre! O senhor desencaminhou a rapariga! Isso é que é uma canalhice mestra!

O padre Amaro, então, franziu a testa como descontente d'um gracejo:

—Que rapariga!? O senhor está a brincar...

Sorriu mesmo, affectando segurança; e os seus beiços brancos tremiam.

—Homem, eu vi! berrou o conego.

O parocho, subitamente aterrado, recuou:

—Viu!?

Imaginára n'um relance uma traição, o conego escondido n'um recanto da casa do tio Esguelhas...

—Não vi, mas é como se visse!—continuou o conego n'um tom tremendo. Sei tudo. Venho de lá. Disse-m'o a Tótó. Fecham-se no quarto horas e horas! Até se ouve em baixo ranger a cama! É uma ignominia !

O parocho, vendo-se pilhado, teve, como um animal acossado e entalado a um canto, uma resistencia de desespero. [472]

—Diga-me uma coisa. O que é que o senhor tem com isso?

O conego pulou.

—O que tenho!? o que tenho!? Pois o senhor ainda me falla n'esse tom!? O que tenho é que vou d'aqui immediatamente dar parte de tudo ao senhor vigario geral!

O padre Amaro, livido, foi para elle com o punho fechado:

—Ah, seu maroto!

—Que é lá? que é lá? exclamou o conego de guardasol erguido. Vossê quer-me pôr as mãos?

O padre Amaro conteve-se; passou a mão sobre a testa em suor, com os olhos cerrados; e depois de um momento, fallando com uma serenidade forçada:

—Ouça lá, senhor conego Dias. Olhe que eu vi-o ao senhor uma vez na cama com a S. Joanneira...

—Mente! mugiu o conego.

—Vi, vi, vi! affirmou o outro com furor. Uma noite ao entrar em casa... O senhor estava em mangas de camisa, ella tinha-se erguido, estava a apertar o collete. Até o senhor me perguntou «quem está ahi?» Vi, como estou a vêl-o agora. O senhor a dizer uma palavra, e eu a provar-lhe que o senhor vive ha dez annos amigado com a S. Joanneira, á face de todo o clero! Ora ahi tem!

O conego, já antes esfalfado dos excessos do seu furor, ficou agora, áquellas palavras, como um boi atordoado. Só pôde dizer d'ahi a pouco, muito murcho: [473]

—Que traste que vossê me sae!

O padre Amaro então, quasi tranquillo, certo do silencio do conego, disse com bonhomia:

—Traste porquê? Diga-me lá! Traste porquê? Temos ambos culpas no cartorio, eis ahi está. E olhe que eu não fui perguntar, nem peitar a Tótó... Foi muito naturalmente ao entrar em casa. E se me vem agora com coisas de moral, isso faz-me rir. A moral é para a escóla e para o sermão. Cá na vida eu faço isto, o senhor faz aquillo, os outros fazem o que podem. O padre-mestre que já tem idade agarra-se á velha, eu que sou novo arranjo-me com a pequena. É triste, mas que quer? É a natureza que manda. Somos homens. E como sacerdotes, para honra da classe, o que temos é fazer costas!

O conego escutava-o, bamboleando a cabeça, na aceitação muda d'aquellas verdades. Tinha-se deixado cahir n'uma cadeira, a descansar de tanta cólera inutil; e erguendo os olhos para Amaro:

—Mas vossê, homem, no começo da carreira!

—E vossê, padre-mestre, no fim da carreira!

Então riram ambos. Immediatamente cada um declarou retirar as palavras offensivas que tinha dito; e apertaram-se gravemente a mão. Depois conversaram.

O conego, o que o tinha enfurecido era ser lá com a pequena de casa. Se fosse com outra... até estimava! Mas a Ameliasinha!... Se a pobre mãi viesse a saber estourava de desgosto.

—Mas a mãi escusa de saber! exclamou Amaro. [474] Isto é entre nós, padre-mestre! Isto é segredo de morte! Nem a mãi sabe de nada, nem eu mesmo digo á pequena o que se passou hoje entre nós. As coisas ficam como estavam, e o mundo continua a rolar... Mas vossê, padre-mestre, tenha cuidado!... Nem uma palavra á S. Joanneira... Que não haja agora traição!

O conego, com a mão sobre o peito, deu gravemente a sua palavra d'honra de cavalheiro e de sacerdote que aquelle segredo ficava para sempre sepultado no seu coração.

Então apertaram ainda uma outra vez affectuosamente a mão.

Mas a torre gemeu as tres badaladas. Era a hora de jantar do conego.

E ao sahir, batendo nas costas de Amaro, fazendo luzir um olho d'entendedor:

—Pois seu velhaco, tem dedo!

—Que quer vossê? Que diabo... Começa-se por brincadeira...

—Homem! disse o conego sentenciosamente, é o que a gente leva de melhor d'este mundo.

—É verdade, padre-mestre, é verdade! É o que a gente leva de melhor d'este mundo.


Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranquillidade d'alma. Até ahi incommodava-o, por vezes, a idéa de que correspondera ingratamente á confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalisado [475] na rua da Misericordia. Mas a tacita approvação do conego viera tirar-lhe, como elle dizia, aquelle espinho da consciencia. Porque emfim, o chefe de familia, o cavalheiro respeitavel, o cabeça—era o conego. A S. Joanneira era apenas uma concubina... E Amaro mesmo, às vezes agora, em tom de galhofa, tratava o Dias de seu caro sogro.

Outra circumstancia viera alegral-o: a Tótó adoecera de repente: o dia seguinte ao da visita do conego, passára-o soltando golfadas de sangue: o doutor Cardoso, chamado á pressa, fallára de tisica galopante, questão de semanas, caso decidido...

—É d'estas, meu amigo, tinha elle dito, que é trás... trás...—Era a sua maneira de pintar a morte, que, quando tem pressa, conclue o seu trabalho com uma fouçada aqui, outra além.

As manhãs na casa do tio Esguelhas eram agora tranquillas. Amelia e o parocho já não entravam em pontas de pés, tentando esgueirar-se para o prazer, despercebidos da Tótó. Batiam com as portas, palravam forte, certos que a Tótó estava bem prostrada de febre, sob os lençoes humidos dos suores constantes. Mas Amelia, por escrupulo, não deixava de rezar todas as noites uma salve-rainha pelas melhoras da Tótó. Ás vezes mesmo ao despir-se, no quarto do sineiro, parava de repente, e fazendo um rostinho triste:

—Ai, filho! até me parece peccado, nós aqui a gozarmos, e a pobre pequena lá em baixo a luctar com a morte... [476]

Amaro encolhia os hombros. Que lhe haviam elles de fazer, se era a vontade de Deus?...

E Amelia, resignando-se á vontade de Deus em tudo, ia deixando cahir as sáias.

Tinha agora d'aquellas pieguices frequentes que impacientavam o padre Amaro. Em certos dias apparecia muito murcha; trazia sempre algum sonho lugubre a contar, que a torturára toda a noite, e em que ella pretendia descobrir avisos de desgraças...

Perguntava-lhe ás vezes:

—Se eu morresse, tinhas muita pena?

Amaro enfurecia-se. Realmente era estupido! Tinham apenas uma hora para se verem, e haviam d'estar a estragal-a com lamurias?

—É que não imaginas, dizia ella, trago o coração negro como a noite.

Com effeito as amigas da mãi estranhavam-na. Ás vezes durante serões inteiros não descerrava os labios, pendida sobre a sua costura, picando mollemente a agulha; ou então, muito cansada mesmo para trabalhar, ficava junto da mesa fazendo girar devagar o abat-jour verde do candieiro, com o olhar vazio e a alma muito longe.

—Ó rapariga, deixa esse abat-jour em paz! diziam-lhe as senhoras nervosas.

Ella sorria, dava um suspiro fatigado, e retomava muito lentamente a sáia branca que havia semanas andava abainhando. A mãi, vendo-a sempre tão pallida, pensára em chamar o doutor Gouveia.

—Não é nada, minha mãi, é nervoso, passa... [477]

O que provava a todos que era nervoso eram os sustos subitos que a tomavam—a ponto de dar um grilo, quasi desmaiar, se de repente uma porta batia. Certas noites mesmo, exigia que a mãi viesse dormir ao pé d'ella, com medo de pesadêlos e de visões.

—É o que diz sempre o senhor doutor Gouveia, observava a mãi ao conego, é uma rapariga que necessita casar...

O conego pigarreava grosso.

—Não lhe falta nada, resmungava. Tem tudo o que precisa. Tem de mais, ao que parece...

Era com effeito a idéa do conego, que a rapariga (como elle dizia só comsigo) «andava-se a arrasar de felicidade». Nos dias em que sabia que ella fôra vêr a Tótó, não se fartava de a estudar, cocando-a do fundo da poltrona com um olho pesado e lubrico. Prodigalisava-lhe agora as familiaridades paternaes. Nunca a encontrava na escada sem a deter, com coceguinhas aqui e alli, palmadinhas na face muito prolongadas. Queria-a em casa repetidas vezes pela manhã; e emquanto Amelia palrava com D. Josepha, o conego não cessava de rondar em torno d'ella, arrastando as chinelas com um ar de velho gallo. E eram entre Amelia e a mãi conversas sem fim sobre esta amizade do senhor conego, que decerto lhe deixaria um bom dote.

—Seu maganão, tem dedo!—dizia sempre o conego quando estava só com Amaro, arregalando os olhos redondos. Aquillo é um bocado de rei! [478]

Amaro entufava-se:

—Não é mau bocado, padre-mestre, é um bom bocado.

Era este um dos grandes gozos d'Amaro—ouvir gabar aos collegas a belleza d'Amelia, que era chamada entre o clero «a flôr das devotas». Todos lhe invejavam aquella confessada. Por isso insistia muito com ella em que se ajanotasse nos domingos, á missa; zangára-se mesmo ultimamente de a vêr quasi sempre entrouxada n'um vestido de merino escuro, que lhe dava um ar de velha penitente.

Mas Amelia, agora, já não tinha aquella necessidade amorosa de contentar em tudo o senhor parocho. Acordára quasi inteiramente d'aquelle adormecimento estupido d'alma e do corpo, em que a lançára o primeiro abraço de Amaro. Vinha-lhe apparecendo distinctamente a consciencia pungente da sua culpa. N'aquelles negrumes d'um espirito beato e escravo, fazia-se um amanhecimento de razão.—O que era ella no fim? A concubina do senhor parocho. E esta idéa, posta assim descarnadamente, parecia-lhe terrivel. Não que lamentasse a sua virgindade, a sua honra, o seu bom nome perdido. Sacrificaria mais ainda por elle, pelos delirios que elle lhe dava. Mas havia alguma coisa peor a temer que as reprovações do mundo: eram as vinganças de Nosso Senhor. Era da perda possivel do paraiso que ella gemia baixo; ou de mais medonho ainda, d'algum castigo de Deus, não das punições transcendentes que acabrunham a alma além da tumba, mas dos tormentos que vêm durante [479] a vida, que a feririam na sua saude, no seu bem-estar e no seu corpo. Eram vagos medos de doenças, de lepras, de paralysias ou de pobrezas, de dias de fome—de todas essas penalidades de que ella suppunha prodigo o Deus do seu catecismo. Como em pequena, nos dias em que se esquecia de pagar á Virgem o seu tributo regular de salve-rainhas, temia que ella a fizesse cahir na escada ou levar palmatoadas na mestra, arrefecia de medo agora, á idéa de que Deus, em castigo d'ella se deitar na cama com um padre, lhe mandasse um mal que a desfigurasse ou a reduzisse a pedir esmola pelas viellas. Estas idéas não a deixavam, desde o dia em que na sacristia peccára de concupiscencia dentro do manto de Nossa Senhora. Tinha a certeza que a Santa Virgem a odiava, e que não cessava de reclamar contra ella; debalde procurava abrandal-a, com um fluxo incessante de orações humilhadas; sentia bem Nossa Senhora, inaccessivel e desdenhosa, de costas voltadas. Nunca mais aquelle divino rosto lhe sorrira; nunca mais aquellas mãos se tinham aberto para receber com agrado as suas orações, como ramos congratulatorios. Era um silencio sêcco, uma hostilidade gelada de divindade offendida. Ella conhecia o credito que Nossa Senhora tem nos concilios do céo; desde pequena lh'o tinham ensinado; tudo o que ella deseja o obtem, como uma recompensa devida aos seus prantos no Calvario; seu Filho sorri-lhe á sua direita, o Deus-Padre falla-lhe á esquerda... E comprehendia bem que para ella não havia esperança—e [480] que alguma coisa medonha se preparava lá era cima, no paraiso, que lhe cahiria um dia sobre o corpo e sobre a alma, esmagando-a com um desabamento de catastrophe. Que seria?

Cessaria as suas relações com Amaro, se o ousasse: mas receava quasi tanto a sua cólera como a de Deus. Que seria d'ella, se tivesse contra si Nossa Senhora e o senhor parocho? Além d'isso, amava-o. Nos seus braços, todo o terror do céo, a mesma idéa do céo desapparecia; refugiada alli, contra o seu peito, não tinha medo das iras divinas: o desejo, o furor da carne, como um vinho muito alcoolico, davam-lhe uma coragem colerica; era com um brutal desafio ao céo que se enroscava furiosamente ao seu corpo.—Os terrores vinham depois, só no seu quarto. Era esta lucta que a empallidecia, lhe punha pregas d'envelhecimento ao canto dos labios seccos e ardidos, lhe dava aquelle ar murcho de fadiga que irritava o padre Amaro.

—Mas que tens tu, que parece te espremeram o succo? perguntava-lhe elle quando aos primeiros beijos a sentia toda fria, toda inerte.

—Passei mal a noite... Nervoso.

—Maldito nervoso! rosnava o padre Amaro impaciente.

Depois vinham perguntas singulares que o desesperavam, repetidas agora todos os dias. Se tinha dito a missa com fervor? Se tinha lido o Breviario? Se tinha feito a oração mental?...

—Sabes tu que mais? disse elle furioso. Sêbo! [481] E esta! Tu pensas que eu sou ainda seminarista, e que tu és o padre examinador, que verifica se cumpri a Regra? Ora a tolice!

—É que é necessario estar bem com Deus, murmurava ella.

Era com effeito a sua preoccupação, agora, que Amaro fosse um bom padre. Contava, para se salvar e para se livrar da cólera de Nossa Senhora, com a influencia do parocho na côrte de Deus: e temia que elle por negligencia de devoção a perdesse, e que, diminuindo o seu fervor, diminuissem os seus meritos aos olhos do Senhor. Queria-o conservar santo e favorito do céo, para colher os proveitos da sua protecção mystica.

Amaro chamava a isto «caturrices de freira velha». Detestava-as, por as achar frivolas—e porque tomavam um tempo precioso, n'aquellas manhãs da casa do sineiro...

—Nós não viemos aqui para lamurias, dizia elle, muito sêccamente. Fecha a porta, se queres.

Ella obedecia,—e então aos primeiros beijos na penumbra da janella cerrada, elle reconhecia emfim a sua Amelia, a Amelia dos primeiros dias, o delicioso corpo que lhe tremia todo nos braços, em espasmos de paixão.

E cada dia a desejava mais, d'um desejo continuo e tyrannico, que aquellas horas escassas não satisfaziam. Ah! positivamente, como mulher não havia outra!... Desafiava a que houvesse outra, mesmo em Lisboa, mesmo nas fidalgas!... Tinha pieguices, [482] sim, mas era não as tomar a sério, e gozar emquanto era novo!

E gozava. A sua vida por todos os lados tinha confortos e doçuras—como uma d'estas salas onde tudo é acolchoado, não ha moveis duros nem angulos, e o corpo, onde quer que pouse, encontra a elasticidade molle d'uma almofada.

Decerto, o melhor eram as suas manhãs em casa do tio Esguelhas. Mas tinha outros regalos. Comia bem: fumava caro n'uma boquilha d'espuma: toda a sua roupa branca era nova e de linho: comprára alguma mobilia: e não tinha, como outr'ora, embaraços de dinheiro, porque a snr.a D. Maria da Assumpção, a sua melhor confessada, lá estava com a bolsa prompta. Sobretudo, ultimamente, tivera uma pechincha: uma noite em casa da S. Joanneira, a excellente senhora, a proposito d'uma familia d'inglezes que vira passar n'um char-á-banc para ir visitar a Batalha, exprimira a opinião que os inglezes eram herejes.

—São baptisados como nós, observára D. Joaquina Gansoso.

—Pois sim, filha, mas é um baptismo para rir. Não é o nosso rico baptismo, não lhes vale.

O conego então, que gostava de a torturar, declarou pausadamente que a snr.a D. Maria dissera uma blasphemia. O santo concilio de Trento, no seu canon IV, sessão VII, lá determinára «que aquelle que disser que o baptismo dado aos herejes, em nome do Padre, do Filho e do Espirito, não é o [483] verdadeiro baptismo, seja excommungado!» E a D. Maria, segundo o santo concilio, estava desde esse momento excommungada!...

A excellente senhora teve um flato. Ao outro dia foi lançar-se aos pés d'Amaro, que em penitencia da sua injuria feita ao canon IV, sessão VII do santo concilio de Trento, lhe ordenou trezentas missas de intenção pelas almas do purgatorio—que D. Maria lhe estava pagando a cinco tostões cada uma.

Assim, elle podia ás vezes entrar na casa do tio Esguelhas com um ar de satisfação mysteriosa e um embrulhosinho na mão. Era algum presente para Amelia, um lenço de sêda, uma gravatinha de côres, um par de luvas. Ella extasiava-se com aquellas provas da affeição do senhor parocho; e era então no quarto escuro um delirio d'amor, emquanto em baixo a tisica, sobre a Tótó, ia fazendo «trás... trás...»



XX



—O senhor conego? Quero-lhe fallar. Depressa!

A criada dos Dias indicou ao padre Amaro o escriptorio, e correu acima contar a D. Josepha que o senhor parocho viera procurar o senhor conego, e com uma cara tão transtornada que decerto tinha succedido alguma desgraça!

Amaro abrira abruptamente a porta do escriptorio, fechou-a de repellão, e sem mesmo dar os bons dias ao collega, exclamou:

—A rapariga está gravida!

O conego, que estava escrevendo, cahiu como uma massa fulminada para as costas da cadeira:

—Que me diz vossê!?

—Gravida! [486]

E no silencio que se fez o soalho gemia sob os passeios furiosos do parocho da janella para a estante.

—Está vossê certo d'isso? perguntou emfim o conego com pavor.

—Certissimo! A mulher já ha dias andava desconfiada. Já não fazia senão chorar... Mas agora é certo... As mulheres conhecem, não se enganam. Ha todas as provas... Que hei de eu fazer, padre-mestre?

—Olha que espiga! ponderou o conego atordoado.

—Imagine vossê o escandalo! A mãi, a visinhança... E se suspeitam de mim?... Estou perdido... Eu não quero saber, eu fujo!

O conego coçava estupidamente o cachaço, com o beiço cahido como uma tromba. Representavam-se-lhe já os gritos em casa, a noite do parto, a S. Joanneira eternamente em lagrimas, toda a sua tranquillidade extincta para sempre...

—Mas diga alguma coisa! gritou-lhe Amaro desesperado. Que pensa vossê? Veja se tem alguma idéa... Eu não sei, eu estou idiota, estou de todo!

—Ahi estão as consequencias, meu caro collega.

—Vá p'r'ó inferno, homem! Não se trata de moral... Está claro que foi uma asneira... Adeus, está feita!

—Mas então que quer vossê? disse o conego. Não quer decerto que se dê uma droga á rapariga, que a arrase... [487]

Amaro encolheu os hombros, impaciente com aquella idéa insensata. O padre-mestre, positivamente, estava divagando...

—Mas então que quer vossê? repetia o conego n'um tom cavo, arrancando as palavras do abysmo do thorax.

—Que quero!? quero que não haja escandalo! Que hei de eu querer?

—De quantos mezes está ella?

—De quantos mezes? Está d'agora, está d'um mez...

—Então é casal-a! exclamou o conego com explosão. Então é casal-a com o escrevente!

O padre Amaro deu um pulo:

—C'os diabos, tem vossê razão! É de mestre!

O conego affirmou gravemente com a cabeça que era «de mestre».

—Casal-a já! Emquanto é tempo! Pater est quem nuptiæ demonstrant... Quem é marido é que é pai.

Mas a porta abriu-se, e appareceram os oculos azues, a touca negra de D. Josepha. Não se pudera conter em cima, na cozinha, tomada d'um phrenesi agudo de curiosidade; descera na ponta das chinelas e collára o ouvido á fechadura do escriptorio; mas o grosso reposteiro de baetão estava cerrado por dentro, um ruido de lenha que se descarregava na rua abafava as vozes. A boa senhora então decidiu-se a entrar, «a dar os bons dias ao senhor parocho».

Mas debalde, por detraz dos vidros defumados, [488] os seus olhinhos agudos esquadrinharam anciosamente o carão espesso do mano e a face pallida d'Amaro. Os dois sacerdotes estavam impenetraveis como duas janellas fechadas. O parocho mesmo fallou ligeiramente do rheumatico do senhor chantre, da notícia que corria sobre o casamento do senhor secretario geral... Ao fim d'uma pausa ergueu-se, contou que tinha n'esse dia uma famosa orelheira para o jantar—e a snr.a D. Josepha, roendo-se, viu-o abalar depois de ter dito já por detraz do reposteiro ao conego:

—Então até á noite em casa da S. Joanneira, padre-mestre, hein?

—Até á noite.

E o conego, muito grave, continuou a escrever. D. Josepha então não se conteve; e depois de arrastar um momento as chinelas em torno da banca do mano:

—Ha novidade?

—Grande novidade, mana! disse-lhe o conego, sacudindo os bicos da penna. Morreu o senhor D. João VI!

—Malcriado! rugiu ella rodando sobre os sapatões, cruelmente perseguida por uma risadinha do mano.

Foi á noite, em baixo, na saleta da S. Joanneira, emquanto Amelia em cima, com a morte n'alma, martellava a Valsa dos dois mundos, que os dois padres, muito chegados no canapé, de cigarro nos dentes, por debaixo do tenebroso painel onde [489] a vaga mão do cenobita se estendia em garra sobre a caveira, cochicharam o seu plano:—antes de tudo era necessario achar João Eduardo, que desapparecera de Leiria; a Dionysia, mulher de faro, ia bater todos os recantos da cidade para descobrir a toca em que a fera se acoutava; depois, immediatamente, porque o tempo urgia, Amelia escrever-lhe-hia... Só quatro palavras simples: que soubera que elle fôra victima d'uma intriga; que nunca perdera nada da amizade que lhe tinha; que lhe devia uma reparação; e que viesse vêl-a... Se o rapaz hesitasse agora, o que não era provavel (o conego affirmava-o), fazia-se-lhe reluzir a esperança do emprego no governo civil, facil d'obter pelo Godinho, inteiramente governado pela mulher, que era uma escravasinha do padre Silverio...

—Mas o Natario, disse Amaro, o Natario que detesta o escrevente, que dirá elle a esta revolução?

—Homem, exclamou o conego com uma grande palmada na côxa, que me tinha esquecido! Pois vossê não sabe o que aconteceu ao pobre Natario?...

Amaro não sabia.

—Quebrou uma perna! Cahiu da egoa!

—Quando?

—Esta manhã. Eu soube-o agora à noitinha. Eu sempre lh'o disse: homem, esse animal ferra-lhe alguma! Pois senhores, ferrou-lh'a. E têsa! Tem p'ra pêras... E eu que me tinha esquecido! Nem as senhoras lá em cima sabem nada.

Foi uma desolação, em cima, quando souberam. [490] Amelia fechou o piano. Todos lembraram logo remedios que se lhe devia mandar, foi uma gralhada de offerecimentos—ligaduras, fios, um unguento das freiras d'Alcobaça, meia garrafinha d'um licôr dos monges do deserto d'ao pé de Cordova... Era necessario tambem assegurar a intervenção do céo: e cada uma se promptificou a usar do seu valimento com os santos da sua intimidade: D. Maria da Assumpção, que ultimamente praticava com Santo Eleuterio, offereceu a sua influencia; D. Josepha Dias encarregava-se d'interessar Nossa Senhora da Visitação; D. Joaquina Gansoso afiançou S. Joaquim...

—E lá a menina? perguntou o conego a Amelia.

—Eu?...

E fez-se pallida, n'uma tristeza de toda a sua alma, pensando que ella, com os seus peccados e os seus delírios, perdera a util amizade de Nossa Senhora das Dôres.—E não poder ella tambem concorrer com a sua influencia no céo para restabelecer a perna de Natario, foi uma das amarguras maiores, talvez a punição mais viva que sentira desde que amava o padre Amaro.


Foi em casa do sineiro, d'ahi a dias, que Amaro participou a Amelia o plano do padre-mestre. Preparou-a, revelando-lhe primeiro que o conego sabia tudo...

—Sabe tudo em segredo de confissão, acrescentou [491] para a socegar. Além d'isso elle e tua mãi têm culpas em cartorio... Tudo fica em familia...

Depois tomou-lhe a mão, e olhando-a com ternura, como compadecendo-se já das lagrimas afflictas que ella ia chorar:

—E agora escuta, filha. Não te afflijas com o que te vou dizer, mas é necessario, é a nossa salvação...

Ás primeiras palavras, porém, do casamento com o escrevente, Amelia indignou-se com espalhafato.

—Nunca, antes morrer!

O quê? Elle punha-a n'aquelle estado e agora queria descartar-se d'ella e passal-a a outro? Era ella porventura um trapo que se usa e que se atira a um pobre? Depois de ter posto fóra de casa o homem, havia de humilhar-se, chamal-o e cahir-lhe nos braços?... Ah, não! Tambem ella tinha o seu brio! Os escravos trocavam-se, vendiam-se, mas era no Brazil!

Enterneceu-se então. Ah, elle já não a amava, estava farto d'ella! Ah, que desgraçada, que desgraçada que era!—Atirou-se de bruços para a cama e rompeu n'um chôro estridente.

—Cala-te, mulher, que te podem ouvir na rua! dizia Amaro desesperado, sacudindo-a pelo braço.

—Não me importa! Que ouçam! P'r'á rua vou eu gritar que estou n'este estado, que foi o senhor padre Amaro, e que me quer agora deixar!...

Amaro fazia-se livido de raiva, com um desejo furioso de lhe bater. Mas conteve-se; e com uma voz que tremia sob a sua serenidade: [492]

—Tu estás fóra de ti, filha... Dize lá, posso eu casar comtigo? Não! Bem, então que queres? Se se percebe que estás assim, se tens o filho em casa, vê o escandalo!... Por ti, estás perdida, perdida p'ra sempre! E eu, se se souber, que me succede? Perdido tambem, suspenso, mettido em processo talvez... De que queres tu que eu viva? Queres que morra de fome?

Enterneceu-se tambem áquella idéa das privações e das miserias do padre interdicto.—Ah, era ella, era ella que o não amava, e que depois d'elle ter sido tão carinhoso e tão delicado, lhe queria pagar com o escandalo e com a desgraça...

—Não, não! exclamou Amelia em soluços, lançando-se-lhe ao pescoço.

E ficaram abraçados, tremendo no mesmo enternecimento,—ella molhando de pranto o hombro do parocho, elle mordendo o beiço com os olhos todos turvos d'agua.

Desprendeu-se brandamente, emfim, e limpando as lagrimas:

—Não, filha, é uma desgraça que nos succede, mas tem de ser. Se tu soffres, imagina eu! Vêr-te casada, a viver com outro... Nem fallemos n'isso... Mas então, é a fatalidade, é Deus que a manda!

Ella ficára aniquilada, á beira do leito, tomada ainda de grandes soluços. Tinha chegado emfim o castigo, a vingança de Nossa Senhora, que ella sentia preparar-se ha tempos no fundo dos céos, como uma tormenta complicada. Ahi estava, agora, peor [493] que os fogos do Purgatorio! Tinha de se separar de Amaro que imaginava amar mais, e ir viver com o outro, com o excommungado! Como poderia ella nunca reentrar na graça de Deus, depois de ter dormido e vivido com um homem que os canones, o Papa, toda a terra, todo céo consideravam maldito?... E devia ser esse seu marido, talvez o pai d'outros filhos... Ah, Nossa Senhora vingava-se de mais!

—E como posso eu casar com elle, Amaro, se o homem está excommungado?!

Amaro então apressou-se a tranquillisal-a, prodigalisando os argumentos. Era necessario não exagerar... O rapaz, verdadeiramente, excommungado não estava... Natario e o conego tinham interpretado mal os canones e as bullas... Bater n'um sacerdote que não estava revestido não era motivo d'excommunhão ipso facto, segundo certos auctores... Elle, Amaro, era d'essa opinião... De mais a mais podiam levantar-lhe a excommunhão.

—Tu comprehendes... Como disse o santo concilio de Trento, e como sabes, nós atamos e desatamos. O moço foi excommungado?... Bem, levantamos-lhe a excommunhão... Fica tão limpo como d'antes. Não, isso não te dê cuidado.

—Mas de que havemos de viver, se elle perdeu o emprego?

—Tu não me deixaste dizer... Arranja-se-lhe o emprego. Arranja-lh'o o padre-mestre. Está tudo combinadinho, filha!

Ella não respondeu, muito quebrada e muito triste, [494] com duas lagrimas persistentes ao comprido das faces.

—Dize cá, tua mãi não desconfia de nada?

—Não, por ora não se percebe, respondeu ella com um grande ai.

Ficaram calados: ella limpando as lagrimas, serenando para sahir; elle de cabeça baixa, trilhando lugubremente o soalho do quarto, pensando nas boas manhãs d'outr'ora, quando só havia alli beijos e risadinhas abafadas; tudo mudára agora, até o tempo que estava todo nublado, um dia de fim de verão, ameaçando chuva.

—Percebe-se que estive a chorar? perguntou ella, compondo ao espelho o cabello.

—Não. Vaes-te?

—A mamã está á minha espera...

Deram um beijo triste, e ella sahiu.


No emtanto a Dionysia farejava pela cidade na pista de João Eduardo. A sua actividade desenvolvera-se, sobretudo, mal soubera que o conego Dias, o ricaço, estava interessado na «pesquiza». E todos os dias, á noitinha, esgueirava-se cautelosamente pelo portão d'Amaro a dar-lhe as novidades: já sabia que o escrevente estivera ao principio em Alcobaça com um primo boticario; depois fôra para Lisboa; ahi, com uma carta de recommendação do doutor Gouvêa, empregára-se no cartorio d'um procurador; mas [495] o procurador, passados dias, por uma fatalidade, morrera de apoplexia; e desde então o rasto de João Eduardo perdia-se no vago, no cahos da capital. Havia, sim, uma pessoa que lhe devia saber a morada e os passos: era o typographo, o Gustavo. Mas infelizmente o Gustavo, depois d'uma questão com o Agostinho, deixára o Districto e desapparecera. Ninguem sabia para onde fôra; por desgraça, a mãi do typographo não a podia informar—porque morrera tambem.

—Oh, senhores! dizia o conego quando o padre Amaro lhe ia levar estes fios d'informação. Oh, senhores! mas então n'essa historia toda a gente morre! Isso é uma hecatombe!

—Vossê graceja, padre-mestre, mas é sério. Olhe que um homem em Lisboa é agulha em palheiro. É uma fatalidade!

Então, afflicto já, vendo passar os dias, escreveu á tia, pedindo-lhe que esquadrinhasse por toda a Lisboa, a vêr se por lá apparecera «um tal João Eduardo Barbosa...» Recebeu uma carta da tia em garatujas de tres paginas, queixando-se do Joãosinho, do seu Joãosinho, que lhe fizera a vida um inferno, embebedando-se com genebra a ponto que não lhe paravam hospedes em casa. Mas estava agora mais tranquilla: o pobre Joãosinho havia dias jurára-lhe pela alma da mamã que d'ahi por diante não beberia senão gazosa. Emquanto ao tal João Eduardo perguntára na visinhança e ao snr. Palma do ministerio das obras publicas, que conhecia toda a gente, [496] mas nada averiguára. Havia, sim, um Joaquim Eduardo que tinha uma loja de quinquilherias no bairro... E se fosse o negocio com elle bem ia, que era um homem de bem...

—Lérias! lérias! interrompeu o conego impaciente.

Resolveu-se elle então a escrever. E instado pelo padre Amaro (que não cessava de lhe representar o que a S. Joanneira e elle mesmo, conego Dias, soffreria com o escandalo) chegou a auctorisar ao seu amigo da capital as despezas necessarias para empregar a policia. A resposta demorou-se, mas veio emfim, promettedora e magnifica! O habil policia Mendes descobrira João Eduardo! Somente não lhe sabia ainda a morada, avistára-o apenas n'um café; mas em dois ou tres dias o amigo Mendes promettia informações precisas.

O desespero dos dois sacerdotes, porém, foi grande quando, d'ahi a dias, o amigo do conego escreveu que o indivíduo, que o habil policia Mendes tomára por João Eduardo, n'um café da Baixa, sobre signaes incompletos, era um moço de Santo Thyrso que estava na capital a fazer concurso para delegado... E havia tres libras e dezesete tostões de despeza.

—Dezesete demonios! rugiu o conego, voltando para Amaro furioso. E no fim de contas foi o senhor que gozou, que se refocillou, e sou eu que estou aqui a arrasar a minha saude com estas andadas, e a fazer desembolsos d'esta ordem! [497]

Amaro, dependente do padre-mestre, vergou os hombros á injuria.

Mas não estava nada perdido, graças a Deus. A Dionysia lá andava no faro!


Amelia recebia estas noticias com desconsolação. Depois das primeiras lagrimas, a irremediavel necessidade impuzera-se-lhe, muito forte. Por fim que lhe restava? D'ahi a dois ou tres mezes, com aquelle seu desgraçado corpo de cinta fina e quadris estreitos, não poderia esconder o seu estado. E que faria então? Fugir de casa, ir como a filha do tio Cegonha para Lisboa, ser espancada no Bairro Alto pelos marujos inglezes, ou como a Joanninha Gomes, que fôra a amiga do padre Abilio, levar pela cara os ratos mortos que lhe atiravam os soldados? Não. Então, tinha de casar...

Depois vir-lhe-hia um menino ao fim dos sete mezes (era tão frequente!), legitimado pelo sacramento, pela lei e por Deus Nosso Senhor... E o seu filho teria um papá, receberia uma educação, não seria um engeitado...

Desde que o senhor parocho lhe affirmára, em juramento, que o escrevente não estava realmente excommungado, que com algumas orações se lhe levantaria a excommunhão, os seus escrupulos devotos esmoreciam como brazas que se apagam. No fim, em todos os erros do escrevente, ella só podia [498] descobrir a incitação do ciume e do amor: fôra n'um despeito de namorado que escrevera o Communicado, fôra n'um furor de paixão trahida que espancára o senhor parocho... Ah! não lhe perdoava esta brutalidade! Mas que castigado fôra! Sem emprego, sem casa, sem mulher, tão perdido na miseria anonyma de Lisboa que nem a policia o achava! E tudo por ella. Pobre rapaz! No fim não era feio... Fallavam da sua impiedade; mas vira-o sempre muito attento á missa, rezava todas as noites uma oração especial a S. João que ella lhe dera impressa n'um cartão bordado...

Com o emprego no governo civil podiam ter uma casinha e uma criada... Porque não seria feliz, por fim? Elle não era rapaz de botequins, nem de vadiagem. Tinha a certeza de o dominar, de lhe impôr os seus gostos e as suas devoções. E seria agradavel sahir aos domingos de manhã para a missa, arranjada, de marido ao lado, comprimentada de todos, podendo, á face da cidade, passear o seu filho muito vistoso na sua touca de rendas e na sua grande capa franjada! Quem sabe se, então, pelos carinhos que désse ao pequerrucho e pelos confortos de que cercasse o homem, o céo e Nossa Senhora se não abrandariam! Ah! para isso faria tudo, para ter outra vez no céo aquella amiga, a sua querida Nossa Senhora, amavel e confidente, sempre prompta a curar-lhe as dôres, a livral-a de infortunios, occupada a preparar-lhe no paraiso um luminoso conchego!

Pensava assim horas inteiras, sobre a sua costura; [499] pensava assim, mesmo no caminho para casa do sineiro; e depois de ter estado um momento com a Tótó, muito quieta agora, extenuada da febre lenta, quando subia ao quarto, a primeira pergunta a Amaro era:

—Então, ha alguma novidade?

Elle franzia a testa, rosnava:

—A Dionysia lá anda... Porquê, tens muita pressa?

—Tenho muita pressa, tenho, respondia ella muito séria, que a vergonha é para mim.

Elle calava-se; e havia tanto odio como amor nos beijos que lhe dava—áquella mulher que se resignava assim tão facilmente a ir dormir com outro!


Tinha ciumes d'ella—que lhe tinham vindo ultimamente desde que a vira conformar-se áquelle casamento odioso! Agora, que ella já não chorava, começava a enfurecer-se da falta das suas lagrimas; e secretamente desesperava-se d'ella não preferir a vergonha com elle á rehabilitação com o outro. Não lhe custaria tanto se ella continuasse a barafustar, a fazer um alarido de prantos; isso seria uma prova séria de amor, em que a sua vaidade se banharia deliciosamente; mas aquella aceitação do escrevente agora, sem repugnancia e sem gestos d'horror, indignava-o como uma traição. Viera a suspeitar que a ella no fundo não lhe desagradava a mudança. João Eduardo por fim era um homem; tinha a força [500] dos vinte e seis annos, os attractivos d'um bello bigode. Ella teria nos braços d'elle o mesmo delirio que tinha nos seus... Se o escrevente fosse um velho consumido de rheumatismo, ella não mostraria a mesma resignação. Então, por vingança do padre, para «lhe desmanchar o arranjo», desejava que João Eduardo não apparecesse: e muitas vezes, quando a Dionysia lhe vinha dar conta dos passos, dizia-lhe com um mau sorriso:

—Não se canse. O homem não apparece. Deixe lá... Não vale a pena ganhar dôr de peito...

Mas a Dionysia tinha o peito forte—e uma noite veio, triumphante, dizer-lhe que estava na pista do homem! Vira emfim o Gustavo, o typographo, entrar para a casa de pasto do tio Osorio. Ao outro dia ia-lhe fallar, e havia de se saber tudo...

Foi uma hora amargurada para Amaro. Aquelle casamento, por que anciára no primeiro momento de terror, agora, que o sentia seguro, parecia-lhe a catastrophe da sua vida.

Perdia Amelia para sempre!... Aquelle homem que elle expulsára, que elle supprimira, alli lhe vinha, por uma d'estas peripecias malignas em que a Providencia se compraz, levar-lhe a mulher legitimamente. E a idéa que elle ia tel-a nos braços, que ella lhe daria os beijos fogosos que lhe dava a elle, que balbuciaria oh, João!—como agora murmurava oh, Amaro!—enfurecia-o. E não podia evitar o casamento; todos o queriam, ella, o conego, até a Dionysia com o seu zêlo venal! [501]

De que lhe servia ser um homem com sangue nas veias e as paixões fortes d'um corpo são? Tinha de dizer adeus á rapariga,—vêl-a partir de braço dado com o outro, com o marido, irem ambos para casa brincar com o filho, um filho que era seu! E elle assistiria á destruição da sua alegria de braços cruzados, esforçando-se por sorrir, voltaria a viver só, eternamente só, e a relêr o Breviario!... Ah! se fosse no tempo em que se supprimia um homem com uma denuncia d'heresia!... Que o mundo recuasse duzentos annos, e o snr. João Eduardo havia de saber o que custa achincalhar um sacerdote e casar com a menina Amelia...

E esta idéa absurda, na exaltação da febre em que estava, apoderou-se tão fortemente da sua imaginação que toda a noite a sonhou—n'um sonho vivido, que muitas vezes depois contou rindo ás senhoras. Era uma rua estreita batida d'um sol ardente; entre as altas portas chapeadas, uma populaça apinhava-se; pelos balcões, fidalgos muito bordados retorciam o bigode cavalheiresco; olhos reluziam, entre as pregas das mantilhas, accêsos n'um furor santo. E pela calçada, a procissão do auto-de-fé movia-se devagar, n'um vasto ruido, sob o tremendo dobre a finados de todos os sinos visinhos. Adiante os flagellantes semi-nus, de capuz branco sobre o rosto, dilaceravam-se, uivando o Miserere, com as costas empastadas de sangue: sobre um jumento ia João Eduardo, idiota de terror, com as pernas pendentes, a camisa alva sarapintada de diabos côr [502] de fogo, tendo ao peito um rotulo em que estava escripto—POR HEREJE; por traz um medonho servente do Santo Officio espicaçava furiosamente o jumento; e ao pé um padre, erguendo alto o crucifixo, berrava-lhe aos ouvidos os conselhos do arrependimento. E elle, Amaro, caminhava ao lado cantando o Requiem, de Breviario aberto n'uma mão, com a outra abençoando as velhas, as amigas da rua da Misericordia que se agachavam para lhe beijar a alva. Ás vezes voltava-se para gozar aquella pompa lugubre, e via então a longa fila da confraria dos Nobres: aqui era um personagem pansudo e apopletico, além uma face de mystico com um bigode feroz e dois olhos chammejantes; cada um levava uma tocha accêsa, e na outra mão sustentava o chapéo cuja pluma negra varria o chão. Os capacetes dos arcabuzeiros reluziam; uma cólera devota contorcia as faces esfomeadas do populacho; e o prestito ondeava nas tortuosidades da rua, entre o clamor do canto-chão, os gritos dos fanaticos, o dobrar aterrador dos sinos, o tlim-tlim das armas, n'um terror que enchia toda a cidade,—aproximando-se da platafórma de tijolo onde já fumegavam as pilhas de lenha.

E o seu desengano foi grande, depois d'aquella gloria ecclesiastica do sonho, quando a criada o veio acordar cedo com agua quente para a barba.

Era pois n'esse dia que se ia saber do snr. João Eduardo, e escrever-se-lhe!... Devia encontrar-se com Amelia ás onze horas; e foi a primeira coisa [503] que lhe disse, atirando a porta do quarto com mau modo:

—O homem appareceu... Pelo menos appareceu o amigo intimo, o typographo, que sabe onde a bêsta pára...

Amelia, que estava n'um dia de desalento e terror, exclamou:

—Ainda bem, que se acaba este tormento!

Amaro teve um risinho repassado de fel:

—Então agrada-te, hein?

—Se te parece, n'este susto em que ando...

Amaro teve um gesto desesperado, d'impaciencia. Susto! Não estava má hypocrisia! Susto de quê? Com uma mãi que era uma babosa, que lhe consentia tudo... O que era, era que queria casar... Queria outro! Não lhe agradava aquelle divertimento pela manhã, de fugida... Queria a coisa commodamente, em casa. Imaginava a menina que o illudia a elle, um homem de trinta annos e quatro annos de experiencia de confissão? Via bem através d'ella... Era como as outras, queria mudar d'homem.

Ella não respondia, muito pallida. E Amaro, furioso com o seu silencio:

—Calas-te, está claro... Que has de tu dizer? Se é a verdade pura!... Depois dos meus sacrificios... Depois do que tenho soffrido por ti... Apparece-te o outro, larga para o outro!

Ella ergueu-se, e batendo o pé, desesperada:

—Foste tu que quizeste, Amaro!

—Pudera! Se imaginas que me havia de perder [504] por tua causa! Está claro que quiz!...—E olhando-a d'alto, fazendo-lhe sentir um desprezo d'alma muito recta:—Mas nem vergonha tens de mostrar a alegria, o furor de ir para o homem!... És uma desavergonhada, é o que é...

Ella, sem uma palavra, branca como a cal, agarrou o mantelete para sahir.

Amaro, exasperado, segurou-a violentamente pelo braço:

—P'ra onde vaes? Olha bem p'ra mim. És uma desavergonhada... Estou-te a dizer. Estás morta por dormir com o outro...

—Pois acabou-se, estou! disse ella.

Amaro, perdido, atirou-lhe uma bofetada.

—Não me mates! gritou ella. É o teu filho!

Elle ficou diante d'ella, enleado e tremulo: áquella palavra, áquella idéa do seu filho, uma piedade, um amor desesperado revolveu todo o seu sêr: e arremessando-se sobre ella, n'um abraço que a esmagava, como querendo sepultal-a no peito, absorvel-a toda só para si, atirando-lhe beijos furiosos que a magoavam, pela face e pelos cabellos:

—Perdôa, murmurava, perdôa, minha Ameliasinha! Perdôa, que estou doido!

Ella soluçava, n'um pranto nervoso;—e toda a manhã foi no quarto do sineiro um delirio d'amor a que aquelle sentimento da maternidade, ligando-os como um sacramento, dava uma ternura maior, um renascimento incessante de desejo, que os lançava cada vez mais ávidos nos braços um do outro. [505]

Esqueceram as horas; e Amelia só se decidiu a saltar do leito quando ouviram em baixo na cozinha a muleta do tio Esguelhas.

Emquanto ella se arranjava á pressa diante do bocado d'espelho que ornava a parede, Amaro diante d'ella contemplava-a com melancolia, vendo-a a passar o pente nos cabellos—nos cabellos que elle dentro em breve não tornaria a vêr pentear; deu um grande suspiro, disse-lhe enternecido:

—Estão a acabar os nossos bons dias, Amelia. És tu que queres... Has de te lembrar algumas vezes d'estas boas manhãs...

—Não digas isso! fez ella com os olhos arrazados d'agua.

E atirando-se-lhe de repente ao pescoço, com a antiga paixão dos tempos felizes, murmurou-lhe:

—Hei de ser sempre a mesma para ti... Mesmo depois de casada.

Amaro agarrou-lhe as mãos sôfregamente:

—Juras?

—Juro.

—Pela hostia sagrada?

—Juro pela hostia sagrada, juro por Nossa Senhora!

—Sempre que tenhas occasião?

—Sempre!

—Oh, Ameliasinha! oh, filha! não te trocava por uma rainha!

Ella desceu. O parocho, dando uma arranjadella ao leito, ouvia-a em baixo fallar tranquillamente [506] com o tio Esguelhas; e dizia comsigo que era uma grande rapariga, capaz d'enganar o diabo, e que havia de fazer andar n'uma roda viva o pateta do escrevente.


Aquelle «pacto», como lhe chamava o padre Amaro, tornou-se entre elles tão irrevogavel que já lhe discutiam tranquillamente os detalhes. O casamento com o escrevente consideravam-no como uma d'estas necessidades que a sociedade impõe e que suffoca as almas independentes, mas a que a natureza se subtrae pela menor fenda, como um gaz irreductivel. Diante de Nosso Senhor, o verdadeiro marido d'Amelia era o senhor parocho; era o marido da alma, para quem seriam guardados os melhores beijos, a obediencia intima, a vontade; o outro teria quando muito o cadaver... Já ás vezes mesmo tramavam o plano habil das correspondencias secretas, dos logares occultos de rendez-vous...

Amelia estava de novo, como nos primeiros tempos, em todo o fogo da paixão. Diante da certeza que em algumas semanas o casamento ia tornar «tudo branco como a neve», os seus transes tinham desapparecido, o mesmo terror da vingança do céo calmára-se. Depois, a bofetada que lhe dera Amaro fôra como a chicotada que esperta um cavallo que preguiça e se atraza: e a sua paixão, sacudindo-se e relinchando forte, ia-a de novo levando no impeto d'uma carreira fogosa. [507]

Amaro, esse regosijava-se. Ainda ás vezes, decerto, a idéa d'aquelle homem, de dia e de noite com ella, importunava-o... Mas, no fundo, que compensações! Todos os perigos desappareciam magicamente, e as sensações requintavam. Findavam para elle aquellas atrozes responsabilidades da seducção, e ficava-lhe a mulher mais appetitosa.

Instava agora com a Dionysia para que acabasse emfim aquella fastidiosa campanha. Mas a boa mulher, decerto para se fazer pagar melhor pela multiplicidade d'esforços, não podia descobrir o typographo—aquelle famoso Gustavo que possuia, como os anões de romance de cavallaria, o segredo da torre maravilhosa onde vive o principe encantado.

—Oh, senhor! dizia o conego, isso até já cheira mal! Ha quasi dois mezes á busca d'um patife!... Homem, escreventes não faltam. Arranje-se outro!

Mas emfim, uma noite em que elle entrára a descansar em casa do parocho, a Dionysia appareceu; e exclamou logo da porta da sala de jantar, onde os dois padres tomavam o seu café:

—Até que emfim!

—Então, Dionysia?

A mulher, porém, não se apressou: sentou-se mesmo, com licença dos senhores, porque vinha derreada... Não, o senhor conego não imaginava os passos que se vira obrigada a dar... O maldito typographo lembrava-lhe a historia, que lhe contavam em pequena, d'um veado que estava sempre á vista e que os caçadores a galope nunca alcançavam. Uma [508] perseguição assim!... Mas, finalmente apanhára-o... E tocadito, por signal.

—Acabe, mulher! berrou o conego.

—Pois aqui está, disse ella. Nada!

Os dois sacerdotes olharam-na mystificados.

—Nada quê, creatura?

—Nada. O homem foi p'r'ó Brazil!

O Gustavo recebera de João Eduardo duas cartas: na primeira, onde lhe dava a morada, para o lado do Poço do Borratem, annunciava-lhe a resolução de ir para o Brazil; na segunda dizia-lhe que mudára de casa, sem lhe indicar a nova adresse, e declarava que pelo proximo paquete embarcava para o Rio; não dizia nem com que dinheiro, nem com que esperanças. Tudo era vago e mysterioso. Desde então, havia um mez, o rapaz não tornára a escrever, d'onde o typographo concluia que ia a essa hora nos altos mares...—«Mas havemos de vingal-o!» tinha elle dito a Dionysia.

O conego remexia pausadamente o seu café, embatocado.

—E esta, padre-mestre? exclamou Amaro, muito branco.

—Acho-a boa.

—Diabo levem as mulheres, e o inferno as confunda! disse surdamente Amaro.

—Amen, respondeu gravemente o conego.



XXI



Que lagrimas quando Amelia soube a noticia! A sua honra, a paz da sua vida, tantas felicidades combinadas, tudo perdido e sumido nas brumas do mar, a caminho para o Brazil!

Foram as semanas peores da sua vida. Ia para o parocho, banhada em lagrimas, perguntando-lhe todos os dias o que havia de fazer.

Amaro, succumbido, sem idéa, ia para o padre-mestre.

—Fez-se tudo o que se pôde, dizia o conego desolado. É aguentar. Não se mettesse n'ellas!

E Amaro voltava para Amelia com consolações muito murchas:

—Tudo se ha de arranjar, é esperar em Deus! [510]

Era bom o momento para contar com Deus, quando Elle, indignado, a acabrunhava de miserias! E aquella indecisão, n'um homem e n'um padre, que devia ter a habilidade e a força de a salvar, desesperavam-na; a sua ternura por elle sumia-se como a agua que a areia absorve; e ficava um sentimento confuso em que sob o desejo persistente já transluzia o odio.

Espaçava agora de semana a semana os encontros na casa do sineiro. Amaro não se queixava; aquellas boas manhãs do quarto do tio Esguelhas, eram sempre estragadas com queixumes; cada beijo tinha um rastro de soluços; e aquillo enervava-o tanto, que lhe vinham desejos de se atirar tambem de bruços para a enxerga e chorar toda a sua amargura.

No fundo accusava-a de exagerar os seus embaraços, de lhe communicar um terror desproporcionado. Outra mulher, de melhor senso, não faria semelhante espalhafato... Mas quê, uma beata hysterica, toda nervos, toda medo, toda exaltação!... Ah, não havia duvida, fôra «uma famosa asneira»!

Tambem Amelia pensava que fôra «uma asneira». E não ter nunca imaginado que aquillo lhe poderia succeder! Qual! Como mulher, correra para o amor, toda tonta, certa que escaparia, ella,—e agora que sentia nas entranhas o filho, eram as lagrimas e os espantos e as queixas! A sua vida era lugubre: de dia tinha de se conter diante da mãi, applicar-se á sua costura, conversar, affectar felicidade... [511] Era de noite que a imaginação desencadeada a torturava com uma incessante phantasmagoria de castigos, d'este e do outro mundo, miserias, abandonos, desprezo da gente honrada e chammas do purgatorio...

Foi então que um acontecimento inesperado veio fazer diversão áquella anciedade que se ia tornando um habito morbido do seu espirito. Uma noite a criada do conego appareceu, esfalfada de correr, a dizer que a snr.a D. Josepha estava á morte.

Na vespera a excellente senhora sentira-se doente com uma pontada no lado, mas insistira em ir á Senhora da Incarnação rezar a sua corôa; voltou transida, com uma dôr maior e uma ponta de febre; e n'essa tarde, quando o doutor Gouvêa foi chamado, tinha-se declarado uma pneumonia aguda.

A S. Joaneira correu logo a installar-se lá como enfermeira. E então, durante semanas, na tranquilla casa do conego, foi um alvoroço de dedicações afflictas: as amigas, quando se não espalhavam pelas igrejas a fazer promessas e a implorar os seus santos devotos, estavam lá em permanencia, sahindo e entrando no quarto da doente com passos de phantasmas, accendendo aqui e além lamparinas ás imagens, torturando o doutor Gouvêa com perguntas piegas. Á noite na sala, com o candieiro a meia luz, era pelos cantos um cochichar de vozes lugubres; e ao chá, entre cada mastigadella de torrada, havia suspiros, lagrimas furtivamente limpadas...

O conego lá estava a um canto, aniquilado, succumbido [512] com aquella brusca apparição da doença e do seu scenario melancolico—as garrafadas de botica enchendo as mesas, as entradas solemnes do medico, as faces compungidas que vem saber se ha melhoras, o halito febril espalhado em toda a casa, o timbre funerario que toma o relogio de parede no abafamento de todo o ruido, as toalhas sujas que ficam dias no logar em que cahiram, o anoitecer de cada dia com a sua ameaça de treva eterna... De resto, um pezar sincero prostrava-o; havia cincoenta annos que vivia com a mana e era animado por ella; o longo habito tornára-lh'a cara; e as suas caturrices, as suas toucas negras, o seu espalhafato pela casa faziam como uma parte mesma de seu sêr... Além d'isso, quem sabe se a morte, entrando-lhe em casa, para poupar passos, o não levaria tambem!...

Para Amelia aquelle tempo foi um allivio; ao menos ninguem pensava, ninguem reparava n'ella; nem a sua face triste e os vestigios de lagrimas pareceriam estranhos, n'aquelle perigo em que estava a madrinha. Demais os serviços de enfermeira occupavam-n'a: como era a mais forte e a mais nova, agora que a S. Joaneira estava estafada de vigilias, era ella que passava as longas noites á beira de D. Josepha: e não havia então desvelos que não tivesse, para abrandar Nossa Senhora e o céo com aquella caridade pela doente, para merecer igual piedade quando o seu dia viesse de estar tambem prostrada n'um leito... Vinha-lhe agora, sob a impressão [513] funebre que se exhalava da casa, o presentimento repetido que morreria de parto; ás vezes só, embrulhada no seu chale aos pés da doente, ouvindo-lhe o gemer monotono, enternecia-se sobre a sua propria morte que julgava certa, e molhavam-se-lhe os olhos de lagrimas, n'uma saudade vaga de si mesma, da sua mocidade e dos seus amores... Ia então ajoelhar-se junto da commoda onde uma lamparina bruxoleava diante d'um Christo projectando sobre o papel claro da parede a sua sombra disforme que se quebrava no tecto; e alli ficava rezando, pedindo a Nossa Senhora que não lhe recusasse o paraiso... Mas a velha mexia-se com um ai doloroso; ia então aconchegar-lhe a roupa, fallar-lhe baixo. Vinha depois á sala vêr no relogio se era o momento do remedio; e estremecia ás vezes, sentindo vir do quarto proximo um pio de flautim ou um som rouco de trombone; era o conego a resonar.

Emfim, uma manhã, o doutor Gouvêa declarou D. Josepha livre de perigo. Foi um vivo regosijo para as senhoras—certa, cada uma, que aquillo era devido á intervenção particular do seu santo devoto. E d'ahi a duas semanas houve uma festa na casa, quando D. Josepha, pela primeira vez, amparada nos braços de todas as amigas, deu dois passos tremulos no quarto. Pobre D. Josepha, o que d'ella fizera a doença! Aquella vozinha irritada, em que as palavras eram despedidas como settas envenenadas, assemelhava-se agora apenas a um som expirante, quando, n'um esforço ancioso da vontade, pedia a escarradeira [514] ou o xarope. Aquelle olhar sempre álerta, escrutador e maligno, estava hoje como refugiado no fundo das orbitas, assustado da luz, das sombras e dos contornos das coisas. E o seu corpo, tão têso outr'ora, d'uma seccura de ramo de sarmento, agora ao cahir no fundo da poltrona, sob a trapalhada dos agasalhos, parecia um trapo tambem.

Mas emfim o doutor Gouvêa, apesar d'annunciar uma convalescença longa e delicada, dissera rindo ao conego, diante das amigas (depois de ter visto D. Josepha manifestar o seu primeiro desejo, o desejo de se chegar á janella), que com muita cautela, tonicos, e as orações de todas aquellas boas senhoras—a mana estava ainda para amores...

—Ai, doutor, exclamou D. Maria, as nossas orações não lhe hão de faltar...

—E eu não lhe hei de faltar com os tonicos, disse o doutor. De modo que, o que resta é congratularmo-nos.

Aquella jovialidade do doutor era para todos como a certeza da saude proxima.

E d'ahi a dias, o conego vendo aproximar-se o fim d'agosto, fallou de alugar casa na Vieira, como costumava um anno sim outro não, para ir tomar os seus banhos de mar. O anno passado não fôra. Este era o anno de praia...

—E a mana lá, n'aquelles ares saudaveis da beira-mar, é que acaba de ganhar forças e carnes...

Mas o doutor Gouvêa desapprovou a jornada. O ar muito picante e muito rico do mar não convinha [515] á fraqueza de D. Josepha. Era preferivel irem para a quinta da Ricoça, nos Poyaes, logar abrigado e muito temperado.

Foi um desgosto para o pobre conego, que prodigalisou as lamurias. O quê! ir enterrar-se todo o verão, o melhor tempo do anno, na Ricoça! E os seus banhos, meu Deus, os seus banhos?

—Veja o senhor,—dizia elle a Amaro, uma noite no escriptorio,—veja o que eu tenho sofrido... Durante a doença, que desarranjo, que desordem na casa! Chá fôra d'horas, jantar esturrado! E os cuidados que tive, que me emmagreceram... E agora, quando eu pensava poder ir refazer-me para a praia, não senhor, vai p'r'á Ricoça, dispensa os teus banhos... Isto é o que eu chamo sofrer! E no fim de tudo não fui eu que estive doente. Mas sou eu que as aguento... Perder dois annos a fio os meus banhos!...

Amaro, então, deu de repente uma punhada na mesa, e exclamou:

—Homem, veio-me uma boa idéa!

O conego olhou-o com duvida, como se não achasse possivel a uma intelligencia humana descobrir o fim dos seus males.

—Quando digo uma boa idéa, padre-mestre, devia dizer uma idéa sublime!

—Acabe, creatura...

—Escute. O senhor vai p'r'á Vieira, e a S. Joanneira, está claro, vai tambem. Naturalmente alugam [516] casa um ao pé do outro, como ella me disse que tinham feito ha dois annos...

—Adiante...

—Bem. Aqui temos a S. Joanneira na Vieira. Agora, a senhora sua mana parte p'r'á Ricoça.

—E então a creatura ha de ir só?

—Não! exclamou Amaro em triumpho. Vai com a Amelia! A Amelia vai-lhe servir de enfermeira! Vão ambas sós! e lá na Ricoça, n'aquelle buraco onde não vai viva alma, n'aquelle casarão onde póde uma pessoa viver sem que ninguem em roda suspeite, lá é que a rapariga tem o filho! Hein, que lhe parece?

O conego erguera-se com os olhos redondos d'admiração.

—Homem, famosa idéa!

—É que concilia tudo! O senhor toma os seus banhos. A S. Joanneira, longe, não sabe o que se passa. Sua mana goza os ares... A Amelia tem um sitio escondido p'r'á coisa... Á Ricoça ninguem a vai vêr... A D. Maria tambem vai p'r'á Vieira. As Gansosos idem. A rapariga deve ter o bom successo ahi pelos principios de novembro... Da Vieira, e isso fica por sua conta, não volta ninguem dos nossos até principios de dezembro... E quando nos reunirmos de novo está a rapariga limpa e fresca.

—Pois senhores, por ser a primeira idéa que vossê tem n'estes dois ultimos annos, é uma grande idéa! [517]

—Obrigado, padre-mestre.

Mas havia uma difficuldade feia: era o ir á D. Josepha, á rigorista D. Josepha, tão implacavel ás fraquezas do sentimento, á D. Josepha que pedia para as mulheres frageis as antigas penalidades gothicas—as letras marcadas na testa com ferro em braza, os açoutes nas praças publicas, os in pace tenebrosos—ir á D. Josepha e pedir-lhe para ser cumplice d'um parto!

—A mana vai dar urros! disse o conego.

—Nós veremos, padre-mestre, replicou Amaro repoltreando-se e balouçando a perna, muito certo do seu prestigio devoto. Nós veremos... Hei de lhe eu fallar... E quando lhe tiver contado umas lérias... Quando lhe tiver representado que é para ella um caso de consciencia encobrir a pequena... Quando lhe lembrar que nas vesperas da morte é que se deve fazer alguma boa acção, para não se apresentar á porta do paraiso com as mãos vazias... Nós veremos!

—Talvez, talvez, disse o conego. A occasião é boa, porque a pobre mana está fraquita do juizo e leva-se como uma criança.

Amaro ergueu-se, esfregando vivamente as mãos:

—Pois é mãos á obra! É mãos á obra!

—E é necessario não perder tempo, porque o escandalo estala. Olhe que esta manhã, lá em casa, a besta do Libaninho pôz-se a gracejar com a rapariga, a dizer-lhe que tinha a cinta grossa...

—Oh, que patife! rugiu o parocho.

Não, não seria por mal. Mas que a rapariga [518] tem engrossado, é facto... Com esta atarantação da doença ninguem tem tido olhos para nada... Mas agora póde-se reparar... É sério, amigo, é sério!


Por isso, logo na manhã seguinte, Amaro foi, segundo a expressão do conego, «dar a grande abordagem á mana».

Antes, porém, explicou em baixo no escriptorio ao padre-mestre o seu plano: primeiro, ia dizer a D. Josepha que o conego estava na inteira ignorancia do desastre da Ameliasinha, e que elle, Amaro, o sabia, não em segredo de confissão (n'esse caso não o poderia revelar) mas pelas confidencias secretas dos dois—de Amelia e do homem casado que a seduzira!... Do homem casado, sim!... Porque emfim era necessario provar á velha que havia a impossibilidade d'uma reparação legitima...

O conego coçava a cabeça descontente:

—Isso não vai bem arranjado, disse elle. A mana sabe bem que não iam homens casados á rua da Misericordia.

—E o Arthur Couceiro? exclamou Amaro, sem escrupulo.

O conego largou a rir, com gosto. O pobre Arthur, sem dentes, cheio de filhos, com os seus olhos de carneiro triste, accusado de perder virgens!... Não, essa era boa!

—Não péga, parocho amigo, não péga! Outra, outra... [519]

Mas então subitamente partiu dos labios d'ambos o mesmo nome,—o Fernandes, o Fernandes da loja de panos! Bello homem, que Amelia admirava muito! Sempre que sahia ia-lhe á loja: tinha mesmo havido indignação na rua da Misericordia, havia dois annos, com a ousadia do Fernandes que acompanhára Amelia pela estrada de Marrazes até ao Morenal!

Já se sabe, não se dizia explicitamente á mana,—mas dava-se-lhe a entender que fôra o Fernandes.

E Amaro subiu rapidamente para o quarto da velha, que era por cima do escriptorio. Esteve lá meia hora, uma longa, uma pesada meia hora para o conego, que apenas podia ouvir em cima, ora rangerem as solas d'Amaro, ora a tosse cavernosa da velha... E no seu passeio habitual pelo escriptorio, da estante para a janella, com as mãos atraz das costas e a caixa de rapé nos dedos, ia considerando quantos incommodos, quantas despezas lhe traria ainda aquelle «divertimento do senhor parocho»! Tinha de ter a rapariga na quinta cinco ou seis mezes... Depois o medico, a parteira que era elle naturalmente que havia de pagar... Depois algum enxoval para o pequeno... E que se lhe havia de fazer, ao pequeno?... Na cidade, a Roda fôra supprimida; em Ourem, como os recursos da Misericordia eram escassos e a affluencia dos engeitados escandalosa, tinham posto um homem ao pé da sineta da Roda, para interrogar e pôr embaraços; havia indagações de paternidade, restituições de crianças; e a [520] auctoridade, finoria, combatia o excesso dos engeitamentos com o terror dos vexames...

Emfim o pobre padre-mestre via diante de si todo um erriçamento de difficuldades para lhe sacudir a pachorra e estragar-lhe a digestão...—Mas o excellente conego, no fundo, não se indignava; sempre tivera uma affeição de velho mestre pelo parocho; para a Amelia sempre o inclinára um fraco meio paternal, meio lubrico; e mesmo já sentia pelo «pequeno» uma vaga condescendencia d'avô.

A porta abriu-se, e o parocho appareceu triumphante.

—Tudo ás mil maravilhas, padre-mestre! Que lhe dizia eu?

—Consentiu?

—Em tudo. Não foi sem difficuldade... Ia-se abespinhando. Fallei-lhe do homem casado... Que a rapariga estava com a cabeça perdida, queria-se matar... Que se ella não consentisse em encobrir a coisa era responsavel por uma desgraça... Lembre-se a senhora que está com os pés p'r'á cova, que Deus póde chamal-a d'um momento a outro, e que se tiver na consciencia este peso, não ha padre que lhe dê a absolvição!... Lembre-se que morre p'r'áhi como um cão!...

—Emfim, disse o conego approvando, fallou-lhe com prudencia...

—Disse-lhe a verdade. Agora trata-se de fallar á S. Joanneira, e de a levar p'r'á Vieira quanto antes... [521]

—Outra coisa, amigo, interrompeu o conego. Tem vossê pensado no destino que se ha de dar ao fructo?

O parocho coçou desconsoladamente a cabeça:

—Ah, padre-mestre... Isso é outra difficuldade... Tem-me apoquentado muito... Naturalmente dal-o a criar a alguma mulher, longe, lá p'ra Alcobaça ou p'ra Pombal... A felicidade, padre-mestre, era que a criança nascesse morta!

—Era um anjinho mais... rosnou o conego sorvendo a sua pitada.


Logo n'essa noite elle fallou á S. Joanneira da ida para a Vieira, em baixo na saleta onde ella estava arranjando pires de marmelada que andavam a seccar para a convalescença de D. Josepha. Começou por dizer que lhe alugára a casa do Ferreiro...

—Mas isso é um nicho! exclamou ella logo. Onde hei de eu metter a pequena?

—Ora ahi é que está. É que justamente a Amelia d'esta vez não vai á Vieira.

—Não vai!?

Foi só então que o conego lhe explicou que a mana não podia ir só para a Ricoça, e que elle tinha pensado em mandar com ella Amelia... Era uma idéa que lhe viera n'essa manhã.

—Eu não posso ir, tenho de tomar os meus banhos, a senhora bem sabe... A pobre de Christo [522] não ha de estar para lá só, com uma criada. Portanto...

A S. Joanneira teve um silenciosinho desconsolado:

—Isso é verdade. Mas olhe, para lhe dizer com franqueza, custa-me bem deixar a pequena... Se eu pudesse dispensar os banhos, ia eu.

—Qual ia! A senhora vem p'r'á Vieira. Eu tambem não hei de estar lá só... Sua ingrata, sua ingrata!...—E tomando um tom muito sério:—A senhora veja bem. A Josepha está com os pés p'r'á cova. Ella sabe que o que eu tenho para mim chega. Ella tem affeição á pequena, sempre é madrinha; se a vir agora a tratal-a na doença, a estar alli só com ella uns mezes, fica pelo beiço. Olhe que a mana ainda vale um par de mil cruzados. A pequena póde apanhar um bom dote. Não lhe digo mais nada...

E a S. Joanneira concordou logo—uma vez que era vontade do senhor conego.

Em cima, Amaro estava contando rapidamente a Amelia «o grande plano», a scena com a velha: que ella se promptificára logo, coitadinha, já cheia de caridade, desejando até ajudar para o enxoval do pequeno...

—N'ella pódes ter confiança, é uma santa... De modo que está tudo salvo, filha. É estar mettida quatro ou cinco mezes na Ricoça.

Era isso que fazia choramingar Amelia: perder a estação da Vieira, o divertimento dos banhos!... Ir [523] enterrar-se todo um verão n'aquelle sinistro casarão da Ricoça! A unica vez que lá fôra, já ao fim da tarde, ficára estarrecida de medo. Tudo tão escuro, d'um echo tão concavo... Tinha a certeza que ia lá morrer, n'aquelle degredo.

—Tolice! fez Amaro. É dar graças ao Senhor de me ter inspirado esta idéa de salvação. Demais tens a D. Josepha, tens a Gertrudes, o pomar para passear... E eu vou-te lá vêr todos os dias. Até has de gostar, verás.

—Emfim que lhe hei de eu fazer? É aguentar. E com duas grossas lagrimas nas palpebras, amaldiçoava intimamente aquella paixão que só amarguras lhe dava, e que agora, quando toda a Leiria ia para a Vieira, a forçava a ella a ir fechar-se na solidão da Ricoça, ouvindo tossir a velha e os cães uivar na quinta...—E a mamã, que diria a mamã?

—Que ha de dizer? A D. Josepha não póde ir p'r'á quinta só, sem uma enfermeira de confiança! Não te dê cuidado. O padre-mestre está lá em baixo a trabalhal-a... E eu vou ter com ella, que já aqui estou só ha bocado comtigo, e n'estes ultimos dias é necessario ter cautelinha...

Desceu. Justamente o conego subia, e encontraram-se na escada.

—Então? perguntou Amaro ao ouvido do padre-mestre.

—Tudo arranjado. E por lá?

—Idem. [524]

E no escuro da escada os dois padres apertaram-se silenciosamente a mão.


D'ahi a dias, depois d'uma scena de prantos, Amelia partiu com D. Josepha para a Ricoça n'um char-à-banc.

Tinham arranjado, com almofadas, um recanto commodo para a convalescente. O conego acompanhava-a, furioso com aquelle incommodo. E a Gertrudes ia em cima na almofada, á sombra da montanha que faziam sobre o tope do carro os bahús de couro, os cestos, as latas, as trouxas, os saccos de chita, o açafate onde miava o gato, e um fardo amarrado com cordas contendo os paineis dos santos mais queridos de D. Josepha.

Depois, ao fim da semana, foi a jornada da S. Joanneira para a Vieira, de noite, por causa da calma. A rua da Misericordia estava atravancada com o carro de bois, que conduzia as louças, os enxergões, o trem de cozinha; e no mesmo char-à-banc que fôra á Cortegassa, ia agora a S. Joanneira e a Ruça que levava tambem no regaço um açafate com o gato.

O conego fôra na vespera, só Amaro assistia á partida da S. Joanneira. E depois de toda uma azafama, de galgarem cem vezes de baixo a cima as escadas por um cestinho que esquecera ou um embrulho que desapparecia, quando a Ruça emfim fechou [525] a porta á chave, a S. Joanneira, já no estribo do char-à-banc, rompeu a chorar.

—Então, minha senhora, então! disse Amaro.

—Ai, senhor parocho, deixar a pequena!... Mal sabe o que me custa... Parece que a não torno a vêr. Appareça pela Ricoça, faça-me essa esmola. Veja se ella está contente...

—Vá descansada, minha senhora.

—Adeus, senhor parocho. Muito obrigada por tudo... Ai os favores que lhe devo!

—Tolices, minha senhora... Boa jornada, dê noticias! Recados ao padre-mestre. Adeus, minha senhora! adeus, Ruça...

O char-à-banc partiu. E pelo mesmo caminho por onde elle ia rolando, Amaro foi andando devagar até á estrada da Figueira. Eram então nove horas, nascera já o luar d'uma noite calida e serena de agosto. Uma tenue nevoa luminosa suavisava a paizagem calada. Aqui e além uma fachada saliente de casa rebrilhava, batida da lua, entre as sombras do arvoredo. Ao pé da ponte, parou a olhar melancolicamente o rio que corria sobre a areia com uma susurração monotona; nos logares em que as arvores se debruçavam, havia escuridões cerradas; e adiante uma claridade tremia sobre a agua, como um tecido de filigrana faiscante. Alli esteve, n'aquelle silencio que o calmava, fumando cigarros e atirando as pontas para o rio, embebido n'uma tristeza vaga. Depois, ouvindo as onze, veio voltando para a cidade, passou pela rua da Misericordia n'um enternecimento [526] de recordações: a casa, com as janellas fechadas, sem as cortinas de cassa, parecia abandonada para sempre; os vasos de alecrim tinham ficado esquecidos aos cantos da janella... Quantas vezes Amelia e elle se tinham encostado áquella varanda! Havia então um craveiro fresco, e conversando, ella cortava uma folha, trincava-a nos dentinhos. Tudo tinha acabado agora!—E na Misericordia, ao lado, o piar das corujas no silencio dava-lhe uma sensação de ruina, de solidão e de fim eterno.

Foi andando para casa, devagar, com os olhos arrazados d'agua.

A criada veio logo á escada dizer-lhe que o tio Esguelhas, n'uma afflicção, viera procural-o duas vezes, haviam de ser nove horas. A Tótó estava a morrer, e só queria receber os sacramentos da mão do senhor parocho.

Amaro, apesar da sua repugnancia supersticiosa em voltar assim n'essa noite, para um fim tão triste, ao meio das recordações felizes da sua paixão, foi, para obsequiar o tio Esguelhas; mas impressionava-o aquella morte, coincidindo com a partida d'Amelia, e como completando a subita dispersão de quanto até ahi o interessára ou estivera misturado á sua vida.

A porta da casa do sineiro estava entreaberta, e na escuridão da entrada topou com duas mulheres que sahiam suspirando. Foi logo direito á alcova da paralytica: duas grandes velas de cera, trazidas da igreja, ardiam sobre uma mesa; um lençol branco cobria o corpo da Tótó; e o padre Silverio, que fôra [527] decerto chamado por estar de semana, lia o Breviario, com o lenço nos joelhos, os seus grandes oculos na ponta do nariz. Ergueu-se apenas viu Amaro:

—Ah, collega, disse muito baixo, andaram a procural-o por toda a parte... A pobre de Christo queria-o a vossê... Eu, quando me foram buscar, ia fazer a partida a casa do Novaes. É a partida do sabbado... Que scena! Morreu na impenitencia, como era dos livros. Quando me viu, e que vossê não vinha, que espectaculo! Até tive medo que me cuspisse no crucifixo...

Amaro, sem dar uma palavra, ergueu uma ponta do lençol, mas deixou-o logo recahir sobre a face da morta. Depois subiu acima ao quarto onde o sineiro, estirado sobre a cama, voltado para a parede, soluçava desesperadamente; estava com elle outra mulher, que se conservava a um canto, muda e immovel, com os olhos no chão, no vago aborrecimento que lhe dava aquelle pesado dever de visinha. Amaro tocou no hombro do sineiro, fallou-lhe:

—É necessario resignação, tio Esguelhas... São decretos do Senhor... Para ella é até uma felicidade.

O tio Esguelhas voltou-se; e reconhecendo o parocho, por entre o véo das lagrimas que lhe alagavam os olhos, tomou-lhe a mão, quiz beijar-lh'a. Amaro recuou:

—Então, tio Esguelhas!... Deus ha de ser misericordioso, ha de lhe levar em conta a sua dôr...

Elle não o escutava, sacudido d'um pranto convulsivo,—emquanto [528] a mulher, muito tranquillamente, limpava ora um ora outro canto do olho.

Amaro desceu; e para alliviar o bom Silverio d'aquelle serviço excepcional, tomou o seu logar ao pé da vela, com o Breviario na mão.

Alli ficou até tarde. A visinha ao sahir veio dizer-lhe que o tio Esguelhas tinha pegado a dormir; e ella promettia voltar com a amortalhadeira, mal rompesse a manhã.

Toda a casa então ficou n'aquelle silencio, que a visinhança do vasto edificio da Sé fazia parecer mais soturno; só ás vezes um mocho piava debilmente nos contrafortes, ou o grosso bordão batia os quartos. E Amaro, tomado d'um indefinido terror, mas preso alli por uma força superior da consciencia sobresaltada, ia precipitando as orações... Ás vezes o livro cahia-lhe sobre os joelhos; e então, immovel, sentindo por detraz a presença d'aquelle cadaver coberto do lençol, recordava, n'um contraste amargo, outras horas em que o sol banhava o pateo, as andorinhas esvoaçavam, e elle e Amelia subiam rindo para aquelle quarto onde agora, sobre a mesma cama, o tio Esguelhas dormitava com soluços mal acalmados...



XXII



O conego Dias recommendára muito a Amaro que ao menos nas primeiras semanas, para evitar as suspeitas da mana e da criada, não fosse á Ricoça. E a vida d'Amaro tornou-se então mais triste, mais vazia que outr'ora, quando pela primeira vez deixando a casa da S. Joanneira viera para a rua das Sousas. Todos os seus conhecidos estavam fóra de Leiria: D. Maria da Assumpção na Vieira; as Gansosinhos ao pé d'Alcobaça com a tia, a famosa tia que havia dez annos estava para morrer e para lhes deixar uma grande herdade. Depois do serviço da Sé, as horas, todo o longo dia, arrastavam-se pesadas como chumbo. Não estaria mais separado de toda a communicação humana, se como Santo Antonio vivesse nos areaes do deserto libyco. Só o coadjutor que, coisa [530] singular, nunca lhe apparecia nos tempos felizes, voltára agora, como o companheiro fatidico das horas tristes, a visital-o uma, duas vezes por semana, ao fim do jantar, mais magro, mais chupado, mais soturno, com o seu eterno guardachuva na mão. Amaro odiava-o; ás vezes, para o impôr, fingia-se todo occúpado n'uma leitura; ou precipitando-se para a mesa, mal lhe sentia nos degraus as passadas lentas:

—Amigo coadjutor, desculpe, que estou aqui a rabiscar uma coisa.

Mas o homem installava-se, com o odioso guardachuva entre os joelhos:

—Não se prenda, senhor parocho, não se prenda.

E Amaro, torturado por aquella figura lugubre que não se mexia na cadeira, atirava a penna, furioso, agarrava o chapéo:

—Não estou hoje p'r'á coisa, vou espairecer.

E á primeira esquina descartava-se bruscamente do coadjutor.

Ás vezes, farto de solidão, ia visitar o Silverio. Mas a felicidade pachorrenta d'aquelle sêr obeso, occupado em colleccionar receitas de medicina caseira e em observar as perturbações phantasticas da sua digestão; os seus constantes louvores do doutor Godinho, dos pequenos e da senhora; as chalaças obsoletas que elle repetia havia quarenta annos e a innocente hilaridade que ellas lhe davam, impacientavam Amaro. Sahia, enervado, pensando na sorte inimiga [531] era a felicidade por fim: porque não havia de elle ser tambem um bom padre caturra, com uma pequenina mania tyrannica, parasita regalado d'uma familia respeitavel, tendo um d'estes sangues tranquillos que giram sob camadas de gordura, sem perigo de transbordar e de causar desgraças, como um riacho que corre por debaixo d'uma montanha?...

Outras vezes ia ao collega Natario, cuja fractura, mal tratada ao principio, o retinha ainda na cama com o apparelho na perna. Mas ahi, enjoava-o o aspecto do quarto—impregnado d'um cheiro d'arnica e de suor, com uma profusão de trapos ensopados em malgas vidradas, e esquadrões de garrafas sobre a commoda entre fileiras de santos. Natario, mal o via apparecer, rompia em queixas: As cavalgaduras dos medicos! A sua má sorte habitual! As torturas a que o forçavam! O atrazo em que estava a medicina n'este maldito paiz!... E ia salpicando o soalho negro de expectorações e de pontas de cigarro. Desde que estava doente, a saude dos outros, sobretudo dos amigos, indignava-o como uma offensa pessoal.

—E vossê sempre rijo, hein? Pudera!—murmurava com rancor.

E pensar que aquella besta do Brito nunca lhe doera a cabeça! E que o alarve do abbade se gabava de nunca ter estado na cama depois das sete da manhã! Animaes!

Amaro então dava-lhe as novidades: alguma carta que recebera do conego, da Vieira, as melhoras da D. Josepha... [532]

Mas Natario não se interessava pelas pessoas a quem apenas o unia a convivencia e a amizade; interessavam-n'o só os seus inimigos, com quem tinha ligações d'odio. Queria saber do escrevente, se já tinha estourado de fome...

—Esse ao menos pude-lhe ser bom antes de cahir aqui n'esta maldita cama!...

As sobrinhas appareciam então—duas creaturinhas sardentas, d'olhos muito pisados. O seu grande desgosto era que o titi não mandasse vir a benzedeira pôr-lhe virtude na perna: era o que tinha curado o morgadinho da Barrosa, e o Pimentel d'Ourem...

Natario, na presença das duas rosas do seu canteiro, calmava-se.

—Coitaditas, não é por falta de cuidados d'ellas que eu ainda não arribei... Mas tenho soffrido, caramba!

E as duas rosas, com o mesmo movimento simultaneo, voltavam-se para o lado limpando os olhos aos lenços.

Amaro sahia d'alli, mais enfastiado.

Para se fatigar tentava dar grandes passeios pela estrada de Lisboa. Mas apenas se afastava do movimento da cidade, a sua tristeza tornava-se mais intensa, concordando com aquella paizagem de collinas tristes e arvores enfezadas: e a sua vida apparecia-lhe como essa mesma estrada monotona e longa, sem um incidente que a alegrasse, estirando-se desoladamente até se perder nas brumas do crepusculo. [533] Ás vezes, ao voltar, entrava no cemiterio, ia passeando entre os renques de cyprestes, sentindo áquella hora do fim da tarde a emanação adocicada das moitas de goivos; lia os epitaphios; encostava-se á grade dourada do jazigo da familia Gouvêa, contemplando os emblemas em relevo, um chapéo armado e um espadim, seguindo as negras letras da famosa ode que lhe adorna a lapida:


Caminhante, detem-te a contemplar
Estes restos mortaes;
E, se sentires a mágoa a transbordar,
Detem teus ais.
Que Julio Cabral da Silva Maldonado
Mendonça de Gouvêa,
Moço fidalgo, bacharel formado,
Filho da illustre Cêa,
Ex-administrador d'este concelho,
Commendador de Christo,
Foi de virtudes singular espelho,
Caminhante, crê n'isto.


Depois era o rico mausoléo do Moraes, onde sua esposa, que agora, rica e quarentona, vivia em concubinagem com o bello capitão Trigueiros, fizera gravar uma piedosa quadra:


Entre os anjos espera, ó esposo,
A metade do teu coração
Que no mundo ficou, tão sózinha,
Toda entregue ao dever da oração!...


Algumas vezes, ao fundo do cemiterio, junto ao muro, via um homem ajoelhado ao pé d'uma cruz negra, que um chorão assombreava, ao lado da valla [534] dos pobres. Era o tio Esguelhas, com a sua moleta no chão, rezando sobre a sepultura da Tótó. Ia fallar-lhe, e mesmo, n'uma igualdade que aquelle logar justificava, passeavam familiarmente, hombro a hombro, conversando. Amaro, com bondade, consolava o velho: de que servia á desgraçada rapariga a vida para a passar estirada n'uma cama?

—Sempre era viver, senhor parocho... E eu, veja agora isto, sósinho de dia e de noite!

—Todos têm as suas solidões, tio Esguelhas, dizia melancolicamente Amaro.

O sineiro então suspirava, perguntava pela snr.a D. Josepha, pela menina Amelia...

—Lá está na quinta.

—Coitadita, não está má estopada...

—Cruzes da vida, tio Esguelhas.

E continuavam calados por entre as ruas de buxo que fecham os canteiros cheios do negrejamento das cruzes e da brancura das lapidas novas. Amaro, ás vezes, reconhecia alguma sepultura que elle mesmo tinha aspergido e consagrado: onde estariam aquellas almas que elle recommendára a Deus em latim, distrahido, engorolando á pressa as orações para ir ter com Amelia? Eram jazigos de gente da cidade; elle conhecia de vista as pessoas da familia; vira-as então lavadas em lagrimas, e agora passeavam em rancho pela Alameda ou chalaceavam ao balcão das lojas...

Voltava para casa mais triste,—e a sua longa noite começava, infindavel. Tentava lêr; mas ao fim [535] das dez primeiras linhas bocejava de tedio e de fadiga. Ás vezes escrevia ao conego. Ás nove horas tomava chá; e depois era um passear sem fim pelo quarto, fumando maços de cigarros, parando á janella a olhar a negrura da noite, lendo aqui e além uma noticia ou um annuncio do Popular e recomeçando a passear com bocejos tão cavos que a criada os ouvia na cozinha.

Para entreter estas noites melancolicas, e por um excesso de sensibilidade ociosa, tentára fazer versos, pondo o seu amor e a historia dos dias felizes nas formulas conhecidas da saudade lyrica:


Lembras-te d'esse tempo da delicias,
Ó anjo feiticeiro, Amelia amada,
Quando tudo eram risos e ventura
E a vida nos corria socegada?

Lembras-te d'essa noite de poesia
Em que a lua brilhava pelos céos,
E nós unindo as almas, ó Amelia,
Erguemos nossa prece para Deus?...


Mas a despeito de todos os esforços nunca passára d'estas duas quadras—apesar de as ter produzido com uma facilidade promettedora—como se o seu sêr contivesse apenas estas duas gottas isoladas de poesia, e, soltas ellas á primeira pressão, nada mais restasse senão a sêcca prosa do temperamento carnal.

E esta existencia varia relaxára-lhe tão subtilmente todo o machinismo da vontade e da acção, [536] que qualquer trabalho que lhe pudesse encher a fastidiosa concavidade das horas infindaveis era-lhe odioso como o peso d'um fardo injusto. Preferia ainda os tedios da ociosidade aos tedios da occupação. A não serem os deveres estrictos que elle não podia desleixar sem escandalo e sem censura—desembaraçára-se, pouco a pouco, de todas as praticas do zelo interior: nem a oração mental, nem as visitas regulares ao Santissimo, nem as meditações espirituaes, nem o rosario á Virgem, nem a leitura á noite do Breviario, nem o exame de consciencia—todas estas obras da devoção, estes meios secretos de santificação progressiva substituia-os pelos infindaveis passeios pelo quarto, do lavatorio á janella, e por maços de cigarros fumados até ao negro dos dedos. A missa, pela manhã, era rapidamente engorolada; o serviço da parochia feito com surdas revoltas de impaciencia; tornára-se consummadamente o Indignus sacerdos dos ritualistas; e tinha na sua ampla totalidade os trinta e cinco defeitos e os sete meios defeitos que os theologos attribuem ao mau padre.

Só lhe restava através da sua sentimentalidade um appetite tremendo. E como a cozinheira era excellente, e a snr.a D. Maria da Assumpção, antes da sua partida para a Vieira, lhe deixára um fornecimento de cento e cincoenta missas a cruzado—banqueteava-se, tratando-se a gallinha e a geleia, regando-se d'um vinho picante da Bairrada que o padre-mestre lhe escolhera. E alli ficava á mesa, horas esquecidas, [537] de perna esticada, fumando sobre o café, e lamentando não ter á mão a sua Ameliasita...

—Que fará ella por lá, a pobre Ameliasita! pensava, espreguiçando-se com tedio e com langor.


A pobre Ameliasita, na Ricoça, amaldiçoava a sua vida.

Logo durante a jornada no char-à-banc D. Josepha lhe fizera tacitamente sentir que d'ella não tinha a esperar nem a antiga amizade, nem o perdão do escandalo... E assim foi, quando se installaram. A velha tornou-se intratavel: era todo um modo cruel de abandonar o tu, de a tratar por menina; uma recusa rispida se Amelia lhe queria arranjar a almofada ou aconchegal-a no chale; um silencio reprehensivo quando ella lhe passava o serão no quarto, costurando; e a todo o momento allusões suspiradas ao triste encargo que Deus lhe mandava no fim dos seus dias...

Amelia, comsigo, accusava o parocho: elle promettera-lhe que a madrinha seria toda caridade, toda cumplicidade; entregava-a por fim a uma semelhante ferocidade de velha virgem devota!...

Quando se viu n'aquelle casarão da Ricoça, n'um quarto regelado, pintado a côr de canario, lugubremente mobilado com uma cama de docel e duas cadeiras de couro, chorou toda a noite com a cabeça, enterrada no travessseiro—torturada por um cão que debaixo das janellas, estranhando sem duvida [538] as luzes e o movimento na casa, uivou até de madrugada.

Ao outro dia desceu á quinta a vêr os caseiros. Era talvez boa gente com quem podia distrahir-se. Encontrou uma mulher, alta e lugubre como um cypreste, carregada de luto: um grande lenço negro tingido, muito puxado para a testa, dava-lhe um ar de farricoco; e a sua voz gemebunda tinha uma tristeza de dobre a finados. O homem pareceu-lhe ainda peor, semelhante a um ourango-tango, com duas orelhas enormes muito despegadas do craneo, uma saliencia bestial de queixo, as gengivas deslavadas, um corpo desengonçado de tisico, de peito mettido para dentro. Abalou bem depressa, foi vêr o pomar: andava maltratado; as ruasitas estavam invadidas por um hervaçal humido; e a sombra das arvores muito juntas, n'um terreno baixo, cercado d'altos muros, dava uma sensação doentia.

Era ainda preferivel passar os seus dias mettida no casarão; dias infindaveis em que as horas se iam movendo com o vagar fastidioso d'um desfilar funerario.

O seu quarto era na frente; e pelas duas janellas recebia a impressão triste da paizagem que se estendia defronte, uma ondulação monotona de terras estereis com alguma magra arvore aqui e além, um ar abafado em que parecia errar constantemente a exhalação de paues proximos e de baixas humidas, e a que nem o sol de setembro dissipava o tom sezonatico. [539]

Logo pela manhã ia ajudar a levantar D. Josepha, accommodal-a no canapé; depois vinha costurar para ao pé d'ella—como outr'ora na rua da Misericordia para ao pé da mãi; mas agora em logar das boas «cavaqueiras» tinha só o silencio intratavel da velha e a sua ronqueira incessante. Pensára em fazer vir o seu piano da cidade; mas, apenas em tal fallou, a velha exclamou com azedume:

—A menina está doida... Não tenho saude para tocatas! Ora o desproposito!

A Gertrudes tambem não lhe fazia companhia; nas horas em que não estava ao pé da velha, ou na cozinha, desapparecia; era justamente d'aquella freguezia, e passava o seu tempo pelos casaes, palrando com as antigas visinhas.

A peor hora era ao anoitecer. Depois de rezar o seu rozario, ficava junto á janella olhando estupidamente as gradações da luz poente; todos os campos pouco a pouco se perdiam no mesmo tom pardo; um silencio parecia descer, pousar sobre a terra; depois uma primeira estrellinha tremeluzia e brilhava; e diante d'ella era então só uma massa inerte de sombra muda até ao horisonte, aonde ainda ficava um momento uma delgada tira côr de laranja desbotada. O seu pensamento, sem nenhum tom de luz ou contorno de objecto em redor que o prendesse, ia muito saudoso para longe, para a Vieira; áquella hora a mãi e as amigas recolhiam do passeio na praia; já todas as redes estavam apanhadas; já pelos palheiros começam a apparecer as luzes; é a hora do chá, [540] dos quinos alegres, quando os rapazes da cidade vão em rancho pelas casas amigas, com uma viola e uma flauta, improvisando soirées. E ella alli, só!...

Era então necessario deitar a velha, rezar com ella e com a Gertrudes o terço. Accendiam depois o candieiro de latão, pondo-lhe diante uma velha chapeleira para dar sombra ao rosto da doente; e todo o serão, no silencio lugubre, apenas se ouvia o rumor do fuso da Gertrudes que fiava agachada a um canto.

Antes de se deitarem, iam trancar todas as portas, n'um medo constante de ladrões; e então começava para Amelia a hora dos terrores supersticiosos. Não podia adormecer, sentido ao pé a negrura d'aquellas antigas salas deshabitadas e em redor o tenebroso silencio dos campos. Ouvia ruidos inexplicaveis: era o soalho do corredor que estalava, sob passadas mulplicadas; era a luz da vela que de repente se dobrava como sob um halito invisivel; ou a distancia, para os lados da cozinha, o baque surdo d'um corpo. Accumulava então as orações, encolhida debaixo da roupa; mas, se adormecia, as visões do pesadêlo continuavam-lhe os terrores da vigilia. Uma vez acordára de repente, a uma voz que dizia, gemendo, por traz da alta barra da cama:—Amelia, prepara-te, o teu fim chegou! Espavorida, em camisa, atravessou correndo a casa, foi refugiar-se na cama da Gertrudes.

Mas na noite seguinte a voz sepulchral voltou quando ella ia adormecer: Amelia, lembra-te dos teus peccados! Prepara-te, Amelia! Deu um grito, desmaiou. [541] Felizmente a Gertrudes, que ainda se não deitára, correu áquelle ai agudo que cortára o silencio do casarão. Achou-a estirada ao través do leito, com os cabellos soltos da rede rojando no chão, as mãos geladas e como mortas. Desceu a acordar a mulher do caseiro, e até de madrugada foi uma azafama para a chamar á vida. Desde esse dia a Gertrudes dormia ao pé d'ella—e a voz não tornou a ameaçal-a por traz da barra.

Mas, de noite e de dia, não a deixou mais a idéa da morte e o pavor do inferno. Por esse tempo, um vendedor ambulante d'estampas passou pela Ricoça; e a snr.a D. Josepha comprou-lhe duas lithographias—a Morte do Justo e a Morte do Peccador.

—Que é bom que cada um tenha o exemplo vivo diante dos olhos, disse ella.

Amelia não duvidou ao principio que a velha, que contava morrer no mesmo apparato de gloria com que expirava o Justo da estampa, lhe quizera mostrar a ella, a peccadora, a scena pavorosa que a esperava. Odiou-a por aquella «picardia». Mas a sua imaginação aterrada não tardou a dar á compra da estampa outra explicação: era Nossa Senhora que alli mandára o vendedor de pinturas, para lhe mostrar ao vivo na lithographia da Morte do Peccador o espectaculo da sua agonia: e estava então certa que tudo seria assim, traço por traço—o seu anjo da guarda fugindo aos soluços; Deus-Padre desviando o rosto d'ella com repugnancia; o esqueleto da morte rindo ás gargalhadas; e demonios de côres rutilantes, [542] com todo um arsenal de torturas, apoderando-se d'ella, uns pelas pernas, outros pelos cabellos, arrastando-a com uivos de jubilo para a caverna chammejante toda abalada da tormenta de rugidos que solta a Eterna Dôr... E ella podia vêr ainda, no fundo dos céos, a grande balança—com um dos pratos muito alto onde as suas orações não pesavam mais que uma penna de canario, e o outro prato cahido, de cordas retesadas, sustentando a enxerga da cama do sineiro e as suas toneladas de peccado.

Cahiu então n'uma melancolia hysterica que a envelhecia; passava os dias suja e desarranjada, não querendo dar cuidado ao seu corpo peccador; todo o movimento, todo o esforço lhe repugnava; as mesmas orações lhe custavam, como se as julgasse inuteis; e tinha atirado para o fundo d'uma arca o enxoval que andava a costurar para o filho—porque o odiava, aquelle sêr que ella sentia mexer-se-lhe já nas entranhas e que era a causa da sua perdição. Odiava-o—mas menos que o outro, o parocho que lh'o fizera, o padre malvado que a tentára, a estragára, a atirára ás chammas do inferno! Que desespero quando pensava n'elle! Estava em Leiria socegado, comendo bem, confessando outras, namorando-as talvez—e ella alli sósinha, com o ventre condemnado e enfartado do peccado que elle lá depuzera, ia-se afundindo na perdição sempiterna!

Decerto esta excitação a teria matado—se não fosse o abbade Ferrão que começára então a vir vêr muito regularmente a irmã do amigo conego. [543]

Amelia ouvira fallar muitas vezes n'elle na rua da Misericordia; dizia-se lá que o Ferrão tinha «idéas exquisitas»: mas não era possivel recusar-lhe nem a virtude da vida nem a sciencia de sacerdote. Havia muitos annos que era alli abbade; os bispos tinham-se succedido na diocese, e elle alli ficára esquecido n'aquella freguezia pobre, de congrua atrazada, n'uma residencia onde chovia pelos telhados. O ultimo vigario geral, que nunca dera um passo para o favorecer, dizia-lhe todavia, liberal de palavriado:

—Vossê é um dos bons theologos do reino. Vossê está predestinado por Deus para um bispado. Vossê ainda apanha a mitra. Vossê ha de ficar na historia da Igreja portugueza como um grande bispo Ferrão!

—Bispo, senhor vigario geral! Isso era bom! Mas era necessario que eu tivesse o arrojo d'um Affonso d'Albuquerque ou d'um D. João de Castro, para aceitar aos olhos de Deus semelhante responsabilidade!

E alli ficára, entre gente pobre, n'uma aldeia de terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e uma chavena de leite, com uma batina limpa onde os remendos faziam um mappa, precipitando-se a uma meia legua por um temporal desfeito se um parochiano tinha uma dôr de dentes, passando uma hora a consolar uma velha a quem tinha morrido uma cabra... E sempre de bom humor, sempre com um cruzado no fundo do bolso dos calções para uma necessidade do seu visinho, grande amigo de todos os rapazitos a quem fazia botes de cortiça, e não duvidando [544] parar, se encontrava uma rapariga bonita, o que era raro na freguezia, e exclamar: «Linda moça, Deus a abençôe!»

E todavia, em novo, a pureza dos seus costumes era tão celebre, que lhe chamavam «a donzella».

De resto, padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas d'estação aos pés do Santissimo Sacramento; cumprindo com uma felicidade fervente as menores praticas da vida devota; purificando-se para os trabalhos do dia com uma profunda oração mental, uma meditação de fé, d'onde a sua alma sahia mais agil, como d'um banho fortificante; preparando-se para o somno com um d'estes longos e piedosos exames de consciencia, tão uteis, que Santo Agostinho e S. Bernardo faziam do mesmo modo que Plutarcho e Seneca, e que são a correcção laboriosa e subtil dos pequenos defeitos, o aperfeiçoamento meticuloso da virtude activa, emprehendido com um fervor de poeta que revê um poema querido... E todo o tempo que tinha vago, abysmava-se n'um cahos de livros.

Tinha só um defeito o abbade Ferrão: gostava de caçar! Cohibia-se, porque a caça tira muito tempo, e é sanguinario matar uma pobre ave que anda azafamada pelos campos nos seus negocios domesticos. Mas nas claras manhãs d'inverno, quando ainda ha orvalho nas giestas, se via passar um homem d'espingarda ao hombro, o passo vivo, seguido do seu perdigueiro—iam-se-lhe os olhos n'elle... Ás vezes [545] porém, a tentação vencia: agarrava furtivamente a espingarda, assobiava á Janota, e com as abas do casacão ao vento, lá ia o theologo illustre, o espelho de piedade, através de campos e valles... E d'ahi a pouco—pum... pum! Uma codorniz, uma perdiz em terra! E lá voltava o santo homem com a espingarda debaixo do braço, os dois passaros na algibeira, cosendo-se com os muros, rezando o seu rosario á Virgem, e respondendo aos bons dias da gente pelo caminho com os olhos baixos e o ar muito criminoso.

O abbade Ferrão, apesar do seu aspecto «gêbo» e do seu grande nariz, agradou a Amelia, logo desde a primeira visita á Ricoça; e a sua sympathia cresceu, quando viu que D. Josepha o recebia com pouco alvoroço, apesar do respeito que o mano conego tinha pela sciencia do abbade.

A velha, com effeito depois de ter estado só com elle n'uma pratica d'horas, condemnára-o com uma unica palavra, na sua auctoridade de velha devota experiente:

—É relaxado!

Não se tinham realmente comprehendido. O bom Ferrão, tendo vivido tantos annos n'aquella parochia de quinhentas almas, as quaes cahiam todas, de mães a filhas, no mesmo molde de devoção simples a Nosso Senhor, Nossa Senhora e S. Vicente, patrono da freguezia, tendo pouca experiencia de confissão, encontrava-se subitamente diante d'uma alma complicada de devota de cidade, d'um beaterio caturra [546] e atormentado; e ao ouvir aquella extraordinaria lista de peccados mortaes, murmurava espantado:

—É estranho, é estranho...

Percebera bem ao principio que tinha diante de si uma d'essas degenerações morbidas do sentimento religioso, que a theologia chama Doença dos escrupulos—e de que na sua generalidade estão affectadas hoje todas as almas catholicas; mas depois, a certas revelações da velha, receou estar realmente em presença d'uma maniaca perigosa; e instinctivamente, com o singular horror que os sacerdotes têm pelos doidos, recuou a cadeira.

Pobre D. Josepha! Logo na primeira noite em que chegára á Ricoça (contava ella), ao começar o rosario a Nossa Senhora, lembrára-lhe de repente que lhe esquecera o saiote de flanella escarlate, que era tão efficaz nas dôres das pernas... Trinta e oito vezes de seguida recomeçára o rosario, e sempre o saiote escarlate se interpunha entre ella e Nossa Senhora!... Então desistira, d'exhausta, d'esfalfada. E immediatamente sentira dôres vivas nas pernas, e tivera como uma voz de dentro a dizer-lhe que era Nossa Senhora por vingança a espetar-lhe alfinetes nas pernas...

O abbade pulou:

—Oh, minha senhora!...

—Ai, não é tudo, senhor abbade!

Havia outro peccado que a torturava: quando rezava, às vezes, sentia vir a expectoração; e, tendo ainda o nome de Deus ou da Virgem na bôca, tinha [547] de escarrar; ultimamente engulia o escarro, mas estivera pensando que o nome de Deus ou da Virgem lhe descia d'embrulhada para o estomago e se ia misturar com as fezes! Que havia de fazer?

O abbade, d'olhar esgazeado, limpava o suor da testa.

Mas isto não era o peor: o grave era, que na noite antecedente estava toda socegada, toda em virtude, a rezar a S. Francisco Xavier—e de repente, nem ella soube como, põe-se a pensar como seria S. Francisco Xavier nú em pêllo!

O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Emfim, vendo-a a olhar anciosa para elle, á espera das suas palavras e dos seus conselhos, disse:

—E ha muito que sente esses terrores, essas duvidas...?

—Sempre, senhor abbade, sempre!

—E tem convivido com pessoas que, como a senhora, são sujeitas a essas inquietações?

—Todas as pessoas que conheço, duzias d'amigas, todo o mundo... O Inimigo não me escolheu só a mim... A todos se atira...

—E que remedio dava a essas anciedades d'alma...?

—Ai, senhor abbade, aquelles santos da cidade, o senhor parocho, o snr. Silverio, o snr. Guedes, todos, todos nos tiravam sempre d'embaraços... E com uma habilidade, com uma virtude...

O abbade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se [548] triste, pensando que por todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem assim voluntariamente o rebanho n'aquellas trevas d'alma, mantendo o mundo dos fieis n'um terror abjecto do céo, representando Deus e os seus santos como uma côrte que não é menos corrompida nem melhor que a de Caligula e dos seus libertos.

Quiz então levar áquelle nocturno cerebro de devota, povoado de phantasmagorias, uma luz mais alta e mais larga. Disse-lhe que todas as suas inquietações vinham da imaginação torturada pelo terror d'offender a Deus... Que o Senhor não era um amo feroz e furioso, mas um pai indulgente e amigo... Que é por amor que é necessario servil-o, não por medo... Que todos esses escrupulos, Nossa Senhora a enterrar alfinetes, o nome de Deus a cahir no estomago, eram perturbações da razão doente. Aconselhou-lhe confiança em Deus, bom regimen para ganhar forças. Que não se cansasse em orações exageradas...

—E quando eu voltar, disse emfim erguendo-se e despedindo-se, continuaremos a conversar sobre isto, e havemos de serenar essa alma.

—Obrigada, senhor abbade, respondeu a velha sêccamente.

E apenas a Gertrudes d'ahi a pouco entrou a trazer-lhe a botija para os pés, D. Josepha exclamou, toda indignada, quasi choramingando:

—Ai, não presta p'ra nada, não presta p'ra nada!... [549] Não me percebeu... É um tapado... É um pedreiro-livre, Gertrudes! Que vergonha n'um sacerdote do Senhor...

Desde esse dia não tornou a revelar ao abbade os peccados medonhos que continuava a commetter; e quando elle, por dever, quiz recomeçar a educação da sua alma, a velha declarou-lhe sem rodeios que, como se confessava com o senhor padre Gusmão, não sabia se seria delicado receber d'outro a direcção moral...

O abbade fez-se vermelho, respondeu:

—Tem razão, minha senhora, tem razão, deve-se ter muita delicadeza n'essas coisas...

Sahiu. E d'ahi por diante, depois de ter entrado no quarto a saber-lhe da saude, de ter fallado do tempo, da estação, das doenças que iam, d'alguma festa na igreja,—apressava-se em se despedir e ir para o terraço conversar com Amelia.

Vendo-a sempre tão tristonha, interessára-se por ella; para Amelia, as visitas do abbade eram uma distracção, n'aquella solidão da Ricoça; e assim se iam familiarisando, a ponto que nos dias em que elle regularmente vinha, Amelia punha um mantelete e ia pelo caminho dos Poyaes esperal-o até junto á casa do ferrador. As conversas do abbade, fallador incansavel, entretinham-na, tão differentes dos mexericos da rua da Misericordia,—como o espectaculo d'um largo valle com arvores, plantações, aguas, pomares e rumor de lavouras, recreia os olhos habituados ás quatro paredes caiadas d'uma trapeira [550] da cidade. Tinha com effeito uma d'estas conversações semelhantes aos jornaes semanaes de recreio, o Thesouro das familias ou as Leituras para serões, em que de ha tudo—doutrina moral, historias de viagens, anecdotas dos grandes homens, dissertações sobre a lavoura, citação d'uma boa chalaça, traços sublimes da vida d'um santo, um verso aqui e além, e até receitas, como uma muito util que deu a Amelia para lavar as flanellas sem encolherem. Só era monotono quando fallava da sua familia parochiana, dos casamentos, baptisados, doenças, questões, ou quando começava as suas historias de caça.

—Uma vez, minha rica senhora, ia eu pelo Corrego das Tristes, quando uma revoada de perdizes...

Amelia sabia que, pelo menos uma hora, tudo seriam façanhas da Janota, pontarias fabulosas contadas em mimica, com imitações de vozes de passaros, e pum, pum de fusilaria. Ou então eram descripções das caçadas selvagens que elle lêra com gula—a caça ao tigre do Nepal, ao leão d'Argelia e ao elephante, historias ferozes que arrastavam a imaginação da rapariga para longe, para os paizes exoticos onde a herva é alta como os pinheiros, o sol queima como um ferro em braza, e entre cada ramagem reluzem os olhos d'uma fera... E depois, a proposito de tigres e de malaios, lembrava-lhe uma historia curiosa de S. Francisco Xavier, e eil-o lançado, o terrivel palrador, na descripção dos feitos da Asia, das armadas da India e das estocadas famosas do cerco de Diu! [551]

Foi mesmo um d'esses dias, no pomar, em que o abbade, tendo começado por enumerar as vantagens que o conego tiraria de transformar o pomar em terra de lavoura, acabára por contar perigos e valores dos missionarios da India e do Japão—que Amelia, então em toda a intensidade dos seus terrores nocturnos, fallou dos ruidos que ouvia na casa e dos sobresaltos que lhe davam.

—Oh, que vergonha! disse o abbade rindo; uma senhora da sua idade ter medo de papões...

Ella então, attrahida por aquella bondade do senhor abbade, contou-lhe as vozes que ouvia de noite por detraz da barra da cama.

O abbade pôz-se sério:

—Minha senhora, isso são imaginações que deve a todo o custo dominar... Decerto tem havido prodigios no mundo, mas Deus não se põe assim a fallar a qualquer, por detraz das barras das camas, nem permitte ao demonio que o faça... Essas vozes, se as ouve, e se os seus peccados são grandes, não vêm de detraz da cama, vêm-lhe de si mesmas, da sua consciencia... E póde então fazer dormir ao pé de si a Gertrudes, e cem Gertrudes, e todo o batalhão de infanteria, que as ha de continuar a ouvir... Havia de as ouvir, mesmo que fosse surda. O que é necessario é calmar a consciencia que reclama penitencia e purificação...

Tinham subido ao terraço, fallando assim: e Amelia sentára-se fatigada n'um dos bancos de pedra que alli havia, e ficára a olhar a quinta ao longe, [552] os tectos dos curraes, a longa rua de loureiros, a eira, e a distancia os campos que se succediam planos e avivados do tom humido que lhes dera a chuva ligeira da manhã: agora a tarde estava d'uma placidez clara, sem vento, com grandes nuvens paradas que o sol do poente tocava de vivos côr de rosa tenro... Pensava n'aquellas palavras tão sensatas do abbade, no descanso que gozaria se cada peccado que lhe pesava na alma como um penedo se tornasse ligeiro e se dissipasse sob a acção da penitencia. E vinham-lhe desejos de paz, d'um repouso igual á quietação dos campos que se estendiam diante d'ella.

Um passaro cantou, depois calou-se; e recomeçou d'ahi a um momento com um trinado tão vibrante, tão alegre, que Amelia sorria, escutando-o.

—É um rouxinol...

—Os rouxinoes não cantam a esta hora, disse o abbade. É um melro... Ahi está um que não tem medo de phantasmas, nem ouve vozes... Olha que enthusiasmo, o maganão!

Era com effeito um gorgear triumphante, um delírio de melro feliz, que dera de repente a todo o pomar uma sonoridade festiva.

E Amelia, diante d'aquelle chilrear glorioso d'um passaro contente, subitamente, sem razão, n'um d'estes abalos nervosos que vem às mulheres hystericas, rompeu a chorar.

—Então, que é isso, que é isso? fez o abbade muito surprehendido. [553]

Tomou-lhe a mão, com uma familiaridade de velho e d'amigo, calmando-a.

—Que infeliz que sou!... murmurou ella aos soluços.

Elle então muito paternal:

—Não tem razão para o ser... Sejam quaes forem as afflicções, as inquietações, uma alma christã tem sempre a consolação á mão... Não ha peccado que Deus não perdôe, nem dôr que não calme, lembre-se d'isso... O que não deve é guardar em si o seu desgosto... É isso que a suffoca, que a faz chorar... Se eu lhe posso valer, socegal-a, é procurar-me...

—Quando? disse ella toda desejosa já de se refugiar na protecção d'aquelle santo homem.

—Quando quizer, disse elle rindo. Eu não tenho horas para consolar... A igreja está sempre aberta, Deus está sempre presente...

Ao outro dia cedo, antes da hora em que a velha se erguia, Amelia foi á residencia; e durante duas horas esteve prostrada diante do pequeno confessionario de pinho—que o bom abbade por suas mãos pintára d'azul escuro, com extraordinarias cabecinhas d'anjos que em logar d'orelhas tinham azas, uma obra d'alta arte de que elle fallava com uma secreta vaidade.



XXIII



O padre Amaro acabára de jantar, e fumava, com os olhos no tecto, para não vêr o carão chupado do coadjutor que havia meia hora alli estava, immovel e espectral, fazendo cada dez minutos uma pergunta que cahia no silencio da sala como os quartos melancolicos que dá de noite um relogio de cathedral.

—O senhor parocho já não é assignante da Nação?

—Não senhor, leio o Popular.

O coadjutor recahiu no silencio, começando logo a colligir laboriosamente as palavras para uma nova pergunta. Soltou-a emfim, com lentidão:

—Não se tornou a saber d'aquelle infame que escreveu o Communicado? [556]

—Não senhor, foi para o Brazil.

A criada entrou, n'este momento, dizendo que «estava alli uma pessoa que queria fallar ao senhor parocho». Era a sua maneira d'annunciar a presença de Dionysia na cozinha.

Havia semanas que ella não apparecia—e Amaro, curioso, sahiu logo da sala fechando a porta sobre si, e chamou a matrona ao patamar.

—Grande novidade, senhor parocho! E vim a correr, que é sério. Está cá o João Eduardo!

—Ora essa! exclamou o parocho. E eu justamente a fallar d'elle! É extraordinario! Olha que coincidencia...

—É verdade, vi-o hoje. Fiquei banzada... E já estou informada de tudo. O homem está mestre dos filhos do Morgadinho.

—Que Morgadinho?

—O Morgadinho dos Poyaes... Se vive lá, ou se vai pela manhã e vem á noite, isso não sei. O que sei é que voltou... E janota, fato novo... Eu entendi que devia avisar, porque póde estar certo que elle, mais dia menos dia, dá pela Ameliasinha lá na Ricoça... É no caminho p'ra casa do Morgado... Que lhe parece?...

—Forte besta! rosnou Amaro com rancor. Quando não serve é que apparece. Então por fim não foi para o Brazil?

—Pelos modos, não... Que a sombra d'elle não era, era elle mesmo em carne e osso... A sahir da loja do Fernandes por signal, e todo peralta... Sempre [557] é bom avisar a rapariga, senhor parocho, que se não vá ella plantar de janella...

Amaro deu-lhe as duas placas que ella esperava—e d'ahi a um quarto d'hora, desembaraçado do coadjutor, ia no caminho da Ricoça.


Batia-lhe forte o coração quando avistou o casarão amarello, pintado de novo, o largo terraço lateral em linha com o muro do pomar, ornado d'espaço a espaço no parapeito de vasos nobres de pedra. Ia emfim, depois de tão longas semanas, vêr a sua Ameliasinha! E já se alvoroçava á idéa das exclamações apaixonadas com que ella lhe cahiria nos braços.

Ao rez do chão eram as cavallariças, do tempo da familia morgada que outr'ora alli habitára, agora abandonadas ás ratazanas e aos tortulhos, recebendo a luz por estreitas janellas gradeadas que quasi desappareciam sob camadas de teias de aranha; entrava-se por um immenso pateo escuro, onde havia longos annos se acastellava a um canto toda uma montanha de pipas vazias; e o lance d'escadaria nobre, que levava aos aposentos, era á direita, flanqueado de dois leõesinhos de pedra, benignos e somnolentos.

Amaro subiu até um sotão de tecto de carvalho apainelado, sem mobilia, com a metade do soalho coberta de feijão sêcco. [558]

E, embaraçado, bateu as palmas.

Uma porta abriu-se. Amelia appareceu um instante, toda despenteada e em saia branca; deu um gritinho, bateu com a porta—e o parocho sentiu-a fugir para o interior do casarão. Ficou muito desconsolado no meio do salão, com o seu guardasol debaixo do braço, pensando na boa familiaridade com que entrava na rua da Misericordia—que até pareciam as portas abrir-se de si mesmo e o papel das paredes clarear-se d'alegria.

Ia bater as palmas outra vez, já quesilado, quando a Gertrudes appareceu.

—Oh, senhor parocho! Entre, senhor parocho! Ora até que emfim! Minha senhora, é o senhor parocho!—gritava, na alegria de vêr emfim uma visita querida, um amigo da cidade, n'aquelle desterro da Ricoça.

Levou-o logo para o quarto de D. Josepha, ao fundo da casa, um quarto enorme, onde, n'um pequeno canapé perdido a um canto, a velha passava os dias encolhida no seu chale, com os pés embrulhados n'um cobertor.

—Oh, D. Josepha! Como está? Como está?

Ella não pôde responder, tomada d'um accesso de tosse que lhe dera a commoção da visita.

—Como vê, senhor parocho, murmurou emfim muito fraca. Para aqui vou, arrastando esta velhice. E vossa senhoria? Porque não tem apparecido?

Amaro desculpou-se vagamente com os afazeres da Sé. E comprehendia agora, ao vêr aquella face [559] amarella e cavada, com uma medonha touca de rendas negras, que tristes horas Amelia alli devia passar. Perguntou por ella; avistára-a de longe, mas ella deitára a fugir...

—É que não estava decente para apparecer, disse a velha. Hoje foi dia de barrela.

Amaro quiz então saber em que se entretinham, como passavam os dias n'aquella solidão...

—Eu para aqui estou. A pequena para ahi anda.

Depois de cada palavra, parecia abater-se n'uma fadiga e a sua ronqueira crescia.

—Então não se tem dado bem com a mudança, minha senhora?

Ella disse que não, n'um movimento de cabeça.

—Deixe fallar, senhor parocho, acudiu a Gertrudes que ficára de pé, ao lado do canapé, gozando a presença do senhor parocho.—Deixe fallar... É que a senhora exagera tambem... Levanta-se todos os dias, dá o seu passeinho até á sala, come a sua azita de frango... Temol-a aqui, temol-a arribada... É o que diz o senhor abbade Ferrão, a saude foge a toda a brida e para voltar vem a passo...

A porta abriu-se. Amelia appareceu, muito escarlate, com o seu antigo robe-de-chambre de merino rôxo, o cabello arranjado á pressa.

—Desculpe, senhor parocho, balbuciou, mas hoje tem sido um dia de balburdia...

Elle apertou-lhe a mão gravemente: e ficaram calados, como se estivessem separados pela distancia d'um deserto. Ella não tirava os olhos do chão, enrolando [560] com a mão tremula uma ponta da manta de lã que trazia solta pelos hombros. Amaro achava-a mudada, um pouco inchada das faces, com uma ruga de velhice aos cantos da bôca. Para romper aquelle silencio estranho, perguntou-lhe tambem se se dava bem...

—Para aqui vou indo... É um pouco triste isto. É como diz o senhor abbade Ferrão, é muito grande para a gente se sentir em familia.

—Ninguem veio para aqui para se divertir, disse a velha sem descerrar as palpebras, com uma voz sêcca que perdera toda a fadiga.

Amelia baixou a cabeça, fazendo-se pallida.

Amaro então, comprehendendo n'um relance que a velha torturava Amelia, disse com muita severidade:

—É verdade, não foi para se divertirem... Mas tambem não foi para se entristecerem de proposito... Pôr-se uma pessoa de mau humor e fazer aos outros a vida negra, é uma falta horrivel de caridade; não ha peccado peor aos olhos do Senhor... É indigno da graça de Deus quem tal pratica...

A velha rompeu a choramingar, muito excitada:

—Ai, o que Deus me guardou para os ultimos annos da vida...

Gertrudes amimou-a. Então, senhora, que até lhe fazia peor estar a affligir-se assim... Ora o disparate! Tudo se havia de remediar com a ajuda de Deus. Saude não havia de faltar, nem alegria... [561]

Amelia chegára-se á janella, decerto para esconder tambem as lagrimas que lhe saltavam dos olhos. E o parocho, consternado com a scena, começou a dizer que D. Josepha não estava supportando com a verdadeira resignação d'uma christã aquelles dias de doença... Nada escandalisava mais Nosso Senhor que vêr as creaturas revoltarem-se contra as dôres ou os encargos que elle mandava... Era insultar a justiça dos seus decretos...

—Tem razão, senhor parocho, tem razão, murmurou a velha muito contrita. Eu ás vezes nem sei o que digo... São coisas da doença.

—Bem, bem, minha senhora, é resignar-se e tratar de vêr tudo côr de rosa. É o sentimento que Deus mais aprecia. Eu comprehendo que é duro, estar para aqui enterrada...

—É o que diz o senhor abbade Ferrão, acudiu Amelia voltando da janella, a madrinha estranha... Assim arrancada aos habitos de tantos annos...

Notando então a citação repetida das palavras do abbade Ferrão, Amaro perguntou se elle costumava vir vêl-as...

—Ai, tem-nos feito muita companhia, disse Amelia. Vem quasi todos os dias.

—É um santo! exclamou a Gertrudes.

—Decerto, decerto, murmurou Amaro descontente d'um enthusiasmo tão vivo. Pessoa de muita virtude...

—De muita virtude, suspirou a velha. Mas...—Calou-se, não ousando decerto exprimir as suas [562] reservas de devota.—E exclamou n'uma supplica:—Ai, o senhor parocho é que devia vir por aqui, ajudar-me a levar esta cruz da doença...

—Hei de vir, minha senhora, hei de vir. É bom para a distrahir, para lhe dar as noticias... E a proposito, tive hontem carta do nosso conego.

Rebuscou na algibeira, leu alguns periodos da carta. O padre-mestre já tinha quinze banhos. A praia estava cheia de gente. A D. Maria passára doente com um furunculo. O tempo famoso. Todas as tardes grandes passeatas a vêr recolher as rêdes. A S. Joanneira, boa, mas fallando sempre na filha...

—Pobre mamã... choramingou Amelia.

Mas a velha não se interessava com as novidades, gemendo a sua ronqueira. Foi Amelia que perguntou pelos amigos de Leiria, pelo senhor padre Natario, pelo senhor padre Silverio...

Ia escurecendo já: a Gertrudes fôra preparar o candieiro. Amaro emfim ergueu-se:

—Pois, minha senhora, até outro dia. Esteja certa que hei de apparecer de vez em quando. E nada d'affligir... Agasalho, boa dieta, e a misericordia de Deus não a ha de abandonar...

—Não nos falte, senhor parocho, não nos falte!...

Amelia estendera-lhe a mão, para se despedir alli no quarto; mas Amaro gracejando:

—Se não lhe causa incommodo, menina Amelia, sempre é bom vir mostrar-me o caminho, que eu perco-me n'este casarão. [563]

Sahiram ambos. E apenas no salão, a que as tres largas vidraças davam ainda uma claridade:

—A velha faz-te a vida negra, filha, disse Amaro parando.

—Que mereço eu mais? respondeu ella baixando os olhos.

—Desavergonhada, eu lh'as cantarei!... Minha Ameliasinha, se soubesses o que me tem custado...

E fallando, ia abraçal-a pelo pescoço.

Mas ella recuou, toda perturbada.

—Que é isso? fez Amaro assombrado.

—O quê?

—Esse modo! Tu não me queres dar um beijo, Amelia? Tu estás doida?

Ella ergueu as mãos para elle, n'uma supplicação anciosa, fallando toda tremula:

—Não, senhor parocho, deixe-me! Isso acabou. Bem basta o que peccamos... Quero morrer na graça de Deus... Que nunca mais se falle em semelhante coisa!... Foi uma desgraça... Acabou-se... Agora o que quero é o socego de minha alma...

—Tu estás tola! Quem te metteu isso na cabeça? Ouve cá...

Foi para ella outra vez, com os braços abertos.

—Não me toque, pelo amor de Deus,—e vivamente recuou até á porta.

Elle olhou-a um momento, n'uma cólera muda.

—Bem, como queira, disse por fim. Em todo o caso, quero prevenil-a que o João Eduardo voltou, [564] que passa aqui todos os dias, e que é bom não se pôr de janella.

—Que me importa a mim o João Eduardo e os outros e tudo o que passou?...

Elle acudiu, trasbordando d'um sarcasmo amargo:

—Está claro, agora o grande homem é o senhor abbade Ferrão!

—Devo-lhe muito, é o que sei...

A Gertrudes n'este momento entrava com o candieiro accêso. E Amaro, sem se despedir d'Amelia, abalou, de guardachuva em riste, rilhando os dentes de raiva.


Mas a longa caminhada até á cidade calmou-o. Aquillo na rapariga por fim era apenas um accesso de virtude e d'escrupulos! Vira-se alli só n'aquelle casarão, amargurada pela velha, impressionada pelos palavrões do moralista Ferrão, longe d'elle, e tinha-lhe vindo aquella reacção de devota com os seus terrores do outro-mundo e appetites de innocencia... Chalaça! Se elle começasse a ir á Ricoça, n'uma semana reganhava todo o seu dominio... Ah, conhecia-a bem! Era só tocar-lhe, piscar-lhe o olho... Estava logo rendida.

Passou porém uma noite inquieta, desejando-a mais que nunca. E ao outro dia á uma hora marchou para a Ricoça, levando-lhe um ramo de rosas.

A velha ficou toda contente ao vêl-o. É que lhe [565] dava saude a presença do senhor parocho! E se não fosse a distancia havia de lhe pedir a esmola de vir todas as manhãs. Até depois d'aquella visitinha rezava com mais fervor...

Amaro sorria, distrahido, com os olhos cravados na porta.

—E a menina Amelia? perguntou por fim.

—Sahiu... Isso agora todas as manhãs é a passeata, disse a velha com azedume. Vai á residencia, é tôda do abbade...

—Ah! fez Amaro com um sorriso livido. Nova devoção, hein?... é pessoa de muitos meritos, o abbade.

—Ai, não presta, não presta! exclamou D. Josepha. Não me percebe. Tem idéas muito exquisitas. Não dá virtude...

—Homem de livros... disse Amaro.

Mas a velha erguera-se sobre o cotovêlo, e baixando a voz, com o magro carão accêso em odio:

—E aqui p'ra nós, a Amelia tem-se portado muito mal! Nunca lh'o hei de perdoar... Confessou-se ao abbade... É uma indelicadeza, sendo a confessada do senhor parocho, não tendo recebido de vossa senhoria senão favores... É uma ingrata, é uma traiçoeira!...

Amaro fizera-se pallido.

—Que me diz a senhora?

—A verdade! Que ella não o nega. Até se orgulha! É uma perdida, é uma perdida! Depois do favor que lhe estamos a fazer... [566]

Amaro disfarçou a indignação que o revolvia. Riu até. Era necessario não exagerar... Não havia ingratidão. Era uma questão de fé. Se a rapariga pensava que o abbade a podia dirigir melhor, tinha razão em se abrir com elle... O que todos queriam é que ella salvasse a sua alma... Que fosse pela direcção de fulano ou sicrano, isso não importava... E nas mãos do abbade estava bem.

E chegando vivamente a cadeira para o leito da velha:

—E então agora, todas as manhãs vai à residencia?

—Quasi todas... Que ella não ha de tardar, vai depois d'almoço, volta sempre a esta hora... Ai, tem-me causado isto um desgosto!...

Amaro deu um passeiosinho nervoso pelo quarto, e estendendo a mão á velha:

—Pois minha senhora, eu não me posso demorar, que vim de fugida... Até um dia cedo.

E sem escutar a velha, que lhe pedia com anciedade que ficasse para jantar—-desceu os degraus como uma pedra que rola, metteu furioso pelo caminho da residencia, ainda com o seu ramo na mão.

Esperava encontrar Amelia na estrada; e não tardou em a avistar quasi ao pé da casa do ferreiro, agachada ao pé do vallado, apanhando sentimentalmente florinhas silvestres.

—Que fazes tu aqui? exclamou, chegando junto d'ella. [567]

Ella ergueu-se, com um gritinho.

—Que fazes tu aqui!? repetiu.

Áquelle tu, e áquella voz colerica, ella poz rapidamente um dedo na bôca, assustada. O senhor abbade estava dentro da casa com o ferreiro...

—Ouve lá, disse Amaro com os olhos chammejantes, agarrando-lhe o braço—tu confessaste-te ao abbade?...

—P'ra que quer saber? Confessei... Não é vergonha nenhuma...

—Mas confessaste tudo, tudo? perguntou elle com os dentes cerrados de raiva.

Ella perturbou-se, e tratando-o ainda por tu:

—Foste tu que me disseste muitas vezes... Que era o maior peccado n'este mundo, esconder alguma coisa ao confessor!

—Bebeda! rugiu Amaro.

Os seus olhos devoravam-na. E, através da nevoa de cólera que lhe enchia o cerebro e lhe fazia latejar as veias na fronte, achava-a mais bonita, com umas redondezas em todo o corpo que ardia por abraçar, com uns labios vermelhos avivados pelo largo ar do campo que elle queria morder até ao sangue.

—Ouve, disse-lhe cedendo a uma invasão brutal do desejo. Ouve... Acabou-se, não me importa. Confessa-te ao diabo se te agrada... Mas has de ser a mesma para mim!

—Não, não! disse ella com força, desprendendo-se, prompta a fugir para casa do ferreiro. [568]

—Tu m'as pagarás, maldita!—rosnou o padre por entre dentes, voltando as costas, descendo o caminho com passadas de desesperado.

E não abrandou o passo até á cidade, levado de um impulso d'indignação que, sob aquella dôce paz d'um meio d'outono, lhe suggeria planos de vinganças ferozes. Chegou a casa esfalfado, ainda com o ramo na mão. Mas ahi, na solidão do quarto, veio-lhe pouco a pouco o sentimento da sua impotencia. Que lhe podia fazer por fim? Ir pela cidade dizer que ella estava gravida? Seria denunciar-se a si. Espalhar que estava amigada com o abbade Ferrão? Era absurdo: um velho de quasi setenta annos, d'uma fealdade de caricatura, com todo um passado de virtude santa... Mas perdel-a, não tornar a ter nos braços aquelle corpo de neve, não ouvir mais aquellas ternuras balbuciadas que lhe arrebatavam a alma para alguma coisa de melhor que o céo... Isso não!

E era possivel que ella, em seis ou sete semanas, tivesse assim esquecido tudo? N'aquellas longas noites na Ricoça, só na cama, não lhe viria uma recordação das manhãs no quarto do tio Esguelhas?... Decerto: elle sabia-o da experiencia de tantas confessadas que lhe tinham revelado afflictas a tentação muda e teimosa que não deixa a carne que uma vez peccou...

Não: devia perseguil-a, e por todos os modos soprar-lhe aquelle desejo que agora ardia n'elle mais alto e mais ruidoso. [569]

Passou a noite a escrever-lhe uma carta de seis paginas, absurda, cheia d'implorações apaixonadas, de argucias mysticas, de pontos d'exclamação e de ameaças de suicidio...

Mandou-a ao outro dia cedo, pela Dionysia. A resposta veio só á noite, por um rapazito da quinta. Com que sofreguidão rasgou o sobrescripto! Eram apenas estas palavras: «Peço-lhe que me deixe em paz com os meus peccados.»

Não desistiu: ao outro dia lá estava na Ricoça a visitar a velha. Amelia achava-se no quarto de D. Josepha, quando elle appareceu. Fez-se muito pallida; mas os seus olhos não deixaram a costura—durante a meia hora que elle alli ficou, ora n'um silencio sombrio acabrunhado para o fundo da poltrona, ora respondendo distrahidamente á tagarellice da velha, muito falladora essa manhã.

E na semana seguinte foi o mesmo: se o ouvia entrar fechava-se rapidamente no quarto: só vinha, se a velha mandava a Gertrudes dizer-lhe «que estava alli o senhor o parocho que a queria vêr». Ia então, estendia-lhe a mão, que elle achava sempre a escaldar—e tomando a sua eterna costura, junto da janella, ia picando o posponto com uma taciturnidade que desesperava o padre.

Tinha-lhe escripto outra carta. Ella não respondera.

Então jurava não voltar á Ricoça, desprezal-a,—mas depois de ter passado a noite, rolando-se pela cama sem poder dormir, com a mesma visão da [570] nudez d'ella cravada intoleravelmente no cerebro, lá partia de manhã para a Ricoça, córando quando o apontador das obras na estrada, que o via passar todos os dias, lhe tirava o seu boné d'oleado.

N'uma tarde que choviscava, ao entrar no casarão, dera com o abbade Ferrão que á porta abria o seu guardachuva.

—Olá, por aqui, senhor abbade! disse elle.

O abbade respondeu naturalmente:

—Em vossa senhoria é que não ha que estranhar, que vem por aqui todos os dias...

Amaro não se conteve; e tremendo de cólera:

—E que lhe importa ao senhor abbade se eu venho ou não? A casa é sua?

Aquella brutalidade tão injustificavel offendeu o abbade:

—Pois era melhor para todos que não viesse...

—E porque, senhor abbade? e porque?—gritou Amaro, perdido.

Então o bom homem estremeceu. Commettera, alli, a culpa mais grave do sacerdote catholico: o que sabia d'Amaro, dos seus amores, era em segredo de confissão; e era trahir o mysterio do sacramento, mostrar que desapprovava aquella insistencia no peccado. Tirou muito baixo o seu chapéo e disse humildemente:

—Tem vossa senhoria razão. Peço perdão do que disse, sem reflectir. Muito boas tardes, senhor parocho.

—Muito boas tardes, senhor abbade. [571]

Amaro não entrou na Ricoça. Voltou para a cidade sob a chuva que batia forte agora. E, apenas em casa, escreveu uma longa carta a Amelia, em que lhe contava a scena com o abbade, acabrunhando-o d'accusações—sobretudo de lhe trahir indirectamente o segredo da confissão. Como das outras, d'esta carta não veio resposta da Ricoça.

Então Amaro começou a acreditar que tanta resistencia não podia vir só do arrependimento e do terror do inferno... «Alli ha homem», pensou. E devorado d'um ciume negro principiou a rondar de noite a Ricoça; mas não viu nada; o casarão permanecia adormecido e apagado. Uma occasião, porém, ao aproximar-se do muro do pomar, sentiu adiante no caminho que desce dos Poyaes uma voz cantarolar sentimentalmente a valsa dos Dois mundos, e um ponto brilhante de charuto accêso adiantar-se na escuridão. Assustado, refugiou-se n'um casebre que desmantelava em ruinas do outro lado da estrada. A voz calou-se; e Amaro, espreitando, viu então um vulto que parecia embrulhado n'um chalemanta claro, parado, contemplando as janellas da Ricoça. Um furor de ciume apossou-se d'elle, e ia saltar e atacar o homem—quando o viu seguir tranquillamente ao comprido da estrada, de charuto alto, trauteando:


Ouves ao longe retumbar na serra
O som do bronze que nos causa horror...
[572]

Pela voz, pelo chale-manta, pelo andar tinha reconhecido João Eduardo. Mas teve a certeza que se um homem fallava de noite a Amelia ou entrava na quinta—não era decerto o escrevente. Todavia, receoso de ser descoberto, não tornou a rondar o casarão.


Era com effeito João Eduardo, que sempre que passava pela Ricoça, de dia ou de noite, parava um momento a olhar melancolicamente as paredes que ella habitava. Porque apesar de tantas desillusões, Amelia permanecera para o pobre rapaz a ella, a bem amada, a coisa mais preciosa da terra. Nem em Ourem, nem em Alcobaça, nem pelas estalagens onde errára, nem em Lisboa onde chegára como vem á praia uma quilha de barco naufragado, deixára um momento de a ter presente na alma e de se enternecer com as saudades d'ella. Durante esses dias tão amargos de Lisboa, os peores da sua vida, em que fôra fiel de feitos d'um cartorio obscuro, perdido n'aquella cidade que lhe parecia ter a vastidão d'uma Roma ou d'uma Babylonia e em que sentia o duro egoismo das multidões azafamadas, esforçava-se mesmo por desenvolver mais esse amor que lhe dava como a doçura d'uma companhia. Achava-se menos isolado, tendo sempre no espirito aquella imagem com quem travava dialogos imaginados, nos seus infindaveis passeios ao longo do Caes do [573] Sodré, accusando-a das tristezas que o envelheciam.

E esta paixão, sendo para elle como a indefinida justificação das suas miserias, tornava-o aos seus proprios olhos interessante. Era «um martyr de amor»; isto consolava-o, como o consolára nas suas primeiras desesperações considerar-se «uma victima das perseguições religiosas». Não era um pobre diabo banal a quem o acaso, a preguiça, a falta d'amigos, a sorte e os remendos do casaco mantêm fatalmente nas privações da dependencia: era um homem de grande coração, a quem uma catastrophe em parte amorosa e em parte politica, um drama domestico e social, forçára assim, depois de luctas heroicas, a viajar d'um a outro cartorio com um sacco de lustrina cheio d'autos. O destino tornára-o igual a tantos heroes que lera nas novellas sentimentaes... E o seu paletot coçado, os seus jantares a quatro vintens, os dias em que não tinha dinheiro para tabaco, tudo attribuia ao amor fatal d'Amelia e á perseguição d'uma classe poderosa, dando assim, por um instincto muito humano, uma origem grandiosa ás suas miserias triviaes... Quando via passar os que elle chamava os felizes—individuos batendo tipoia, rapazes que encontrava com uma linda mulher pelo braço, gente bem atabafada que se dirigia aos theatros, sentia-se menos desgraçado pensando que tambem elle possuia um grande luxo interior que era aquelle amor infeliz. E quando emfim por um acaso obteve a certeza d'um emprego [574] no Brazil, o dinheiro da passagem, idealisava a sua aventura banal d'emigrante, repetindo-se durante todo o dia que ia passar os mares, exilado do seu paiz por uma tyrannia combinada de padres e auctoridades e por ter amado uma mulher!

Quem lhe diria então, ao emmalar o seu fato no bahú de lata, que d'ahi a semanas estaria outra vez a meia legua d'esses padres e d'essas auctoridades, contemplando d'olho terno a janella d'Amelia! Fôra aquelle singular Morgadinho de Poyaes,—que não era nem Morgadinho nem de Poyaes, e apenas um ricaço excentrico de ao pé d'Alcobaça que comprára aquella velha propriedade dos fidalgos de Poyaes, e que com a posse da terra recebia do povo da freguezia a honra do titulo: fôra esse santo cavalheiro que o livrára dos enjôos no paquete e dos acasos da emigração. Encontrára-o casualmente no cartorio onde elle ainda trabalhava nas vesperas da viagem. O Morgadinho, cliente do velho Nunes, conhecia-lhe a historia, a façanha do Communicado, o escandalo no largo da Sé; e já de ha muito concebera por elle uma sympathia ardente.

O Morgadinho tinha com effeito por padres um odio maniaco, a ponto de não lêr no jornal a noticia d'um crime, sem decidir (ainda mesmo quando o culpado estava já sentenciado) que «no fundo devia d'haver na historia um sotaina». Dizia-se que este rancor provinha dos desgostos que lhe dera sua primeira mulher, devota celebre d'Alcobaça. Apenas viu João Eduardo em Lisboa e soube da viagem proxima, [575] teve immediatamente a idéa de o trazer para Leiria, installal-o nos Poyaes, e entregar-lhe a educação das primeiras letras dos seus dois pequenos como um insulto estridente feito a todo o clero diocesano. Imaginava de resto João Eduardo um impio; e isto convinha ao seu plano philosophico d'educar os rapazitos n'um «atheismo desbragado». João Eduardo aceitou, com as lagrimas nos olhos: era um salario magnifico que lhe vinha, uma posição, uma familia, uma rehabilitação estrondosa...

—Oh, senhor Morgado, nunca hei de esquecer o que faz por mim!...

—É p'ra meu gosto proprio!... É p'ra arreliar a canalha! E partimos ámanhã!

Em Chão de Maçãs, apenas desceu do wagon, exclamou logo para o chefe da estação que não conhecia João Eduardo, nem a sua historia:

—Cá o trago, cá o trago em triumpho! Vem p'ra quebrar a cara a toda a padraria... E se houver custas a pagar, sou eu que as pago!

O chefe da estação não estranhou—porque o Morgadinho passava no districto por maluco.

Foi ahi, nos Poyaes, logo ao outro dia da sua chegada, que João Eduardo soube que Amelia e D. Josepha estavam na Ricoça. Soube-o pelo bom abbade Ferrão, o unico sacerdote a quem o Morgado fallava, e que recebia em casa, não como padre, mas como cavalheiro.

—Eu como cavalheiro estimo-o, snr. Ferrão, costumava elle dizer, mas como padre abomino-o! [576]

E o bom Ferrão sorria, sabendo que, sob aquella ferocidade d'impio obtuso, havia um santo coração, um pai-de-pobres na freguezia...

O Morgado era tambem grande amador de alfarrabios, questionador incansavel; ás vezes os dois tinham pelejas tremendas sobre historia, botanica, systemas de caça... Quando o abbade, no fogo da controversia, punha d'alto alguma opinião contraria:

—O senhor apresenta-me isso como padre ou como cavalheiro? exclamava, empinando-se, o Morgado.

—Como cavalheiro, senhor Morgado.

—Então aceito a objecção. É sensata. Mas se fosse como padre, quebrava-lhe os ossos.

Ás vezes, pensando irritar o abbade, mostrava-lhe João Eduardo, batendo d'alto no hombro do rapaz, n'uma caricia de amador, como um cavallo favorito:

—Veja-me isto! Já ia dando cabo d'um. E ainda ha de matar dois ou tres... E se o prenderem hei de eu livral-o da forca!

—Isso não é difficil, senhor Morgado, dizia o abbade tomando tranquillamente a sua pitada. Que já não ha forcas em Portugal...

Então era uma indignação do Morgado. Não havia forcas? E porque não? Porque tinhamos um governo livre e um rei constitucional! Que se se seguisse a vontade dos padres, havia uma forca em cada praça e uma fogueira em cada esquina! [577]

—Diga-me uma coisa, snr. Ferrão, o senhor vem defender aqui em minha casa a inquisição?

—Oh, senhor Morgado, eu nem sequer fallei da inquisição...

—Não fallou por medo! Porque sabe perfeitamente que lhe enterrava uma faca no estomago!

E tudo isto aos gritos e aos pulos pela sala, fazendo um vendaval com as abas prodigiosas do seu robe-de-chambre amarello.

—No fundo um anjo, diria o abbade a João Eduardo. Capaz de dar a camisa mesmo a um padre, se o soubesse em necessidade... E vossê aqui está bem, João Eduardo... É não lhe reparar nas manias...

Tinha tomado affeição a João Eduardo, o abbade Ferrão: e sabendo por Amelia a famosa legenda do Communicado quizera, segundo a sua expressão querida, «folhear o homem aqui e além». Conversára com elle tardes inteiras na rua de loureiros da quinta, na residencia onde João Eduardo se ia fornecer de livros; e sob o «exterminador de padres», como dizia o Morgado, encontrára um pobre moço sensivel, com uma religião sentimental, ambições de paz domestica, e prezando muito o trabalho. Então viera-lhe uma idéa que, sobretudo por lhe ter acudido um dia que sahia das suas devoções ao Santissimo, lhe pareceu descida de cima, da vontade do Senhor: era o casal-o com Amelia. Não seria difficil levar aquelle coração fraco e terno a perdoar o erro d'ella; e a pobre rapariga, depois de tantos [578] transes, extincta aquella paixão que lhe entrára na alma como um sôpro do Demonio, levando-lhe a vontade, a paz e o pudor d'empurrão para o abysmo, encontraria na companhia de João Eduardo todo um resto de vida calmo, e contente, um canto suave d'interior, refugio dôce e purificação do passado. Não fallou nem a um, nem a outro, n'esta idéa que o enternecia. Não era o momento agora, que ella trazia nas entranhas o filho do outro. Mas ia preparando com amor aquelle resultado,—sobretudo quando estava com Amelia, contando-lhe as suas conversas com João Eduardo, algum dito muito sensato que elle tivera, os bons cuidados de preceptor que estava desenvolvendo na educação dos Morgaditos.

—É um bom rapaz, dizia. Homem de familia... D'estes a quem uma mulher póde realmente confiar a sua vida e a sua felicidade. Se eu pertencesse ao mundo, se tivesse uma filha, dava-lh'a...

Amelia não respondia, córando.

Já não podia objectar áquelles elogios persuasivos a antiga, a grande objecção—o Communicado, a impiedade! O abbade Ferrão destruira-lh'a um dia, com uma palavra:

—Eu li o artigo, minha senhora. O rapaz não escreveu contra os sacerdotes, escreveu contra os phariseus!

E para attenuar este julgamento severo, o menos caridoso que tivera havia muitos annos, acrescentou: [579]

—Emfim, foi uma falta grave... Mas está muito arrependido. Pagou-o com lagrimas, e com fome.

E isto enternecia Amelia.


Fôra tambem por esse tempo que o doutor Gouvéa começára a vir á Ricoça, porque D. Josepha tinha peorado com os dias mais frios do outono. Amelia, ao principio, á hora da visita, fechava-se no seu quarto, tremendo á idéa de vêr o seu estado descoberto pelo velho doutor Gouvêa, o medico da casa, aquelle homem d'uma severidade legendaria. Mas emfim fôra necessario apparecer no quarto da velha, para receber as suas instrucções de enfermeira sobre as horas dos remedios e as dietas. E um dia que acompanhára o doutor até á porta, ficou gelada, vendo-o parar, voltar-se para ella cofiando a sua grande barba branca que lhe cahia sobre o jaquetão de velludo, e dizer-lhe sorrindo:

—Eu bem tinha dito a tua mãi que te casasse!

Duas lagrimas saltaram-lhe dos olhos.

—Bem, bem, pequena, não te quero mal por isso. Estás na verdade. A natureza manda conceber, não manda casar. O casamento é uma fórmula administrativa...

Amelia olhava-o, sem o comprehender, com as duas lagrimas muito redondinhas a correrem-lhe devagar pela face. Elle bateu-lhe com os dedos no queixo, muito paternal: [580]

—Quero dizer que, como naturalista, regosijo-me. Acho que te tornaste util á ordem geral das coisas. Vamos ao que importa...

Deu-lhe então conselhos sobre a hygiene que devia ter.

—E quando chegar a occasião, se te vires atrapalhada, manda-me chamar...

Ia descer; Amelia deteve-o, e com uma supplicação assustada:

—Mas o senhor doutor não vai dizer nada na cidade...

O doutor Gouvéa parou:

—Então não é estupida?... Está bom, tambem t'o perdôo. Está na logica do teu temperamento. Não, não digo nada, rapariga. Mas p'ra que diabo, então, não casaste tu com esse pobre João Eduardo? Fazia-te tão feliz como o outro, e já não tinhas de pedir segredo... Emfim, isso para mim é um detalhe secundario... O essencial é o que te disse... Manda-me chamar. Não te fies muito nos teus santos... Eu entendo mais d'isso que Santa Brigida ou lá quem é. Que tu és forte, e has de dar um bom mocetão ao Estado.

Todas estas palavras que em parte não comprehendera bem, mas em que sentia uma vaga justificação e uma bondade d'avô indulgente, sobretudo aquella sciencia que lhe promettia a saude e a que as barbas grisalhas do doutor, umas barbas de Padre Eterno, davam um ar d'infallibilidade, reconfortaram-na, augmentaram a serenidade que havia semanas [581] gozava, desde a sua confissão desesperada na capella dos Poyaes.

Ah, fôra decerto Nossa Senhora, compadecida emfim dos seus tormentos, que lhe mandára do céo aquella inspiração de se ir entregar toda dorida aos cuidados do abbade Ferrão! Parecia-lhe que deixára lá, no seu confessionario azul-ferrete, todas as amarguras, os terrores, a negra farrapagem de remorso que lhe abafava a alma. A cada uma das suas consolações tão persuasivas sentira desapparecer o negrume que lhe tapava o céo: agora via tudo azul; e quando rezava, já Nossa Senhora não desviava o rosto indignado. É que era tão differente aquella maneira de confessar do abbade! Os seus modos não eram os do representante rigido d'um Deus carrancudo; havia n'elle alguma coisa de feminino e de maternal que passava na alma como uma caricia; em logar de lhe erguer diante dos olhos o sinistro scenario das chammas do Inferno, mostrára-lhe um vasto céo misericordioso com as portas largamente abertas, e os caminhos multiplicados que lá conduzem, tão faceis e tão dôces de trilhar que só a obstinação dos rebeldes se recusa a tental-os. Deus apparecia, n'aquella suave interpretação da outra vida, como um bom bisavô risonho; Nossa Senhora era uma irmã de caridade; os santos, camaradas hospitaleiros! Era uma religião amavel, toda banhada de graça, em que uma lagrima pura basta para remir uma existencia de peccado. Que differente da soturna doutrina que desde pequena a trazia aterrada [582] e tremula! Tão differente—como aquella pequena capella d'aldeia da vasta massa de cantaria da Sé. Lá, na velha Sé, muralhas da espessura de covados separavam da vida humana e natural: tudo era escuridão, melancolia, penitencia, faces severas d'imagens; nada do que faz a alegria do mundo alli entrava, nem o alto azul, nem os passaros, nem o ar largo dos prados, nem os risos dos labios vivos; alguma flôr que havia era artificial; o enxota-cães lá se postava ao portal para não deixar passar as criancinhas; até o sol estava exilado, e toda a luz que havia vinha dos lampadarios funebres. E alli, na capellita dos Poyaes, que familiaridade da natureza com o bom Deus! Pelas portas abertas penetrava a aragem perfumada das madresilvas; pequerruchos brincando faziam sonoras as paredes caiadas; o altar era como um jardinete e um pomar; pardaes atrevidos vinham chilrear até junto aos pedestaes das cruzes; ás vezes um boi grave mettia o focinho pela porta com a antiga familiaridade do curral de Belem, ou uma ovelha tresmalhada vinha regosijar-se de vêr um da sua raça, o Cordeiro Paschal, dormir regaladamente ao fundo do altar com a santa cruz entre as patas.

Além d'isso o bom abbade, como elle lhe dissera, «não queria impossiveis». Sabia bem que ella não podia arrancar n'um momento aquelle amor culpado, que ganhára raizes até ás profundezas do seu sêr. Queria apenas que quando a assaltasse a idéa de Amaro se abrigasse logo na idéa de Jesus. Com [583] a força colossal de Satanaz, que tem o poder d'um Hercules, uma pobre rapariga não póde luctar braço a braço: póde sómente refugiar-se na oração quando o sente, e deixal-o fatigar-se de rugir e espumar em torno d'esse asylo impenetravel. Elle mesmo cada dia a ia ajudando n'aquella repurificação da alma, com uma solicitude de enfermeiro: fôra elle que lhe marcára, como um ensaiador n'um theatro, a attitude que devia ter na primeira visita de Amaro á Ricoça; era elle que chegava, com alguma breve palavra reconfortante como um cordial, se a via vacillar n'aquella lenta reconquista da virtude; se a noite fôra agitada das lembranças calidas dos prazeres passados, era durante toda a manhã uma boa palestra, sem tom pedagogico, em que lhe mostrava familiarmente que o céo lhe daria alegrias maiores que o quarto enxovalhado do sineiro. Chegára, com uma subtileza de theologo, a demonstrar-lhe que no amor do parocho não havia senão brutalidade e furor bestial; que, dôce como era o amor do homem, o amor do padre só podia ser uma explosão momentanea do desejo comprimido; quando tinham começado as cartas do parocho, analysára-lh'as phrase a phrase, revelando-lhe o que ellas continham de hypocrisia, de egoismo, de rhetorica, e de desejo torpe...

Ia-a assim lentamente desgostando do parocho. Mas não a desgostava do amor legitimo, purificado pelo sacramento; conhecia bem que ella era toda de carne e de desejos, e que lançal-a violentamente [584] no mysticismo seria apenas torcer-lhe um momento o instincto natural e não crear-lhe uma paz duradoura. Não tentava arrancal-a bruscamente á realidade humana; elle não a queria para freira; só desejava que aquella força amante que sentia n'ella servisse á alegria d'um esposo e á util harmonia d'uma familia, e não se gastasse erradamente em concubinagens casuaes... No fundo, o bom Ferrão preferiria decerto na sua alma de sacerdote que a rapariga se separasse absolutamente de todos os interesses egoistas do amor individual, e se désse, como irmã da caridade, como enfermeira d'um recolhimento, ao amor mais largo de toda a humanidade. Mas a pobre Ameliasita tinha a carne muito bonita e muito fraca; não seria prudente assustal-a com sacrificios tão altos; era toda mulher—toda mulher devia ficar; limitar-lhe a acção era estragar-lhe a utilidade. Christo não lhe bastava com os seus membros ídeaes pregados na cruz: era-lhe necessario um homem como todos, de bigode e chapéo alto. Paciencia! Que ao menos elle fosse um esposo sob a legitimação sacramental...

Assim a ia curando d'aquella paixão morbida com uma direcção de todos os dias, uma d'estas persistencias de missionario que só dá a fé sincera, pondo a subtileza d'um casuista ao serviço da moralidade d'um philosopho, paternal e habil—uma cura maravilhosa de que o bom abbade em segredo tirava alguma vaidade.

E foi grande a sua alegria quando lhe pareceu [585] que emfim a paixão por Amaro já não era na alma d'ella um sentimento vivo; mas estava morto, embalsamado, arrumado no fundo da sua memoria como n'um jazigo, escondido já sob a delicada florescencia d'uma virtude nova. Assim julgava pelo menos o bom Ferrão—vendo-a agora alludir ao passado com o olhar tranquillo, sem aquelles rubores que outr'ora lhe escaldavam a face ao simples nome de Amaro.

Ella, com effeito, já não pensava no senhor parocho com a commoção d'outr'ora: o terror do peccado, a influencia penetrante do abbade, aquella brusca separação do meio devoto em que o seu amor se desenvolvera, o gozo que sentia n'uma serenidade maior, sem sustos nocturnos e sem a inimizade de Nossa Senhora, tudo concorrêra para que o fogo ruidoso d'aquelle sentimento se fosse reduzindo a alguma braza que rebrilhava surdamente. O parocho estivera ao principio na sua alma com o prestigio d'um idolo coberto d'oiro; mas tantas vezes, desde a sua gravidez, sacudira, nas horas de terror religioso ou de arrependimento hysterico, aquelle idolo, que todo o dourado lhe ficára nas mãos, e a fórma trivial e escura que apparecia por baixo já não a deslumbrava; viu por isso o abbade derrubar-lh'o inteiramente, sem chorar e sem luctar. Se ainda pensava em Amaro, é porque não podia deixar de pensar na casa do sineiro; mas o que a tentava ainda era o prazer e não o parocho.

E com a sua natureza de boa rapariga tinha um [586] reconhecimento sincero pelo abbade. Como dissera a Amaro n'aquella tarde, «devia-lhe tudo». Era o que sentia agora tambem pelo doutor Gouvêa, que vinha regularmente vêr a velha de dois em dois dias. Eram os seus bons amigos, como dois papás que o céo lhe mandava—um que lhe promettia a saude, outro a graça.

Refugiada n'aquellas duas protecções, gozou uma paz adoravel nas ultimas semanas de outubro. Os dias iam muito serenos e muito tepidos. Era bom estar no terraço, pelas tardes, n'aquella serenidade outonal dos campos. O doutor Gouvêa ás vezes encontrava-se com o abbade Ferrão; ambos se estimavam; depois da visita á velha, iam para o terraço, e começavam logo as suas eternas questões sobre Religião e sobre Moral.

Amelia, com a costura cahida nos joelhos, sentindo os seus dois amigos ao pé, aquelles dois colossos de sciencia e de santidade, abandonava-se ao encanto da hora suave, olhando a quinta onde as arvores já empallideciam. Pensava no futuro; elle apparecia-lhe agora facil e seguro; era forte, e o parto, com a presença do doutor, seria apenas uma hora de dôres; depois, livre d'aquella complicação, voltaria para a cidade e para a mamã... E então uma outra esperança, que nascera das conversas constantes do abbade sobre João Eduardo, vinha bailar-lhe na imaginação. Porque não?... Se o pobre rapaz a amasse ainda, e perdoasse!... Elle nunca lhe repugnára como homem, e seria um casamento esplendido [587] agora que elle tinha a amizade do Morgado. Dizia-se que João Eduardo ia ser o administrador da casa... E entrevia-se vivendo nos Poyaes, passeando na caleche do Morgado, chamada para jantar por uma campainha, servida por um escudeiro de libré... Ficava muito tempo immovel, banhada na doçura d'esta perspectiva, emquanto o abbade e o doutor ao fundo do terraço pelejavam sobre a doutrina da Graça e da Consciencia, e monotonamente a agua das regas murmurava no pomar.

Foi por este tempo que D. Josepha, inquieta de não vêr apparecer o senhor parocho, mandára expressamente o caseiro a Leiria, pedir a sua senhoria a esmola d'uma visita. O homem voltára com a espantosa noticia de que o senhor parocho partira para a Vieira, e não viria senão d'ahi a duas semanas. A velha choramingou de desgosto. E Amelia, n'essa noite, no seu quarto, não pôde adormecer—na irritação que lhe dava aquella idéa do senhor parocho a divertir-se na Vieira, sem pensar n'ella decerto, chalaceando com as senhoras na praia, e andando de serão em serão...


Com a primeira semana de novembro vieram as chuvas. A Ricoça parecia agora mais lugubre n'aquelles dias curtos, banhados d'agua, sob um céo de tempestade. O abbade Ferrão, tolhido de rheumatismo, já não apparecia na quinta. O doutor Gouvêa, [588] depois da visita de meia hora, abalava no seu velho cabriolet. A unica distracção de Amelia era estar á janella por dentro dos vidros: tres vezes vira passar João Eduardo na estrada; mas elle ao avistal-a baixava os olhos ou refugiava-se mais sob o guardachuva.

A Dionysia vinha tambem frequentemente: devia ser a parteira, apesar do doutor Gouvêa ter aconselhado a Michaela, matrona d'uma experiencia de trinta annos. Mas Amelia «não queria mais gente no segredo», e além d'isso Dionysia trazia-lhe as noticias d'Amaro, que ella sabia pela cozinheira. O senhor parocho tinha-se achado tão bem na Vieira que se ia demorar até dezembro. Aquelle «procedimento infame» indignava-a: não duvidava que o parocho queria estar longe quando chegassem os transes, os perigos do parto. Além d'isso era decidido d'ha muito que a criança havia de ser entregue a uma ama de ao pé de Ourem, que a criaria na aldeia: e agora o tempo chegava, e a ama não estava fallada, e o senhor parocho apanhava conchinhas á beira-mar!...

—É indecente, Dionysia, exclamava Amelia furiosa.

—Ah! não me parece bem, não. Que eu podia fallar á ama... Mas bem vê, são coisas muito sérias... O senhor parocho é que se encarregou de tudo...

—É infame!

Além d'isso ella descuidára-se do enxoval—e alli [589] estava na vespera de ter a criança, sem um trapo para a cobrir, sem dinheiro para lh'o comprar! A Dionysia tinha-lhe mesmo offerecido algumas peças de enxoval, que uma mulher que ella tivera em casa lhe deixára empenhadas. Mas Amelia recusára-se a que o seu filho usasse cueiros alheios, trazendo-lhe talvez um contagio de doença ou uma sorte infeliz.

E por orgulho não queria escrever a Amaro.

Além d'isso as impertinencias da velha tornavam-se odiosas. A pobre D. Josepha, privada dos auxilios devotos d'um padre, um verdadeiro padre (não um abbade Ferrão), sentia a sua velha alma indefesa exposta a todas as audacias de Satanaz: a visão singular que tivera de S. Francisco Xavier nú, repetia-se agora com uma insistencia pavorosa a respeito de todos os santos: era toda uma côrte do céo, arrojando tunicas e habitos, e bailando-lhe na imaginação sarabandas em pêllo: e a velha estava morrendo da perseguição d'estes espectaculos dispostos pelo demonio. Reclamára o padre Silverio, mas parecia que um rheumatismo geral tolhia todo o clero diocesano: desde o principio do inverno o Silverio estava tambem de cama. O abbade da Cortegassa, chamado urgentemente, veio—mas para lhe communicar a receita nova que descobrira de fazer bacalhau à biscainha... Esta falta d'um padre virtuoso dava-lhe um humor feroz, que recahia sobre Amelia n'uma chuva de impertinencias.

E a boa senhora estava pensando sériamente em [590] mandar a Amor pelo padre Brito—quando uma tarde, ao fim do jantar, inesperadamente, o senhor parocho appareceu!

Vinha magnifico, trigueiro do sol e do ar do mar, de casaco novo e botins de verniz. E palrando longamente ácerca da Vieira, dos conhecidos que estavam, da pesca que fizera, dos soberbos quinos fazia passar n'aquelle triste quarto de doente velha todo um sopro vivificante da vida divertida á beira-mar. D. Josepha tinha duas lagrimas nas palpebras do gozo de vêr o senhor parocho, de o ouvir.

—E a mamã passa bem, disse elle a Amelia. Já tem os seus trinta banhos. Ganhou outro dia quinze tostões a uma batotinha que se arranjou... E por cá que têm feito?

Então a velha rompeu em queixumes amargos: Uma solidão! Um tempo de chuva! Uma falta de amizades! Ai! ella estava alli a perder a sua alma n'aquella quinta fatal...

—Pois eu, disse o padre Amaro traçando a perna, dei-me tão bem que estou com idéas de voltar para a semana.

Amelia, sem se conter, exclamou:

—Ora essa! outra vez!

—Sim, disse elle. Se o senhor chantre me der uma licença d'um mez, vou lá passal-o... Fazem-me uma cama na sala de jantar do padre-mestre, e tomo um par de banhos... Estava farto de Leiria, e d'aquelle aborrecimento... [591]

A velha parecia desolada. O quê, voltar! Deixal-as alli a estarrecer de tristeza!

Elle galhofou:

—Ora, as senhoras não precisam cá de mim. Estão bem acompanhadas...

—Eu não sei, disse a velha com azedume, se os outros—e accentuou com rancor a palavra—se os outros não precisam do senhor parocho... Eu é que não estou bem acompanhada, estou aqui a perder a minha alma... Que as companhias que ahi vêm não dão honra nem proveito.

Mas Amelia acudiu para contrariar a velha:

—E de mais a mais o senhor abbade Ferrão tem estado doente... Está com rheumatismo. Sem elle a casa parece uma prisão.

D. Josepha deu um risinho d'escarneo. E o padre Amaro, erguendo-se para sahir, lamentou o bom abbade:

—Coitado! Santo homem... Hei de ir vêl-o em tendo vagar. Pois ámanhã cá appareço, D. Josepha, e havemos de pôr essa alma em paz... Não se incommode, snr.a D. Amelia, eu sei agora o caminho.

Mas ella insistiu em o acompanhar. Atravessaram o salão sem uma palavra. Amaro calçava as suas luvas novas de pellica preta. E no alto da escada, muito ceremoniosamente, tirando o chapéo:

—Minha senhora...

E Amelia ficou petrificada vendo-o descer muito tranquillo—como se ella lhe fosse mais indifferente [592] que os dois leões de pedra, que em baixo dormiam com o focinho nas patas.

Foi para o quarto chorar de bruços sobre a cama, de raiva e de humilhação. O infame! E nem uma palavra sobre o filho, sobre a ama, sobre o enxoval! Nem um olhar d'interesse para o seu corpo desfigurado por aquella prenhez que elle lhe dera! Nem uma queixa irritada por todos os desprezos que ella lhe mostrára!... Nada! Calçava as luvas, com o chapéo ao lado. Que indigno!

Ao outro dia o padre voltou mais cedo. Esteve muito tempo fechado no quarto com a velha.

Amelia, impaciente, rondava no salão com os olhos como carvões. Elle appareceu emfim, como na vespera, calçando as suas luvas com um ar prospero.

—Então já? disse ella n'uma voz que tremia.

-Já, sim, minha senhora. Estive n'uma praticasinha com a D. Josepha.

Tirou o chapéo, comprimentando muito profundamente:

—Minha senhora...

Amelia, livida, murmurou:

—Infame!

Elle olhou-a, como assombrado:

—Minha senhora...—repetiu.

E, como na vespera, desceu vagarosamente a larga escadaria de pedra.

O primeiro pensamento d'Amelia foi denuncial-o ao vigario geral. Depois passou a noite escrevendo-lhe [593] uma carta—tres paginas de accusações e de lastimas. Mas toda a resposta d'Amaro, ao outro dia, mandada verbalmente pelo Joãosito da quinta, foi «que talvez apparecesse por lá na quinta-feira».

Teve outra noite de lagrimas—emquanto na rua das Sousas o padre Amaro esfregava as mãos, no regosijo do seu «famoso estratagema». E todavia não o concebera elle mesmo; tinha-lhe sido suggerido na Vieira, onde fôra para desabafar com o padre-mestre e espalhar a mágoa nos ares da praia; fôra lá que elle o aprendera, o «famoso estratagema», n'uma soirée, ouvindo dissertar sobre o amor o brilhante Pinheiro, premiado em direito e gloria d'Alcobaça.

—Eu n'isso, minhas senhoras—dizia o Pinheiro, passando a mão pela cabelleira de poeta, ao semi-círculo de damas que pendiam dos seus labios d'ouro—eu n'isso sou da opinião de Lamartine (era alternadamente da opinião de Lamartine ou de Pelletan). Digo como Lamartine: a mulher é igual á sombra; se correis atraz d'ella, foge-vos; se fugis d'ella, corre atraz de vós!

Houve um muito bem, exclamado com convicção: mas uma senhora de grandes proporções, mãi de quatro deliciosos anjos todos Marias (como dizia o Pinheiro), quiz explicações, porque nunca tinha visto fugir uma sombra.

O Pinheiro deu-as, scientificamente:

—É muito facil d'observar, snr.a D. Catharina. Colloque-se vossa excellencia na praia, quando o sol [594] começa a declinar, com as costas para o astro. Se vossa excellencia caminha em frente, perseguindo a sombra, ella vai-lhe adiante, fugindo...

—Physica recreativa, muito interessante! murmurou o escrivão de direito ao ouvido d'Amaro.

Mas o parocho não o escutava; bailava-lhe já na imaginação «o famoso estratagema». Ah! mal voltasse a Leiria, havia de tratar Amelia como uma sombra e fugir-lhe para ser seguido...—E o resultado delicioso alli estava—tres paginas de paixão, com manchas de lagrimas no papel.

Na quinta-feira appareceu, com effeito. Amelia esperava-o no terraço, d'onde estivera desde manhã vigiando a estrada com um binoculo de theatro. Correu a abrir-lhe o portãosinho verde no muro do pomar.

—Então, por aqui! disse-lhe o parocho, subindo atraz d'ella ao terraço.

—É verdade, como estou sósinha...

—Sósinha?

—A madrinha está a dormir e a Gertrudes foi á cidade... Tenho estado toda a manhã aqui ao sol.

Amaro ía penetrando pela casa, sem responder; diante d'uma porta aberta parou, vendo um grande leito de docel, e em redor cadeiras de couro de convento.

—É o seu quarto aqui, hein?

—É.

Elle entrou familiarmente, com o chapéo na cabeça. [595]

—Muito melhor que o da rua da Misericordia. E boas vistas... São as terras do Morgado, além...

Amelia cerrára a porta, e indo direita a elle, com os olhos chammejantes:

—Porque não respondeste á minha carta?

Elle riu:

—É boa! E porque não respondeste tu ás minhas? Quem começou? Foste tu. Dizes que não queres peccar mais. Tambem eu não quero peccar mais. Acabou-se...

—Mas não é isso! exclamou ella pallida d'indignação. É que ha a pensar na criança, na ama, no enxoval... Não é abandonar-me p'r'áqui!...

Elle poz-se sério, e com um tom resentido:

—Peço perdão... Eu prezo-me de ser um cavalheiro. Tudo isso ha de ficar arranjado antes de voltar p'r'á Vieira...

—Tu não voltas p'r'á Vieira!

—Quem é que diz isso?

—Eu, que não quero que vás!

Puzera-lhe fortemente as mãos nos hombros, retendo-o, apoderando-se d'elle: e alli mesmo, sem reparar na porta apenas cerrada, abandonou-se-lhe como outr'ora.


D'ahi a dois dias o abbade Ferrão appareceu restabelecido do seu ataque de rheumatismo. Contou a Amelia a bondade do Morgado, que chegára a [596] mandar-lhe todas as tardes, n'um apparelho de lata com agua quente, uma gallinha cozida em arroz. Mas era sobretudo a João Eduardo que devia a caridade melhor; todas as suas horas vagas as passava ao pé da cama, lendo-lhe alto, ajudando-o a voltar, ficando com elle até á uma hora da noite n'um zelo de enfermeiro. Que rapaz! que rapaz!

E de repente, tomando as mãos ambas d'Amelia, exclamou:

—Diga-me, dá licença que eu lhe conte tudo, que lhe explique?... Que arranje que elle perdôe. e esqueça... E que se faça este casamento, se faça esta felicidade?

Ella balbuciou espantada, toda escarlate:

—Assim de repente... Não sei... Hei de pensar...

—Pense. E Deus a alumie! disse o velho com fervor.

Era n'essa noite que Amaro devia entrar pelo portalzinho do pomar de que Amelia lhe dera a chave. Infelizmente tinham esquecido a matilha do caseiro. E apenas Amaro pôz o pé dentro do pomar, rompeu pelo silencio da noite escura um tão desabrido ladrar de cães—que o senhor parocho abalou pela estrada, batendo o queixo de terror.



XXIV



Amaro n'essa manhã mandou á pressa chamar a Dionysia, apenas recebeu o seu correio. Mas a matrona que estava no mercado veio tarde, quando elle á volta da missa acabava d'almoçar.

Amaro queria saber ao certo e immediatamente para quando estava a coisa...

—O bom successo da pequena?... Entre quinze a vinte dias... Porquê, ha novidade?

Havia; e o parocho leu-lhe então em confidencia uma carta que tinha ao lado.

Era do conego, que escrevia da Vieira, dizendo «que a S. Joanneira tinha já trinta banhos e queria voltar! Eu, (acrescentava), perco quasi todas as semanas tres, quatro banhos, de proposito para os espaçar e dar tempo, porque cá a minha mulher já [598] sabe que eu sem os meus cincoenta não vai. Ora já tenho quarenta, veja lá vossê. Demais por aqui começa a fazer frio devéras. Já se tem retirado muita gente. Mande-me pois dizer pela volta do correio em que estado estão as coisas.» E n'um post-scriptum dizia: «Tem vossê pensado que destino se ha de dar ao fructo

—Mais vinte dias, menos vinte dias, repetiu a Dionysia.

E Amaro alli mesmo escreveu a resposta ao conego, que a Dionysia devia levar ao correio: «A coisa póde estar prompta d'aqui a vinte dias. Suspenda por todo o modo a volta da mãi! Isso de modo nenhum! Diga-lhe que a pequena não escreve nem vai, porque a excellentissima mana passa sempre adoentada.»

E traçando a perna:

—E agora, Dionysia, como diz o nosso conego, que destino se ha de dar ao fructo?

A matrona arregalou os olhos de surpreza:

—Eu pensei que o senhor parocho tinha arranjado tudo... Que se ia dar a criança a criar fóra da terra...

—Está claro, está claro, interrompeu o parocho com impaciencia. Se a criança nascer viva é evidente que se ha de dar a criar, e que ha de ser fóra da terra... Mas ahi é que está! Quem ha de ser a ama? É isso que eu quero que vossê me arranje. Vai sendo tempo...

A Dionysia pareceu muito embaraçada. Nunca [599] gostára de inculcar amas. Ella conhecia uma boa, mulher forte e de muito leite, pessoa de confiança; mas infelizmente entrára no hospital, doente... Sabia d'outra tambem, até tivera negocios com ella. Era uma Joanna Carreira. Mas não convinha porque vivia justamente nos Poyaes, ao pé da Ricoça.

—Qual não convém! exclamou o parocho. Que tem que viva na Ricoça?... Em a rapariga convalescendo as senhoras vêm p'r'á cidade, e não se falla mais na Ricoça.

Mas a Dionysia procurava ainda, arranhando devagar o queixo. Tambem sabia d'outra. Essa morava para o lado da Barrosa, a boa distancia... Criava em casa, era o seu officio... Mas n'essa nem fallar!

—Mulher fraca, doente?

A Dionysia chegou-se ao parocho, e baixando a voz:

—Ai, menino, eu não gosto d'accusar ninguem. Mas, está provado, é uma tecedeira d'anjos!

—Uma quê?

Uma tecedeira d'anjos!

—O que é isso? Que significa isso? perguntou o parocho.

A Dionysia gaguejou-lhe uma explicação. Eram mulheres que recebiam crianças a criar em casa. E sem excepção as crianças morriam... Como tinha havido uma muito conhecida que era tecedeira, e [600] as criancinhas iam para o céo... D'ahi é que vinha o nome.

—Então as crianças morrem sempre?

—Sem falhar.

O parocho passeava devagar pelo quarto, enrolando o seu cigarro.

—Diga lá tudo, Dionysia. As mulheres matam-n'as?

Então a excellente matrona declarou que não queria accusar ninguem! Ella não fôra espreitar. Não sabia o que se passava nas casas alheias. Mas as crianças morriam todas...

—Mas quem vai então entregar uma criança a uma mulher d'essas?

A Dionysia sorriu, apiedada d'aquella innocencia d'homem.

—Entregam, sim senhor, ás duzias!

Houve um silencio. O parocho continuava o seu passeio do lavatorio para a janella, de cabeça baixa.

—Mas que proveito tira a mulher, se as crianças morrem? perguntou de repente. Perde as soldadas...

—É que se lhe paga um anno de criação adiantado, senhor parocho. A dez tostões ao mez, ou quartinho, segundo as posses...

O parocho agora, encostado á janella, rufava devagar nos vidros.

—Mas que fazem as auctoridades, Dionysia?

A boa Dionysia encolheu silenciosamente os hombros. [601]

O parocho então sentou-se, bocejou, e estirando as pernas disse:

—Bem, Dionysia, vejo que a unica coisa a fazer é fallar á tal ama que vive ao pé da Ricoça, á Joanna Carreira. Eu arranjarei isso...

A Dionysia fallou ainda das peças d'enxoval que já tinha comprado por conta do parocho, d'um berço muito barato em segunda mão que vira no Zé Carpinteiro—e ia sahir com a carta para o correio, quando o parocho erguendo-se e galhofando:

—Ó tia Dionysia, essa coisa da tecedeira d'anjos é uma historia, hein?

Então a Dionysia escandalisou-se. O senhor parocho sabia que ella não era mulher d'intrigas. Conhecia a tecedeira d'anjos ha mais d'oito annos, de lhe fallar e de a vêr na cidade quasi todas as semanas. Ainda no sabbado passado a vira sahir da taberna do Grego... O senhor parocho já tinha ido á Barrosa?

Esperou a resposta do parocho, e continuou:

—Pois bem, sabe o começo da freguezia. Ha um muro cahido. Depois é um caminho que desce. Ao fundo d'esse corregosito encontra um poço atulhado. Adiante, retirada, ha uma casita que tem um alpendre. É lá que ella vive... Chama-se Carlota... Isto é p'ra lhe mostrar que sei, amiguinho!

O parocho ficou toda a manhã em casa, passeando pelo quarto, alastrando o chão de pontas de cigarros. Alli estava agora diante d'aquelle episodio [602] fatal que até ahi fôra apenas um cuidado distante—dispôr do filho!

Era bem grave entregal-o assim a uma ama desconhecida, na aldeia. A mãi, naturalmente, havia de querer ir a todo o momento vêl-o, a ama poderia fallar aos visinhos. O rapaz viria a ser, na freguezia, o filho do parocho... Algum invejoso, que lhe cubiçasse a parochia, poderia denuncial-o ao senhor vigario geral. Escandalo, sermão, devassa: e, se não fosse suspenso, poderia como o pobre Brito ser mandado para longe, para a serra, outra vez para os pastores... Ah! se o fructo nascesse morto! Que solução natural e perpetua! E para a criança, uma felicidade! Que destino podia elle ter n'este duro mundo? Era o engeitado, era o filho do padre. Elle era pobre, a mãi pobre... O rapaz cresceria na miseria, vadiando, apanhando o estrume das bestas, ramelloso e tosco... De necessidade em necessidade iria conhecendo todas as fórmas do inferno humano: os dias sem pão, as noites regeladas, a brutalidade da taberna, a cadeia por fim. Uma enxerga na vida, a valla na morte... E se morresse—era um anjinho que Deus recolhia ao paraiso...

E continuava passeando tristemente pelo quarto. Realmente o nome era bem posto, tecedeira d'anjos... Com razão, quem prepara uma criança para a vida com o leite do seu peito, prepara-a para os trabalhos e para as lagrimas... Mais vale torcer-lhe o pescoço, e mandal-a direita para a eternidade [603] bemaventurada! Olha elle! Que vida a sua, n'esses trinta annos atraz! Uma infancia melancolica, com aquella pêga da marqueza d'Alegros; depois a casa na Estrella, com o alarve do tio toucinheiro; e d'ahi as clausuras do seminario, a neve constante de Feirão, e alli em Leiria tantos transes, tanta amargura... Se lhe tivessem esmagado o craneo ao nascer, estava agora com duas azas brancas, cantando nos córos eternos.

Mas emfim não havia que philosophar: era partir para Poyaes e fallar á ama, á snr.a Joanna Carreira.

Sahiu, dirigindo-se para a estrada, sem pressa. Ao pé da ponte veio-lhe porém de repente a idéa, a curiosidade de ir á Barrosa vêr a tecedeira... Não lhe fallaria: examinaria apenas a casa, a figura da mulher, os aspectos sinistros do sitio... Demais como parocho, como auctoridade ecclesiastica, devia observar aquelle peccado organisado n'um recanto d'estrada, impune e rendoso. Podia mesmo denuncial-o ao senhor vigario geral ou ao secretario do governo civil...

Tinha ainda tempo, eram apenas quatro horas. Por aquella tarde suave e lustrosa fazia-lhe bem um passeio a cavallo. Não hesitou, então; foi alugar uma egoa á estalagem do Cruz; e d'ahi a pouco, d'espora no pé esquerdo, choutava a direito pelo caminho da Barrosa.

Ao chegar ao corrego, de que lhe fallára a Dionysia, [604] apeou, foi andando com a egoa pela arreata. A tarde estava admiravel; muito alto no azul, uma grande ave fazia semi-circulos vagarosos.

Encontrou emfim o poço atulhado ao pé de dois castanheiros onde passaros ainda chilreavam; adiante n'um terreno plano, muito isolada, lá estava a casa com o seu alpendre: o sol declinando batia-lhe na unica janella do lado, accendendo-a n'um resplendor d'ouro e braza; e, muito delgado, elevava-se da chaminé um fumo claro no ar sereno.

Uma grande paz estendia-se em redor; no monte, escuro da rama dos pinheiros baixos, a capellinha da Barrosa punha a alvura alegre da sua parede muito caiada.

Amaro ia imaginando então a figura da tecedeira; sem saber porque, suppunha-a muito alta, com um carão trigueiro onde dois olhos de bruxa refulgiam.

Defronte da casa prendeu a egoa á cancella, e olhou pela porta aberta: era uma cozinha terrea, de grande lareira, com sahida para o pateo estradado de matto onde dois bacorinhos foçavam. Na prateleira da chaminé rebrilhava a louça branca. Dos lados pendiam grandes cassarolas de cobre, d'um lustro de casa rica. N'um velho armario meio aberto branquejavam pilhas de roupa: e havia tanta ordem que uma claridade parecia sahir do aceio e do arranjo das coisas.

Amaro então bateu forte as palmas. Uma rôla [605] pulou assustada, dentro da sua gaiola de vime pendurada da parede. Depois chamou alto:

—Senhora Carlota!

Immediatamente do lado do pateo uma mulher appareceu, com um crivo na mão. E Amaro, surprehendido, viu uma agradavel creatura de quasi quarenta annos, forte de peitos, ampla de encontros, muito branca no pescoço, com duas ricas arrecadas, e uns olhos negros que lhe lembraram os d'Amelia ou antes o brilho mais repousado dos da S. Joanneira.

Assombrado, balbuciou:

—Creio que me enganei... Aqui é que mora a senhora Carlota?

Não se enganára, era ella; mas com a idéa que a figura medonha «que tecia os anjos» devia estar algures, agachada n'um vão tenebroso da casa, perguntou ainda:

—Vossemecê vive aqui só?

A mulher olhou-o desconfiada:

—Não senhor, disse por fim, vivo com o meu marido...

Justamente o marido sahia do pateo,—medonho, esse, quasi anão, com a cabeça embrulhada n'um lenço e muito enterrada nos hombros, a face d'uma amarellidão de cera oleosa e lustrosa; no queixo annelavam-se os pêllos raros d'uma barba negra; e sob as arcadas fundas sem sobrancelhas, vermelhejavam dois olhos raiados de sangue, olhos d'insomnia e de bebedeira. [606]

—Para o seu serviço, vossa senhoria quer alguma coisa? disse, muito collado á saia da mulher.

Amaro foi entrando pela cozinha, e tartamudeando uma historia que ia forjando laboriosamente. Era uma parente que ia ter o seu bom successo. O marido não pudéra vir fallar-lhes porque estava doente... Queriam uma ama para lhes ir para casa, e tinham-lhe dito...

—Não, fóra de casa, não. Cá em casa—disse o anão que não se despegava das saias da mulher, mirando o parocho de lado com o seu medonho olho injectado.

Ah, então tinham-n'o informado mal... Sentia; mas o que o parente queria era uma ama para casa.

Veio dirigindo-se para a egoa, devagar; parou, e abotoando o casacão:

—Mas em casa recebem crianças para criação?...—perguntou ainda.

—Convindo o ajuste, disse o anão que o seguia.

Amaro arranjou a espora no pé, deu um puxão ao estribo, demorando-se, rondando em torno da cavalgadura:

—É necessario trazer-lh'a cá, já se sabe.

O anão voltou-se, trocou um olhar com a mulher que ficára á porta da cozinha.

—Tambem se lhe vai buscar, disse.

Amaro batia palmadas no pescoço da egoa.

—Mas sendo a coisa de noite, agora com este frio, é matar a criança... [607]

Então os dois, fallando ao mesmo tempo, affirmaram que não lhe fazia mal. Havendo, já se sabe, carinho e agasalho...

Amaro cavalgou vivamente a egoa, deu as boas tardes, e trotou pelo corrego.


Amelia agora começava a andar assustada. De dia e de noite só pensava n'aquellas horas, que se avisinhavam, em que devia sentir chegarem as dôres. Soffria mais que durante os primeiros mezes; tinha tonturas, perversões de gosto—que o doutor Gouvêa observava, franzindo a testa descontente. As noites eram más, n'uma turbação de pesadêlos. Já não eram as allucinações religiosas: isso cessára n'uma subita aplacação de todo o terror devoto: não sentiria menos temor de Deus, se já fosse uma santa canonisada. Eram outros medos, sonhos em que o parto se lhe representava de modos monstruosos: ora era um sêr medonho que lhe saltava das entranhas, metade mulher e metade cabra; ora era uma cobra infindavel que lhe sahia de dentro, durante horas, como uma fita de leguas, enrolando-se no quarto em roscas successivas que ganhavam a altura do tecto: e acordava em tremuras nervosas que a deixavam prostrada.

Mas anciava por ter a criança. Estremecia á idéa de vêr um dia inesperadamente a mãi apparecer na Ricoça. Ella escrevera-lhe, queixando-se do senhor [608] conego que a retinha na Vieira, dos temporaes que já reinavam, da solidão que se ia fazendo na praia. Além d'isso D. Maria da Assumpção voltára; felizmente, uma noite providencialmente gelada dera-lhe durante a jornada uma inflammação dos bronchios—e estava de cama para semanas, segundo dizia o doutor Gouvêa. O Libaninho, esse, tambem viera á Ricoça; e sahira lastimando-se de não ter visto a Amelinha «que tinha n'esse dia enxaqueca».

—Se isto se demora mais quinze dias, vem-se a descobrir tudo, dizia ella, choramigando, a Amaro.

—Paciencia, filha. Não se póde forçar a natureza...

—O que tu me tens feito soffrer! suspirava ella, o que tu me tens feito soffrer!

Elle calava-se resignado—muito bom, muito terno agora com ella. Vinha-a vêr quasi todas as manhãs, porque não queria pelas tardes encontrar o abbade Ferrão.

Tranquillisára-a a respeito da ama, dizendo-lhe que fallára á mulher da Ricoça inculcada pela Dionysia. Era uma escolha rica a snr.a Joanna Carreira! Mulher forte como um carvalho, com barricas de leite, e dentes de marfim...

—Fica-me tão longe para vir vêr depois a criança...—suspirava ella.

Tomavam-n'a agora pela primeira vez enthusiasmos de mãi. Desesperava-se em não poder ella mesma costurar o resto do enxoval. Queria que o rapaz—porque havia de ser um rapaz!—se chamasse [609] Carlos. Scismava-o já homem, e official de cavallaria. Enternecia-se com a esperança de o vêr gatinhar...

—Ai, eu é que o queria criar, se não fosse a vergonha!...

—Vai muito bem para onde vai, dizia Amaro.

Mas o que a torturava, a fazia chorar todos os dias era a idéa de elle ser um engeitadinho!

Um dia veio ao abbade com um plano extraordinario «que lhe inspirára Nossa Senhora»: ella casaria já com João Eduardo, mas o rapaz devia por uma escriptura adoptar o Carlinhos! Que para que o anjinho não fosse um engeitado, casava até com um calceteiro da estrada! E apertava as mãos do abbade, n'uma supplicação loquaz. Que convencesse João Eduardo, que désse um papá ao Carlinhos! Queria ajoelhar aos pés d'elle, do senhor abbade, que era o seu pai e o seu protector.

—Oh, minha senhora, socegue, socegue. Esse é tambem o meu desejo, como lhe disse. E ha de arranjar-se, mas mais tarde, disse o bom velho, atarantado d'aquella excitação.

Depois, d'ahi a dias, foi outra exaltação; descobrira de repente, uma manhã, que não devia trahir Amaro, «porque era o papá do seu Carlinhos». E disse-o ao abbade; fez córar os sessenta annos do bom velho, palrando muito convencidamente dos seus deveres d'esposa para com o parocho.

O abbade, que ignorava as visitas do parocho todas as manhãs, assombrou-se. [610]

—Minha senhora, que está a dizer? que está a dizer? Caia em si... Que vergonha!... Imaginei que lhe tinham passado essas loucuras.

—Mas é o pai do meu filho, senhor abbade, disse ella, olhando-o muito séria.

Fatigou então Amaro toda uma semana com uma ternura pueril. Lembrava-lhe cada meia hora que era o «papá do seu Carlinhos».

—Bem sei, filha, bem sei, dizia elle impaciente. Obrigado. Não me gabo da honra...

Ella chorava, então, aninhada no sofá. Era necessaria toda uma complicação de caricias para a calmar. Fazia-o sentar n'um banquinho junto d'ella; tinha-o alli como um boneco, contemplando-o, coçando-lhe devagarinho a corôa; queria que se tirasse a photographia ao Carlinhos para a trazerem ambos n'uma medalha ao pescoço; e se ella morresse, elle havia de levar o Carlinhos á sepultura, ajoelhal-o, pôr-lhe as mãosinhas, fazel-o rezar pela mamã. Atirava-se então para a almofada, tapando o rosto com as mãos:

—Ai, pobre de mim, meu querido filho, pobre de mim!

—Cala-te, que vem gente! dizia-lhe Amaro furioso.

Ah, aquellas manhãs na Ricoça! Eram para elle como uma penalidade injusta. Ao entrar tinha de ir á velha escutar-lhe as lamurias. Depois, era aquella hora com Amelia, que o torturava com as pieguices d'um sentimentalismo hysterico,—estirada no sofá, [611] grossa como um tonel, com a face entumecida, os olhos papudos...

N'uma d'essas manhãs, Amelia, que se queixava de caimbras, quiz dar um passeio pelo quarto apoiada a Amaro: e ia-se arrastando, enorme no seu velho robe-de-chambre, quando se sentiram, em baixo no caminho, passos de cavallos: chegaram á janella—mas Amaro recuou vivamente, deixando Amelia que embasbacára com a face contra a vidraça. Na estrada, galhardamente montado n'uma egoa baia, passava João Eduardo de paletot branco e chapéo alto; ao lado trotavam os dois Morgaditos, um n'um poney, outro acorreado n'um burro; e atraz, a distancia, n'um passo de respeito e de cortejo, um criado de farda, de bota de cano e esporões enormes, com uma libré muito larga que lhe fazia na ilharga rugas grotescas, e no chapéo a roseta escarlate. Ella ficára assombrada, seguindo-os até que as costas do lacaio desappareceram à esquina da casa. Sem uma palavra, veio sentar-se no sofá. Amaro, que continuava passeando pelo quarto, teve então um risinho sarcastico:

—O idiota, de lacaio á retaguarda!

Ella não respondeu, muito escarlate. E Amaro, chocado, sahiu atirando com a porta, foi para o quarto de D. Josepha contar-lhe a cavalgada, e vituperar o Morgado.

—Um excommungado de criado de farda! exclamava a boa senhora, com as mãos apertadas na [612] cabeça. Que vergonha, senhor parocho, que vergonha para a nobreza d'estes reinos!

Desde esse dia Amelia não tornou a choramigar, se pela manhã o senhor parocho não vinha. Quem esperava agora com impaciencia era o senhor abbade Ferrão, pela tarde. Apoderava-se d'elle, queria-o n'uma cadeira junto ao canapé: e depois de rodeios demorados d'ave que tenteia a presa, cahia sobre a pergunta fatal—se tinha visto o senhor João Eduardo?

Queria saber o que elle dissera, se fallára n'ella, se a avistára á janella. Torturava-o com curiosidades sobre a casa do Morgado, a mobilia da sala, o numero de lacaios e de cavallos, se o criado de farda servia á mesa...

E o bom abbade respondia com paciencia—contente de a vêr esquecida do parocho, occupada de João Eduardo: tinha agora a certeza que aquelle casamento se faria: ella evitava, de resto, pronunciar sequer o nome d'Amaro, e uma vez mesmo respondeu ao abbade que lhe perguntava se o senhor parocho voltára á Ricoça:

—Ai, vem pela manhã vêr a madrinha... Mas eu não lhe appareço, que nem estou decente...

Todo o tempo que podia estar de pé, passava-o agora á janella, muito arranjada da cinta para cima que era o que se podia vêr da estrada—enxovalhada das saias para baixo. Estava esperando João Eduardo, os Morgados e o lacaio; e tinha de vez em quando, com effeito, o gozo de os vêr passar, n'aquelle [613] passo bem lançado de cavallos de preço, sobretudo o da egoa baia de João Eduardo, que elle defronte da Ricoça fazia sempre ladear, de chicote atravessado e perna á Marialva, como lhe ensinára o Morgado. Mas era o lacaio, sobretudo, que a encantava: e com o nariz nos vidros seguia-o n'um olhar guloso, até que á volta da estrada via desapparecer o pobre velho, de dorso corcovado, com a gola da farda até á nuca e as pernas bamboleantes.

E para João Eduardo que delicia aquelles passeios com os Morgaditos, na egoa baia! Nunca deixava de ir á cidade: fazia-lhe bater o coração o som das ferraduras sobre o lagedo: ia passar diante da Amparo da botica, diante do cartorio do Nunes que tinha a sua banca ao pé da janella, diante da Arcada, diante do senhor administrador que lá estava na varanda de binoculo para a Telles—e o seu desgosto era não poder entrar com a egoa, os Morgaditos e o lacaio pelo escriptorio do doutor Godinho que era no interior da casa.

Foi um dia, depois d'um d'esses passeios triumphaes, que voltando ás duas horas da Barrosa, ao chegar ao Poço das Bentas e ao subir para o caminho de carros, viu de repente o senhor padre Amaro que descia montado n'um garrano. Immediatamente João Eduardo fez caracolar a egoa. O caminho era tão estreito, que apesar de se chegarem às sebes quasi roçaram os joelhos—e João Eduardo pôde então, do alto da sua egoa de cincoenta moedas, agitando ameaçadoramente o chicote, esmagar [614] com um olhar o padre Amaro que se encolhia muito pallido, com a barba por fazer, a face biliosa, esporeando ferozmente o garrano ronceiro. No alto do caminho João Eduardo ainda parou, voltou-se sobre a sella, e viu o parocho que apeava á porta do casebre isolado onde ha pouco, ao passar, os Morgaditos tinham rido «do anão».

—Quem vive alli? perguntou João Eduardo ao lacaio.

—Uma Carlota... Má gente, snr. Joãosinho!

Ao passar na Ricoça, João Eduardo, como sempre, poz a passo a egoa baia. Mas não viu por traz dos vidros a costumada face pallida sob o lenço escarlate. As portadas da janella estavam meio cerradas; e ao portão, desatrellado com os varões em terra, o cabriolet do doutor Gouvêa.


É que tinha chegado emfim o dia! N'essa manhã viera da Ricoça um moço da quinta com um bilhete de Amelia quasi inintelligivel—Dionysia depressa, a coisa chegou! Trazia ordem tambem de ir chamar o senhor doutor Gouvêa. Amaro foi elle mesmo avisar a Dionysia.

Dias antes, tinha-lhe dito que D. Josepha, a propria D. Josepha, lhe inculcára uma ama—que elle já ajustára, grande mulher, rija como um castanheiro. E agora combinaram rapidamente que n'essa noite Amaro se postaria com a ama á portinha do [615] pomar, e Dionysia viria dar-lhe a criança bem atabafada.

—Ás nove da noite, Dionysia. E não nos faça esperar!—recommendou-lhe ainda Amaro vendo-a abalar n'um espalhafato.

Depois voltou a casa e fechou-se no quarto, face a face com aquella difficuldade que elle sentia como uma coisa viva fixal-o e interrogal-o:—Que havia de fazer á criança? Tinha ainda tempo d'ir aos Poyaes ajustar a outra ama, a boa ama que a Dionysia conhecia; ou podia montar a cavallo e ir á Barrosa fallar á Carlota... E alli estava, diante d'aquelles dois caminhos, hesitando n'uma agonia. Queria serenar, discutir aquelle caso como se fosse um ponto de theologia, pesando-lhe os prós e os contras: mas tinha temerariamente diante de si, em logar de dois argumentos, duas visões:—a criança a crescer e a viver nos Poyaes, ou a criança esganada pela Carlota a um canto da estrada da Barrosa...—E, passeando pelo quarto, suava d'angustia, quando no patamar a voz inesperada do Libaninho gritou:

—Abre, parochosinho, que sei que estás em casa!

Foi necessario abrir ao Libaninho, apertar-lhe a mão, offerecer-lhe uma cadeira. Mas o Libaninho felizmente não se podia demorar. Passára na rua, e subira a saber se o amigo parocho tinha noticias d'aquellas santinhas da Ricoça.

—Vão bem, vão bem, disse Amaro que obrigava a face a sorrir, a prazentear. [616]

—Eu não tenho podido ir lá, que tenho andado mais occupado!... Estou de serviço no quartel... Não te rias, parochosinho, que estou lá fazendo muita virtude... Metto-me com os soldadinhos, fallo-lhes das chagas de Christo...

—Andas a converter o regimento, disse Amaro que mexia nos papeis da mesa, passeava, n'uma inquietação d'animal preso.

—Não é para as minhas forças, parocho, que se eu pudesse!... Olha, agora vou eu levar a um sargento uns bentinhos... Foram benzidos pelo Saldanhinha, vão cheios de virtude. Hontem dei outros iguaes a um anspeçada, perfeito rapaz, um amor de rapaz... Puz-lh'os eu mesmo por baixo da camisola... Perfeito rapaz!...

—Devias deixar esses cuidados pelo regimento ao coronel, disse Amaro abrindo a janella, abafando d'impaciencia.

—Credo, olha o impio! Se o deixassem desbaptisava o regimento. Pois adeus, parochosinho. Estás amarellinho, filho... Precisas purga, eu sei o que isso é.

Ia a sahir, mas á porta, parando:

—Ai, dize cá, parochosinho, dize cá: tu ouviste alguma coisa?

—De quê?

—Foi o padre Saldanha que m'o disse. Diz que o nosso chantre declarára (palavras do Saldanhinha) que lhe constava que ia na cidade um escandalo com um senhor ecclesiastico... Mas não disse [617] quem nem o quê... O Saldanha quil-o sondar, mas o chantre diz que recebera só uma denuncia vaga, sem nome... Tenho estado a pensar: quem será?

—Pataratas do Saldanha...

—Ai, filho! Deus queira que sejam. Que quem folga são os impios... Quando fôres pela Ricoça dá recados áquellas santinhas...

E pulou pelos degraus a ir levar «a virtude» ao batalhão.

Amaro ficára aterrado. Era elle decerto, eram os seus amores com Amelia que já iam chegando ao vigario geral em denuncias tortuosas! E alli vinha agora aquelle filho, criado a meia legua da cidade, ficar como uma prova viva!... Parecia-lhe extraordinario, quasi sobrenatural, ter o Libaninho, que em dois annos não lhe viera a casa duas vezes, ter o Libaninho entrado com aquella nova terrivel, quando elle estava alli n'uma batalha com a consciencia. Era como a Providencia, que sob a fórma grotesca do Libaninho, vinha trazer-lhe o seu aviso, murmurar-lhe: «Não deixes viver quem te póde trazer o escandalo! Olha que já se suspeita de ti!»

Era decerto Deus apiedado que não queria que houvesse na terra mais um engeitado, mais um miseravel,—e que reclamava o seu anjo!...

Não hesitou: partiu para a estalagem do Cruz, e d'ahi a cavallo para a casa de Carlota.

Demorou-se lá até ás quatro horas.

De volta a casa atirou o chapéo para cima da cama, [618] e sentiu emfim um allivio de todo o seu sêr. Estava acabado! Lá fallára á Carlota e ao anão; lá lhe pagára um anno adiantado; agora era esperar pela noite!...

Mas na solidão do quarto toda a sorte de imaginações morbidas o assaltavam: via a Carlota a esganar a criancinha rôxa; via os cabos de policia mais tarde a desenterrar o cadaver, o Domingos da administração redigindo sobre um joelho o auto de corpo de delicto, e elle, de batina, arrastado para a cadeia de S. Francisco, em ferros, ao lado do anão! Tinha quasi vontade de montar a cavallo, voltar á Barrosa desfazer o ajuste. Mas uma inercia retinha-o. Depois, nada o forçava á noite a entregar a criança á Carlota... Podia leval-a bem agasalhada á Joanna Carreira, a boa ama dos Poyaes...

Para escapar áquellas idéas que lhe faziam sob o craneo um ruido de tormenta, sahiu, foi vêr Natario que já se erguia—e que lhe gritou immediatamente do fundo da poltrona:

—Então vossê viu, Amaro! O idiota, de lacaio atraz!

João Eduardo passára-lhe na rua, na egoa baia, com os Morgadinhos; e Natario desde então rugia de impaciencia de estár alli amarrado á cadeira e não poder recomeçar a campanha, expulsal-o por uma boa intriga da casa do Morgado, arrancar-lhe a egoa e o lacaio.

—Mas não as perde, em Deus me dando pernas... [619]

—Deixe lá o homem, Natario, disse Amaro.

Deixal-o! quando tinha uma idéa prodigiosa—que era provar ao Morgado, com documentos, que o João Eduardo era um beato! Que lhe parecia, ao amigo Amaro?

Era engraçado, com effeito. O homem não deixava de o merecer, só pela maneira como olhava para a gente de bem, do alto da egoa...—E Amaro fazia-se vermelho, ainda indignado do encontro, de manhã, no caminho de carros da Barrosa.

—Está claro! exclamou Natario. Para que somos nós sacerdotes de Christo? Para exaltar os humildes e derrubar os soberbos.

D'alli Amaro foi vêr D. Maria da Assumpção—que já se erguera tambem—que lhe fez a historia da sua bronchite e a enumeração dos ultimos peccados: o peor era que, para se distrahir um bocado na convalescença, recostava-se por traz da vidraça, e um carpinteiro que mórava defronte embasbacava para ella; e por influencia do maligno, não tinha forças para se retirar para dentro, e vinham-lhe pensamentos maus...

—Mas vossa senhoria não está com attenção, senhor parocho.

—Ora essa, minha senhora!

E apressou-se a pacificar-lhe os escrupulos—porque a salvação d'aquella velha alma idiota era para elle um emprego melhor que a mesma parochia.

Já escurecia quando entrou em casa. A Escolastica queixou-se da demora que lhe esturrára o jantar. [620] Mas Amaro tomou apenas um copo de vinho e uma garfada d'arroz, que enguliu de pé, olhando com terror pela janella a noite que impassivelmente cahia.

Entrava no quarto a vêr se os candieiros já estavam accêsos, quando o coadjutor appareceu. Vinha fallar-lhe sobre o baptisado do filho do Guedes, que estava marcado para o dia seguinte ás nove horas.

—Trago luz?—disse de dentro a criada sentindo a visita.

—Não! gritou logo Amaro.

Temia que o coadjutor visse a alteração que sentia nas faces, ou que se installasse para toda a noite.

—Diz que vem na Nação d'antes d'hontem um artigo muito bom, observou o coadjutor, grave.

—Ah! fez Amaro.

Passeava no seu trilho costumado, do lavatorio para a janella; parava ás vezes a rufar nos vidros; já se tinham accendido os candieiros.

Então o coadjutor, chocado com aquella treva do quarto e aquelle passear de fera n'uma jaula, ergueu-se, e com dignidade:

—Estou a incommodar talvez...

—Não!

E o coadjutor satisfeito sentou-se, com o seu guardachuva entre os joelhos.

—Agora anoitece mais cedo, disse.

—Anoitece...

Emfim Amaro desesperado declarou-lhe que tinha uma enxaqueca odiosa, que se ia encostar: e o homem [621] sahiu, depois de lhe lembrar ainda o baptisado do menino do seu amigo Guedes.

Amaro partiu logo para a Ricoça. Felizmente a noite estava tenebrosa e quente, annunciando chuva. Ia agora tomado d'uma esperança que lhe fazia bater o coração: era que a criança nascesse morta! E era bem possivel. A S. Joanneira em nova tivera duas crianças mortas; a anciedade em que vivera Amelia devia ter perturbado a gestação. E se ella morresse tambem? Então a esta idéa, que nunca lhe acudira, invadiu-o bruscamente uma piedade, uma ternura por aquella boa rapariga que o amava tanto, e que agora, por obra d'elle, gritava dilacerada de dôres. E todavia, se ambos morressem, ella e a criança, era o seu peccado e o seu erro que cahiam para sempre nos escuros abysmos da eternidade... Elle ficava, como antes da sua vinda a Leiria, um homem tranquillo, occupado da sua igreja, d'uma vida limpa e lavada como uma pagina branca!

Parou junto ao casebre em ruinas á beira da estrada, onde devia estar a pessoa que da Barrosa vinha buscar a criança: não se tinha decidido se seria o homem ou a Carlota: e Amaro receava encontrar o anão, para lhe levar o filho, com aquelles olhos raiados d'um sangue mau. Fallou para dentro, para as trevas do casebre:

—Olá!

Foi um allivio quando a clara voz da Carlota disse da negrura:

—Cá está! [622]

—Bem, é esperar, snr.a Carlota.

Estava contente: parecia-lhe que não tinha nada a temer, se o filho partisse aninhado contra aquelle robusto seio de quarentona fecunda, tão fresca e tão lavada.

Foi então rondar a casa. Estava apagada e muda, como um empastamento mais denso de sombra n'aquella lugubre noite de dezembro. Nem uma fenda de luz sahia das janellas do quarto d'Amelia. No ar muito pesado nenhuma folhagem ramalhava. E a Dionysia não apparecia.

Aquella demora torturava-o. Podia passar gente e vél-o rondar na estrada. Mas repugnava-lhe ir occultar-se no casebre em ruinas ao pé de Carlota. Foi andando ao comprido do muro do pomar, voltou,—e viu então na porta envidraçada do terraço uma claridade de luz apparecer.

Correu para a portinha verde do pomar que quasi immediatamente se abriu; e a Dionysia, sem uma palavra, poz-lhe nos braços um embrulho.

—Morta? perguntou elle.

—Qual! Vivo! Um rapagão!

E fechou a porta devagarinho, quando os cães, farejando rumor, começavam a ladrar.

Então o contacto do seu filho, contra o seu peito, desmanchou como um vendaval todas as idéas d'Amaro. O quê! ir dal-o áquella mulher, á tecedeira d'anjos, que na estrada o atiraria a algum vallado, ou em casa o arremessaria á latrina? Ah! não, era o seu filho! [623]

Mas que fazer, então? Não tinha tempo de correr aos Poyaes e acordar a outra ama... A Dionysia não tinha leite... Não o podia levar para a cidade... Oh! que desejo furioso de bater áquella porta da quinta, precipitar-se para o quarto d'Amelia, metter-lhe o pequerruchinho na cama, muito agasalhado, e todos tres ficarem alli como no conchego d'um céo! Mas quê, era padre! Maldita fosse a religião que assim o esmagava!

De dentro do embrulho sahiu um gemido. Correu então para o casebre—quasi esbarrou com a Carlota, que se apoderou logo da criança.

—Ahi está, disse elle. Mas ouça lá. Isto agora é sério. Agora é outra coisa. Olhe que o não quero morto... É para o tratar. O que se passou não vale... É para o criar! é para viver. Vossê tem a sua fortuna... Trate d'elle!...

—Não tem duvida, não tem duvida, dizia a mulher apressada.

—Escute... A criança não vai bem agasalhada. Ponha-lhe o meu capote.

—Vai bem, senhor, vai bem.

—Não vai, com mil diabos! É o meu filho! Ha de levar o capote! Não quero que morra de frio!

Atirou-lh'o aos hombros com força, traçando-lh'o sobre o peito, agasalhando a criança;—e a mulher já enfastiada metteu rapidamente pela estrada.

Amaro ficou alli plantado no meio do caminho, vendo o vulto perder-se na negrura. Então todos os seus nervos, depois d'aquelle choque, se relaxaram [624] n'uma fraqueza de mulher sensivel—e rompeu a chorar.

Muito tempo rondou a casa. Mas ella permanecia na mesma escuridão, n'aquelle silencio que o aterrava. Depois, triste e fatigado, veio voltando para a cidade, quando batiam as dez badaladas na Sé.


A essa hora, na sala de jantar da Ricoça, o doutor Gouvêa ceava tranquillamente o frango assado que lhe preparára a Gertrudes, para depois das canceiras do dia. O abbade Ferrão, sentado junto da mesa, assistia-lhe á ceia; viera munido dos sacramentos para o caso de haver perigo. Mas o doutor estava satisfeito; durante as oito horas de dôres a rapariga mostrára-se corajosa; o parto fôra feliz, de resto, e sahira um rapagão que fazia muita honra ao papá.

O bom abbade Ferrão baixava castamente os olhos áquelles detalhes, no seu pudor de sacerdote.

—E agora, dizia o doutor trinchando o peito do frango, agora que eu introduzi a criança no mundo, os senhores (e quando digo os senhores, quero dizer a Igreja) apoderam-se d'elle e não o largam até á morte. Por outro lado, ainda que menos sôfregamente, o Estado não o perde de vista... E ahi começa o desgraçado a sua jornada do berço á sepultura, entre um padre e um cabo de policia!

O abbade curvou-se, e tomou uma estrondosa pitada preparando-se para a controversia. [625]

—A Igreja, continuava o doutor com serenidade, começa, quando a pobre creatura ainda nem tem sequer a consciencia da vida, por lhe impôr uma religião...

O abbade interrompeu, meio sério, meio rindo:

—Ó doutor, ainda que não seja senão por caridade com a sua alma, devo advertil-o que o sagrado Concilio de Trento, canon decimo terceiro, commina a pena d'excommunhão contra todo o que disser que o baptismo é nullo, por ser imposto sem a aceitação da razão.

—Tomo nota, abbade. Eu estou acostumado a essas amabilidades do Concilio de Trento para commigo e outros collegas...

—Era uma assembléa respeitavel! acudiu o abbade já escandalisado.

—Sublime, abbade. Uma assembléa sublime. O Concilio de Trento e a Convenção foram as duas mais prodigiosas assembléas d'homens que a terra tem presenciado...

O abbade fez uma visagem de repugnacia áquelle cotejo irreverente entre os santos auctores da doutrina e os assassinos do bom rei Luiz XVI.

Mas o doutor proseguiu:

—Depois, a Igreja deixa a criança em paz algum tempo emquanto ella faz a sua dentição e tem o seu ataque de lombrigas...

—Vá, vá, doutor! murmurava o abbade, escutando-o pacientemente, de olhos cerrados—como significando [626] «anda, anda, enterra bem essa alma no abysmo de fogo e pez»!

—Mas quando se manifestam no pequeno os primeiros symptomas de razão, continuava o doutor, quando se torna necessario que elle tenha, para o distinguir dos animaes, uma noção de si mesmo e do universo, então entra-lhe a Igreja em casa e explica-lhe tudo! Tudo! Tão completamente, que um gaiato de seis annos que não sabe ainda o b-a-bá tem uma sciencia mais vasta, mais certa, que as reaes academias combinadas de Londres, Berlim e Paris! O velhaco não hesita um momento para dizer como se fez o universo e os seus systemas planetarios; como appareceu na terra a creação; como se succederam as raças; como passaram as revoluções geologicas do globo; como se formaram as linguas; como se inventou a escripta... Sabe tudo: possue completa e immutavel a regra para dirigir todas as acções e formar todos os juizos; tem mesmo a certeza de todos os mysterios; ainda que seja myope como uma toupeira vê o que se passa na profundidade dos céos e no interior do globo; conhece, como se não tivesse feito senão assistir a esse espectaculo, o que lhe ha de succeder depois de morrer... Não ha problema que não decida... E quando a Igreja tem feito d'este marmanjo uma tal maravilha de saber, manda-o então aprender a lêr... O que eu pergunto é: para que?

A indignação tinha emmudecido o abbade. [627]

—Diga lá abbade, para que os mandam os senhores ensinar a lêr? Toda a sciencia universal, o res scibilis, está no Catecismo: é metter-lh'o na memoria, e o rapaz possue logo a sciencia e consciencia de tudo... Sabe tanto como Deus... De facto, é Deus mesmo.

O abbade pulou.

—Isso não é discutir, exclamou, isso não é discutir!... Isso são chalaças á Voltaire! Essas coisas devem-se tratar mais d'alto...

—Como chalaças, abbade? Tome um exemplo: a formação das linguas. Como se formaram? Foi Deus, que descontente com a Torre de Babel...

Mas a porta da sala abriu-se, e appareceu a Dionysia. Havia pouco o doutor tinha-lhe dado uma desanda no quarto d'Amelia; e agora a matrona fallava-lhe sempre encolhida de terror.

—Senhor doutor, disse ella no silencio que se fez, a menina acordou e diz que quer o filho.

—E então? A criança levaram-n'a, não?

—A criança levaram-n'a... disse a Dionysia.

—Bem, acabou-se...

Dionysia ia fechar a porta, mas o doutor chamou-a.

—Ouça lá, diga-lhe que a criança vem ámanhã... Que ámanhã sem falta que lh'a trazem. Minta. Minta como um cão; aqui o senhor abbade dá licença... Que durma, que socegue.

A Dionysia retirou-se. Mas a controversia não recomeçou: diante d'aquella mãi que acordava depois [628] da fadiga do parto e reclamava o seu filho, o filho que lhe tinham levado para longe e para sempre, os dois velhos esqueceram a Torre de Babel e a formação das linguas. O abbade sobretudo parecia commovido. Mas o doutor não tardou, sem piedade, a lembrar-lhe que eram aquellas as consequencias da situação do padre na sociedade...

O abbade baixou os olhos, occupado na sua pitada, sem responder, como ignorando que houvesse um padre n'aquella historia infeliz.

O doutor então, seguindo a sua idéa, discursou contra a preparação e educação ecclesiastica.

—Ahi tem o abbade uma educação dominada inteiramente pelo absurdo: resistencia ás mais justas solicitações da natureza, e resistencia aos mais elevados movimentos da razão. Preparar um padre é crear um monstro que ha de passar a sua desgraçada existencia n'uma batalha desesperada contra os dois factos irresistiveis do universo—a força da Materia e a força da Razão!

—Que está o senhor a dizer? exclamou assombrado o abbade.

—Estou a dizer a verdade. Era que consiste a educação d'um sacerdote? Primò: em o preparar para o celibato e para a virgindade; isto é, para a suppressão violenta dos sentimentos mais naturaes. Secundò: em evitar todo o conhecimento e toda a idéa que seja capaz d'abalar a fé catholica; isto é, a suppressão forçada do espirito d'indagação e d'exame, portanto de toda a sciencia real e humana... [629]

O abbade erguera-se, ferido d'uma piedosa indignação:

—Pois o senhor nega á Igreja a sciencia?

—Jesus, meu caro abbade, continuou tranquillamente o doutor, Jesus, os seus primeiros discipulos, o illustre S. Paulo representaram em parabolas, em epistolas, n'um prodigioso fluxo labial, que as producções do espirito humano eram inuteis, pueris, e sobretudo perniciosas...

O abbade passeava pela sala, indo contra um e outro movel como um boi espicaçado, apertando as mãos na cabeça na desolação d'aquellas blasphemias; não se conteve, gritou:

—O senhor não sabe o que diz!... Perdão, doutor, peço-lhe humildemente perdão... O senhor faz-me cahir em peccado mortal... Mas isso não é discutir... Isso é fallar com a leviandade d'um jornalista...

Lançou-se então com calor n'uma dissertação sobre a sabedoria da Igreja, os seus altos estudos gregos e latinos, toda uma philosophia creada pelos santos padres...

—Leia S. Basilio! exclamou. Lá verá o que elle diz dos estudos dos auctores profanos, que são a melhor preparação para os estudos sagrados! Leia a Historia dos mosteiros na meia idade! Era lá que estava a sciencia, a philosophia...

—Mas que philosophia, senhor, mas que sciencia! Por philosophia meia duzia de concepções d'um espirito mythologico, em que o mysticismo é posto [630] em logar dos instinctos sociaes... E que sciencia! Sciencia de commentadores, sciencia de grammaticos... Mas vieram outros tempos, nasceram sciencias novas que os antigos tinham ignorado, a que o ensino ecclesiastico não offerecia nem base nem methodo, estabeleceu-se logo o antagonismo entre ellas e a doutrina catholica!... Nos primeiros tempos, a Igreja ainda tentou supprimil-as pela perseguição, a masmorra, o fogo! Escusa de se torcer, abbade... O fogo, sim, o fogo e a masmorra. Mas agora não o póde fazer e limita-se a vituperal-as em mau latim... E no emtanto continúa a dar nos seus seminarios e nas suas escólas o ensino do passado, o ensino anterior a essas sciencias, ignorando-as, e desprezando-as, refugiando-se na escolastica... Escusa d'apertar as mãos na cabeça... Estranha ao espirito moderno, hostil nos seus principios e nos seus methodos ao desenvolvimento espontaneo dos conhecimentos humanos... O senhor não é capaz de negar isto! Veja o Syllabus no seu canon terceiro excommungando a Razão... No seu canon decimo terceiro...

A porta abriu-se timidamente; era ainda a Dionysia:

—A pequena está a choramingar, diz que quer a criança.

—Mau, mau! disse o doutor.

E depois d'um momento:

—Que tal aspecto tem ella? Está córada? Está inquieta?

—Não senhor, está bem. Só a choramingar, a [631] fallar no pequeno... Diz que o quer hoje por força...

—Converse com ella, distraia-a... Veja se ella adormece...

A Dionysia retirou-se; e o abbade logo com cuidado:

—Ó doutor, suppõe que lhe possa fazer mal o affligir-se?

—Póde-lhe fazer mal, abbade, póde—disse o doutor que rebuscava na sua pharmacia portatil. Mas eu vou-a fazer dormir... Pois é verdade, a Igreja hoje é uma intrusa, abbade!

O abbade tornou a levar as mãos á cabeça.

—Escusa de ir mais longe, abbade. Veja a Igreja em Portugal. É grato observar-lhe o estado de decadencia...

Pintou-lh'o a largos traços, de pé, com o seu frasco na mão. A Igreja fôra a Nação; hoje era uma minoria tolerada e protegida pelo Estado. Dominára nos tribunaes, nos conselhos da corôa, na fazenda, na armada, fazia a guerra e a paz; hoje um deputado da maioria tinha mais poder que todo o clero do reino. Fôra a sciencia no paiz; hoje tudo o que sabia era algum latim macarronico. Fôra rica, tinha possuido no campo districtos inteiros e ruas inteiras na cidade; hoje dependia para o seu triste pão diario do ministro da justiça, e pedia esmola á porta das capellas. Recrutára-se entre a nobreza, entre os melhores do reino; e hoje, para reunir um pessoal, via-se no embaraço e tinha de o ir buscar aos engeitados da Misericordia. Fôra a depositaria da tradição nacional, [632] do ideal collectivo da patria; e hoje, sem communicação com o pensamento nacional (se é que o ha) era uma estrangeira, uma cidadã de Roma, recebendo de lá a lei e o espirito...

—Pois se está assim tão prostrada, mais uma razão para a amar!—disse o abbade, erguendo-se escarlate.

Mas a Dionysia tinha de novo apparecido á porta.

—Que temos mais?

—A menina está-se a queixar d'um peso na cabeça. Diz que sente faíscas diante dos olhos...

O doutor então immediatamente, sem uma palavra, seguiu a Dionysia. O abbade, só, passeava pela sala ruminando toda uma argumentação erriçada de textos, de nomes formidaveis de theologos, que ia fazer desabar sobre o doutor Gouvêa. Mas, meia hora passou, a luz do candieiro ia esmorecendo, e o doutor não voltou.


Então aquelle silencio da casa, onde só o som dos seus passos sobre o soalho da sala punha uma nota viva, começou a impressionar o velho. Abriu a porta devagarinho, escutou; mas o quarto d'Amelia era muito afastado, ao fim da casa, ao pé do terraço; não vinha de lá nem rumor nem luz. Recomeçou o seu passeio solitario na sala, n'uma tristeza indefinida que o ia invadindo. Desejaria bem ir vêr tambem a doente; mas o seu caracter, o pudor [633] sacerdotal não lhe permittiam aproximar-se sequer d'uma mulher no leito, em trabalho de parto, a não ser que o perigo reclamasse os sacramentos. Outra hora mais longa, mais funebre, passou. Então, em pontas de pés, córando na escuridão d'aquella audacia, foi até ao meio do corredor: agora, aterrado, sentia no quarto d'Amelia um ruido confuso e surdo de pés movendo-se vivamente no soalho, como n'uma lucta. Mas nem um ai, nem um grito. Recolheu á sala, e abrindo o seu Breviario começou a rezar. Sentiu os chinelos da Gertrudes passarem rapidamente, n'uma carreira. Ouviu uma porta a distancia bater. Depois o arrastar no soalho d'uma bacia de latão. E emfim o doutor appareceu.

A sua figura fez empallidecer o abbade: vinha sem gravata, com o collarinho espedaçado; os botões do collete tinham saltado; e os punhos da camisa, voltados para traz, estavam todos manchados de sangue.

—Alguma coisa, doutor?

O doutor não respondeu, procurando rapidamente pela sala o seu estojo, com a face animada d'um calor de batalha. Ia já sahir com o estojo, mas lembrando-lhe a pergunta anciosa do abbade:

—Tem convulsões, disse.

O abbade então deteve-o á porta, e muito grave, muito digno:

—Doutor, se ha perigo, peço-lhe que se lembre... É uma alma christã em agonia, e eu estou aqui. [634]

—Certamente, certamente...

O abbade tornou a ficar só, esperando. Tudo dormia na Ricoça, D. Josepha, os caseiros, a quinta, os campos em redor. Na sala, um relogio de parede, enorme e sinistro, que tinha no mostrador a carranca do sol e em cima sobre o caixilho a figura esculpida em pau d'uma coruja pensativa, um movel de castello antigo, bateu a meia noite, depois uma hora. O abbade a cada momento ia até ao meio do corredor: era o mesmo rumor de pés n'uma lucta; outras vezes um silencio tenebroso. Voltava então para o seu Breviario. Meditava n'aquella pobre rapariga que, além no quarto, estava talvez no momento que ia decidir da sua eternidade: não tinha ao pé nem a mãi, nem as amigas: na memoria apavorada devia passar-lhe a visão do peccado: diante dos olhos turvos apparecia-lhe a face triste do Senhor offendido: as dôres contorciam o seu corpo miseravel: e na escuridão em que ia penetrando, sentia já o halito ardente da aproximação de Satanaz. Temeroso fim do tempo e da carne!—Então rezava fervorosamente por ella.

Mas depois pensava no outro que fôra uma metade do seu peccado, e que agora na cidade, estirado na cama, resonava tranquillamente. E rezava então tambem por elle.

Tinha sobre o Breviario um pequeno crucifixo. E contemplava-o com amor, abysmava-se enternecido na certeza da sua força, contra a qual era bem pouca a sciencia do doutor e todas as vaidades da razão! [635] Philosophias, idéas, glorias profanas, gerações e imperios passam: são como os suspiros ephemeros do esforço humano: só ella permanece e permanecerá, a cruz—esperança dos homens, confiança dos desesperados, amparo dos frageis, asylo dos vencidos, força maior da humanidade: crux triumphus adversus demonios, crux oppugnatorum murus...

Então o doutor entrou, muito escarlate, vibrante d'aquella tremenda batalha que estava dando lá dentro á morte; vinha buscar outro frasco; mas abriu a janella, sem uma palavra, para respirar um momento uma golfada d'ar fresco.

—Como vai ella? perguntou o abbade.

—Mal, disse o doutor sahindo.

O abbade, então, ajoelhou, balbuciou a oração de S. Fulgencio:

—Senhor, dá-lhe primeiro a paciencia, dá-lhe depois a misericordia...

E alli ficou, com a face nas mãos, apoiado á beira da mesa.

A um rumor de passos na sala ergueu a cabeça. Era a Dionysia, que suspirava, recolhendo todos os guardanapos que encontrava nas gavetas do aparador.

—Então, senhora, então? perguntou-lhe o abbade.

—Ai, senhor abbade, está perdidinha... Depois das convulsões que foram d'arripiar, cahiu n'aquelle somno, que é o somno da morte... [636]

E olhando para todos os cantos como para se assegurar da solidão, disse muito excitada:

—Eu não quiz dizer nada... Que o senhor doutor tem um genio!... Mas sangrar a rapariga n'aquelle estado é querer matal-a... Que ella tinha perdido pouco sangue, é verdade... Mas nunca se sangra ninguem em semelhante momento. Nunca, nunca!

—O senhor doutor é homem de muita sciencia...

—Póde ter a sciencia que quizer... Eu tambem não sou nenhuma tola... Tenho vinte annos d'experiencia... Nunca me morreu nenhuma nas mãos, senhor abbade... Sangrar em convulsões! Até causa horror!...

Estava indignada. O senhor doutor tinha torturado a creaturinha. Até lhe quizera administrar chloroformio...

Mas a voz do doutor Gouvêa berrou por ella do fundo do corredor—e a matrona abalou, com o seu mólho de guardanapos.

O medonho relogio, com a sua coruja pensativa, bateu as duas horas, depois as tres... O abbade, agora, cedia a espaços a uma fadiga de velho, cerrando um momento as palpebras. Mas resistia bruscamente: ia respirar o ar pesado da noite, olhar aquella treva de toda a aldeia; e voltava a sentar-se, a murmurar, com a cabeça baixa, as mãos postas sobre o Breviario:

—Senhor, volta os teus olhos misericordiosos para aquelle leito d'agonia... [637]

Foi então Gertrudes que appareceu commovida. O senhor doutor mandára-a a baixo acordar o moço para pôr a egoa ao cabriolet.

—Ai, senhor abbade, pobre creaturinha! Ia tão bem, e de repente isto... Que foi por lhe tirarem o filho... Eu não sei quem é o pai, mas o que sei é que n'isto tudo anda um peccado e um crime!...

O abbade não respondeu, orando baixo pelo padre Amaro.

O doutor então entrou com o seu estojo na mão:

—Se quizer, abbade, póde ir, disse.

Mas o abbade não se apressava, olhando o doutor, com uma pergunta a bailar-lhe nos labios entreabertos, e retendo-a por timidez: emfim, não se conteve, e n'um tom de medo:

—Fez-se tudo, não ha remedio, doutor?

—Não.

—É que nós, doutor, não devemos aproximar-nos d'uma mulher em parto illegitimo senão n'um caso extremo...

—Está n'um caso extremo, senhor abbade, disse o doutor, vestindo já o seu grande casacão.

O abbade então recolheu o Breviario, a cruz—mas antes de sahir, julgando do seu dever de sacerdote pôr diante do medico racionalista a certeza da eternidade mystica que se desprende do momento da morte, murmurou ainda:

—É n'este instante que se sente o terror de Deus, o vão do orgulho humano... [638]

O doutor não respondeu, occupado a afivelar o seu estojo.

O abbade sahiu—mas, já no meio do corredor, voltou ainda, e fallando com inquietação:

—O doutor desculpe... Mas tem-se visto, depois dos soccorros da religião, os moribundos voltarem a si de repente, por uma graça especial... A presença do medico então póde ser util...

—Eu ainda não vou, ainda não vou, disse o doutor, sorrindo involuntariamente de vêr a presença da Medicina reclamada para auxiliar a efficacia da Graça.

Desceu, a vêr se estava prompto o cabriolet.

Quando voltou ao quarto d'Amelia, a Dionysia e a Gertrudes, de rojos ao lado da cama, rezavam. O leito, todo o quarto estava revolvido como um campo de batalha. As duas velas consumidas extinguiam-se. Amelia estava immovel, com os braços hirtos, as mãos crispadas d'uma côr de purpura escura—e a mesma côr mais arroxeada cobria-lhe a face rigida.

E debruçado sobre ella, com o crucifixo na mão, o abbade dizia ainda, n'uma voz d'angustia:

Jesu, Jesu, Jesu! Lembra-te da graça de Deus! Tem fé na misericordia divina! Arrepende-te no seio do Senhor! Jesu, Jesu, Jesu!

Por fim, sentindo-a morta, ajoelhou, murmurando o Miserere. O doutor que ficára á porta retirou-se devagarinho, atravessou em bicos de pés o corredor, e desceu á rua, onde o moço segurava a egoa atrellada. [639]

—Vamos ter agua, senhor doutor, disse o rapaz bocejando de somno.

O doutor Gouvêa ergueu a gola do paletot, accommodou o seu estojo no assento—e d'ahi a um momento o cabriolet rodava surdamente pela estrada, sob a primeira pancada de chuva, cortando a escuridão da noite com o clarão vermelho das suas duas lanternas.



XXV



Ao outro dia desde as sete da manhã, o padre Amaro esperava a Dionysia em casa, postado á janella, com os olhos cravados na esquina da rua, sem reparar na chuva miudinha que lhe fustigava a face. Mas a Dionysia não apparecia: e elle teve de partir para a Sé, amargurado e doente, a baptisar o filho do Guedes.

Foi uma pesada tortura para elle vêr aquella gente alegre que punha na gravidade da Sé, mais sombria por esse escuro dia de dezembro, todo um rumor mal contido de regosijo domestico e de festa paterna; o papá Guedes resplandecente de casaca e gravata branca, o padrinho compenetrado com uma grande camelia ao peito, as senhoras de gala, e sobretudo a parteira rechonchuda, passeando com [642] pompa um montão de rendas engommadas e de laçarotes azues onde mal se percebiam duas bochechinhas trigueiras. Ao fundo da igreja, com o pensamento bem longe na Ricoça e na Barrosa, foi engorolando á pressa as ceremonias: soprando em cruz sobre a face do pequerrucho para expulsar o Demonio que já habitava aquellas carninhas tenras; impondo-lhe o sal sobre a bôca para que elle se desgostasse para sempre do sabor amargo do peccado e tomasse gosto a nutrir-se só da verdade divina; tocando-o com saliva nas orelhas e nas narinas, para que elle não escutasse jámais as solicitações da carne e jámais respirasse os perfumes da terra. E em roda, com tochas na mão, os padrinhos, os convidados, na fadiga que davam tantos latins rosnados á pressa, só se occupavam do pequeno, n'um receio que elle não respondesse com algum desacato impudente ás tremendas exhortações que lhe fazia a Igreja sua Mãi.

Amaro, então, pondo de leve o dedo sobre a touquinha branca, exigiu do pequerrucho que elle, alli em plena Sé, renunciasse para sempre a Satanaz, ás suas pompas e ás suas obras. O sacristão Mathias, que dava em latim as respostas rituaes, renunciou por elle—emquanto o pobre pequerrucho abria a boquinha a procurar o bico da mama. Emfim o parocho dirigiu-se á pia baptismal seguido de toda a familia, das velhas devotas que se tinham juntado, de gaiatos que esperavam uma distribuição de patacos. Mas foi toda uma atrapalhação para fazer as [643] unções: a parteira commovida não atinava a desapertar os laçarotes do chambre, para pôr a nú os hombrosinhos, o peito do pequeno; a madrinha quiz ajudal-a: mas deixou escorregar a tocha, alastrou de cera derretida o vestido d'uma senhora, uma visinha dos Guedes, que ficou embezerrada de raiva.

—Franciscus, credis?—perguntava Amaro.

O Mathias apressou-se a affirmar, em nome de Francisco:

—Credo.

—Franciscus, vis baptisari?

O Mathias:

—Volo.

Então a agua lustral cahiu sobre a cabecinha redonda como um melão tenro: a criança agora perneava n'uma perrice.

—Ego te baptiso, Franciscus, in nomine Patris... et Filiis... et Espiritus Sancti...

Emfim, acabára! Amaro correu á sacristia a desvestir-se—emquanto a parteira grave, o papá Guedes, as senhoras enternecidas, as velhas devotas e os gaiatos sahiam ao repique dos sinos; e agachados sob os guardachuvas, chapinhando a lama, lá iam levando em triumpho Francisco, o novo christão.

Amaro galgou os degraus de casa com o presentimento que ia encontrar a Dionysia.

Lá estava, com effeito, sentada no quarto, esperando-o, amarrotada, enxovalhada da lucta da noite e da lama da estrada: e apenas o viu começou a choramingar. [644]

—Que é, Dionysia?

Ella rompeu em soluços, sem responder.

—Morta! exclamou Amaro.

—Ai, fez-se-lhe tudo, filho, fez-se-lhe tudo! gritou emfim a matrona.

Amaro tombou para os pés da cama como morto tambem.

A Dionysia berrou pela criada. Inundaram-lhe a face d'agua, de vinagre. Elle recuperou-se um pouco, muito pallido: afastou-as com a mão, sem fallar; e atirou-se de bruços para sobre o travesseiro, n'um chôro desesperado,—emquanto as duas mulheres consternadas iam recolhendo á cozinha.

—Parece que tinha muita amizade á menina, começou a Escolastica, fallando baixo como na casa d'um moribundo.

—Costume d'ir por lá. Foi hospede tanto tempo... Ai, eram como irmãos...—disse a Dionysia, ainda chorosa.

Fallaram então de doenças de coração—porque a Dionysia contára á Escolastica que a pobre menina tinha morrido d'um aneurisma rebentado. A Escolastica tambem soffria do coração; mas n'ella eram flatos, dos maus tratos que lhe dera o marido... Ah, tinha sido bem infeliz tambem!

—Vossemecê toma uma gotinha de café, snr.a Dionysia?

—Olhe, a fallar a verdade, snr.a Escolastica, tomava uma gotinha de geropiga...

A Escolastica correu á taberna ao fim da rua, [645] trouxe a geropiga n'um copo de quartilho debaixo do avental: e ambas á mesa, uma molhando sopas no café, outra escorropichando o copo, concordavam, com suspiros, que n'este mundo tudo eram sustos e lagrimas.

Deram onze horas: e a Escolastica pensava em levar um caldo ao senhor parocho, quando elle chamou de dentro. Estava de chapéo alto, com o casaco abotoado, os olhos vermelhos como carvões...

—Escolastica, vá a correr ao Cruz que me mande um cavallo... Mas depressa.

Chamou então a Dionysia: e sentado ao pé d'ella, quasi contra os joelhos da mulher, com a face rigida e livida como um marmore, escutou em silencio a historia da noite—as convulsões de repente, tão fortes que ella, a Gertrudes e o senhor doutor mal a podiam segurar! o sangue, as prostrações em que cahia! depois a anciedade da asphyxia que a fazia tão rôxa como a tunica d'uma imagem...

Mas o moço do Cruz chegára com o cavallo. Amaro tirou d'uma gaveta, d'entre roupa branca, um pequeno crucifixo, deu-o á Dionysia que ia voltar á Ricoça para ajudar a amortalhar a menina.

—Que lhe ponham este crucifixo no peito, tinha-m'o ella dado...

Desceu, montou; e apenas na estrada da Barrosa despediu a galope. Não chovia, agora; e entre as nuvens pardas algum raio fraco do sol de dezembro fazia brilhar a relva, as pedras molhadas.

Quando chegou ao pé do poço entulhado, d'onde [646] se avistava a casa de Carlota, teve de parar, para deixar passar um longo rebanho d'ovelhas que tomava o caminho; e o pastor, com uma pelle de cabra ao hombro e a borracha a tiracollo, fez-lhe lembrar de repente Feirão, toda a vida passada, que lhe voltava por fragmentos bruscos—aquellas paizagens afogadas nos vapores pardacentos da serra; a Joanna rindo estupidamente dependurada da corda do sino; as suas ceias de cabrito assado na Gralheira, com o abbade, defronte da chaminé, onde a lenha verde estalava; os longos dias em que se desesperava na tristeza da residencia, vendo fóra sem cessar cahir a neve... E veio-lhe um desejo ancioso d'essas solidões da serra, d'essa existencia de lobo, longe dos homens e das cidades, sepultado lá com a sua paixão.

A porta da Carlota estava fechada. Bateu, foi de roda chamar, atirando a voz por cima do telhado dos curraes, para o pateo, onde sentia cacarejar os gallos. Ninguem respondeu. Seguiu então pelo caminho da aldeia, levando a egoa pela arreata; parou na taberna, onde uma mulher obesa fazia meia sentada á porta. Dentro, no escuro da baiuca, dois homens com os seus quartilhos ao lado, batiam as cartas n'uma bisca renhida; e um rapazola d'uma amarellidão de sezões, com um lenço amarrado na cabeça, olhava-lhes o jogo tristemente.

A mulher tinha justamente visto passar a snr.a Carlota, que até parára a comprar um quartilho de azeite. Devia estar em casa da Michaela, ao adro. [647] Chamou para dentro; uma rapariguita vesga appareceu de traz da sombra das pipas.

—Corre, vai á Michaela, dize à snr.a Carlota que está aqui um senhor da cidade.

Amaro voltou para a porta da Carlota, esperou sentado n'uma pedra, com o seu cavallo pela redea. Mas aquella casa fechada e muda aterrava-o. Foi pôr o ouvido á fechadura, na esperança d'ouvir um chôro, uma rabuje de criança. Dentro pesava um silencio de caverna abandonada. Mas tranquillisava-o a idéa que a Carlota teria levado a criança comsigo, para Michaela. Devia realmente ter perguntando á mulher na taberna, se a Carlota trazia uma criança ao collo... E olhava a casa bem caiada, com a sua janella em cima que tinha uma cortininha de cassa, um luxo tão raro n'aquellas freguezias pobres; recordava a boa ordem, o escarolado da louça da cozinha... Decerto, o pequerrucho devia ter tambem um berço aceado...

Ah, estava doido decerto na vespera, quando puzera alli, na mesa da cozinha, quatro libras em ouro, preço adiantado d'um anno de criação, e dissera cruelmente ao anão—«conto comsigo»! Pobre pequerruchinho!... Mas a Carlota comprehendera bem, á noite na Ricoça, que elle agora queria-o vivo, o seu filho, e creado com mimo!... Todavia não o deixaria alli, não, sob o olho raiado de sangue do anão... Leval-o-hia essa noite á Joanna Carreira dos Poyaes... [648]

Que as sinistras historias da Dionysia, a tecedeira d'anjos, eram uma legenda insensata. A criança estava muito regalada em casa de Michaela, chupando aquelle bom peito de quarentona sã... E vinha-lhe então o mesmo desejo de deixar Leiria, ir enterrar-se em Feirão, levar comsigo a Escolastica, educar lá a criança como sobrinho, revivendo n'elle largamente todas as emoções d'aquelle romance de dois annos; e alli passaria n'uma paz triste, na saudade de Amelia, até ir como o seu antecessor, o abbade Gustavo que tambem creára um sobrinho em Feirão, repousar para sempre no pequeno cemiterio, de verão sob as flôres silvestres, de inverno sob a neve branca.

Então a Carlota appareceu; e ficou attonita ao reconhecer Amaro, sem passar da cancella, com a testa franzida, a sua bella face muito grave.

—A criança? exclamou Amaro.

Depois d'um momento, ella respondeu, sem perturbação:

—Nem me falle n'isso, que me tem dado um desgosto... Hontem mesmo, duas horas depois de ter chegado... O pobre anjinho começa a fazer-se rôxo, e alli me morreu debaixo dos olhos...

—Mente! gritou Amaro. Quero vêr.

—Entre, senhor, se quer vêr.

—Mas que lhe disse eu hontem, mulher?

—Que quer, senhor? Morreu. Veja...

Tinha aberto a porta, muito simplesmente, sem [649] cólera nem receio. Amaro entreviu n'um relance, ao pé da chaminé, um berço coberto com um saiote escarlate.

Sem uma palavra voltou as costas, atirou-se para cima do cavallo. Mas a mulher, muito loquaz subitamente, rompeu a dizer que tinha ido justamente à aldeia para encommendar um caixãosinho decente... Como vira que era filho de pessoa de bem, não o quisera enterrar embrulhado n'um trapo. Mas emfim, como o senhor alli estava, parecia-lhe razoavel que désse algum dinheiro para a despeza... Uns dois mil reis que fossem.

Amaro considerou-a um momento com um desejo brutal de a esganar; por fim, metteu-lhe o dinheiro na mão. E ia trotando no carreiro, quando a sentiu ainda correndo, gritando pst! pst! A Carlota queria-lhe restituir o capote que elle emprestára na vespera: tinha feito muito bom serviço, que a criança chegára quente como um rojãosinho... Infelizmente...

Amaro já a não escutava, esporeando furiosamente a ilharga da cavalgadura.

Na cidade, depois de apear à porta do Cruz, não entrou em casa. Foi direito ao paço do bispo. Tinha agora uma idéa só: era deixar aquella cidade maldita, não vêr mais as faces das devotas, nem a fachada odiosa da Sé...

Foi só ao subir a larga escadaria de pedra do paço, que lhe lembrou com inquietação o que o Libaninho dissera na vespera da indignação do senhor [650] vigario geral, da denuncia obscura... Mas a affabilidade do padre Saldanha, o confidente do paço, que o introduziu logo na livraria de sua excellencia, tranquillisou-o. O senhor vigario geral foi muito amavel. Estranhou o ar pallido e perturbado do senhor parocho...

—É que tenho um grande desgosto, senhor vigario geral. Minha irmã está a morrer em Lisboa. E venho pedir a vossa excellencia licença para lá ir, por uns dias...

O senhor vigario geral consternou-se com bondade.

—Decerto, consinto... Ah! somos todos passageiros forçados da barca de Charonte.


Ipse ratem conto subigit, velisque ministrat
Et ferruginea subvectat corpora cymba.


Ninguem lhe escapa... Sinto, sinto... Não me esquecerei de a recommendar nas minhas orações...

E muito methodico, sua excellencia tomou uma nota a lapis.

Amaro, ao sahir do paço, foi direito á Sé. Fechou-se na sacristia, a essa hora deserta: e depois de pensar muito tempo com a cabeça entre os punhos, escreveu ao conego Dias:

«Meu caro padre-mestre.—Treme-me a mão ao escrever estas linhas. A infeliz morreu. Eu não posso, bem vê, e vou-me embora, porque, se aqui ficasse, estalava-me o coração. Sua excellentissima irmã lá [651] estará tratando do enterro... Eu, como comprehende, não posso. Muito lhe agradeço tudo... Até um dia, se Deus quizer que nos tornemos a vêr. Por mim conto ir para longe, para alguma pobre parochia de pastores, acabar meus dias nas lagrimas, na meditação e na penitencia. Console como puder a desgraça da mãi. Nunca me esquecerei do que lhe devo, emquanto tiver um sopro de vida. E adeus, que nem sei onde tenho a cabeça.—Seu amigo do C.—Amaro Vieira

«P. S. A criança morreu tambem, já se enterrou.»


Fechou a carta com uma obreia preta; e depois d'arranjar os seus papeis, foi abrir o grande portão chapeado de ferro, olhar um momento o pateo, o barracão, a casa do sineiro... As nevoas, as primeiras chuvas já davam áquelle recanto da Sé o seu ar lugubre d'inverno. Adiantou-se devagar, sob o silencio triste dos altos contrafortes, espreitou á vidraça da cozinha do tio Esguelhas: elle lá estava, sentado á chaminé, com o cachimbo na bôca, cuspilhando tristemente para as cinzas. Amaro bateu de leve nos vidros—e quando o sineiro abriu a porta, aquelle interior conhecido, rapidamente entrevisto, a cortina da alcova da Tótó, a escada que ia para o quarto, agitaram o parocho de tantas recordações e de saudades tão bruscas, que não pôde fallar um momento, com a garganta tomada de soluços.

—Venho-lhe dizer adeus, tio Esguelhas, murmurou [652] por fim. Vou a Lisboa, tenho minha irmã a morrer...

E acrescentou com os beiços tremulos d'um chôro que ia romper:

—Todas as desgraças vêm juntas. Sabe, a pobre Ameliasinha lá morreu de repente...

O sineiro emmudeceu, assombrado.

—Adeus, tio Esguelhas. Dê cá a mão, tio Esguelhas. Adeus...

—Adeus, senhor parocho, adeus! disse o velho com os olhos arrazados d'agua.

Amaro fugiu para casa, contendo-se para não soluçar alto pelas ruas. Disse logo á Escolastica que ia partir n'essa noite para Lisboa. O tio Cruz devia mandar-lhe um cavallo, para ir tomar o comboio a Chão de Maçãs.

—Eu não tenho senão o dinheiro que é necessario para a jornada. Mas o que ahi me fica em lençoes e toalhas é para vossê...

A Escolastica, chorando de perder o senhor parocho, quiz beijar-lhe a mão por tanta generosidade: offereceu-se para fazer a mala...

—Eu mesmo a arranjo, Escolastica, não se incommode.

Fechou-se no quarto. A Escolastica, ainda choramingando, foi logo recolher, examinar as poucas roupas que estavam pelos armarios. Mas Amaro d'ahi a pouco gritou por ella: diante da janella uma harpa e uma rebeca, em desafinação, tocavam a valsa dos Dois mundos. [653]

—Dê um tostão a esses homens, disse o padre furioso. E diga-lhe que vão p'r'ó inferno... Que está aqui gente doente!

E até ás cinco horas a Escolastica não tornou a sentir rumor no quarto.

Quando o moço do Cruz veio com o cavallo, pensando que o senhor parocho adormecera, ella foi-lhe bater devagarinho á porta do quarto, choramingando já da despedida proxima. Elle abriu logo. Estava de capote aos hombros; no meio do quarto prompta e acorreada a mala de lona que devia ir á garupa da egoa. Deu-lhe um maço de cartas para ir entregar n'essa noite à snr.a D. Maria da Assumpção, ao padre Silverio e a Natario: e ia descer, entre os prantos da mulher, quando sentiu na escada um ruido conhecido de muleta, e o tio Esguelhas appareceu muito commovido.

—Entre, tio Esguelhas, entre.

O sineiro cerrou a porta, e depois de hesitar um momento:

—Vossa senhoria ha de desculpar, mas... Tinha-me esquecido de todo, com os desgostos que tenho passado. Já ha tempo que achei no quarto isto, e pensei que...

E metteu na mão de Amaro um brinco d'ouro. Elle reconheceu-o logo: era d'Amelia. Muito tempo ella o procurára debalde; soltára-se decerto n'alguma manhã d'amor, sobre a enxerga do sineiro. Amaro então, suffocado, abraçou o tio Esguelhas.

—Adeus! Adeus, Escolastica. Lembrem-se por cá [654] de mim. Dê lembranças ao Mathias, tio Esguelhas...

O moço afivelou a maleta ao sellim, e Amaro partiu, deixando a Escolastica e o tio Esguelhas, a chorar ambos á porta.

Mas depois de ter passado os açudes, ao pé d'uma volta da estrada, teve de apear para compôr o estribo: e ia montar, quando appareceram dobrando o muro o doutor Godinho, o secretario geral e o senhor administrador do concelho, muito amigos agora, e que vinham, depois do passeio, recolhendo para a cidade. Pararam logo a fallar ao senhor parocho—admirando-se de o vêr alli, de maleta na garupa, com ares de jornada...

—É verdade, disse, vou para Lisboa!

O antigo Bibi e o administrador suspiraram invejando-lhe a felicidade.—Mas quando o parocho fallou da irmã moribunda, affligiram-se com polidez; e o senhor administrador disse:

—Deve estar muito sentido, comprehendo... De mais a mais essa outra desgraça na casa d'aquellas senhoras suas amigas... A pobre Ameliasinha, morta assim de repente...

O antigo Bibi exclamou:

—O quê? A Ameliasinha, aquella bonita que morava na rua da Misericordia? Morreu?

O doutor Godinho tambem o ignorava, e pareceu consternado.

O senhor administrador soubera-o pela sua criada, que o ouvira da Dionysia. Dizia-se que fôra um aneurisma. [655]

—Pois senhor parocho, exclamou Bibi, desculpe se afflijo as suas crenças respeitaveis, que são as minhas de resto... Mas Deus commetteu um verdadeiro crime... Levar-nos a rapariga mais bonita da cidade! Que olhos, senhores! E depois com aquelle picantesinho da virtude...

Então, n'um tom de pezames, todos lamentaram aquelle golpe que devia ter affectado tanto o senhor parocho.

Elle disse muito grave:

—Senti-o deveras... Conhecia-a bem... E com as suas boas qualidades, devia fazer, sem duvida, uma esposa modêlo... Senti-o muito.

Apertou silenciosamente as mãos em redor—e emquanto os cavalheiros recolhiam á cidade, o padre Amaro foi trotando pela estrada, que já escurecia, para a estação de Chão de Maçãs.


Ao outro dia, pelas onze horas, o enterro d'Amelia sahiu da Ricoça. Era uma manhã aspera: o céo e os campos estavam afogados n'uma nevoa pardacenta; e cahia, muito miuda, uma chuva regelada. Era longe da quinta a capella dos Poyaes. O menino do côro adiante, de cruz alçada, apressava-se, chapinhando a lama a grandes pernadas; o abbade Ferrão, d'estola negra, abrigava-se, murmurando o Exultabunt Domino, sob o guardachuva que sustentava ao lado o sacristão com o hyssope; quatro trabalhadores [656] da quinta, abaixando a cabeça contra a chuva obliqua, levavam n'uma padiola o esquife que tinha dentro o caixão de chumbo; e, sob o vasto guardachuva do caseiro, a Gertrudes de mantéo pela cabeça ia desfiando as suas contas. Ao lado do caminho o valle triste dos Poyaes cavava-se, todo pardo na neblina, n'um grande silencio; e a voz enorme do vigario, mugindo o Miserere, rolava pela quebrada humida onde murmuravam os riachos muito cheios.

Mas ás primeiras casas da aldeia os moços do caixão pararam derreados; e então um homem, que estava esperando debaixo d'uma arvore sob o seu guardachuva, veio juntar-se silenciosamente ao enterro. Era João Eduardo, de luvas pretas, carregado de luto, com as olheiras cavadas em dois sulcos negros, grossas lagrimas a correrem-lhe nas faces. E immediatamente, por traz d'elle, vieram collocar-se dois criados de farda, com as calças muito arregaçadas e tochas na mão—dois lacaios que mandára o Morgado, para honrar o enterro d'uma d'essas senhoras da Ricoça, amigas do abbade.

Então, vendo estas duas librés que vinham afidalgar o prestito, o menino do côro rompeu logo, erguendo mais alto a cruz; os quatro homens, já sem fadiga, impertigaram-se ás varas da padiola: o sacristão bramiu um Requiem tremendo. E pelas lamas do íngreme caminho da aldeia foi subindo o enterro, emquanto às portas as mulheres se ficavam persignando, olhando as sobrepellizes brancas e o caixão de galões d'ouro, que se iam afastando seguidos [657] do grupo de guardachuvas abertos, sob a chuva triste.

A capella era no alto, n'um adro de carvalheiras: o sino dobrava: e o enterro sumiu-se para o interior da igreja escura, ao canto do Subvenite sancti que o sacristão entoou em ronco.—Mas os dois criados de farda não entraram porque o senhor Morgado assim o tinha ordenado.

Ficaram á porta, sob o guardachuva, escutando, batendo os pés regelados. Dentro seguia o cantochão; depois era um ciciar d'orações que se amortecia: e de repente latins funebres lançados pela voz grossa do vigario.

Então os dois homens, enfastiados, desceram do adro, entraram um momento na taberna do tio Seraphim. Dois moços de gado da quinta do Morgado, que bebiam em silencio o seu quartilho, ergueram-se logo vendo apparecer os dois criados de farda.

—Á vontade, rapazes, é sentar e beber, disse o velho baixito que acompanhava João Eduardo a cavallo. Nós lá estamos, na massada do enterro... Boas tardes, snr. Seraphim.

Apertaram a mão ao Seraphim, que lhes mediu duas aguardentes—e informou-se se a defunta era a noiva do snr. Joãosinho. Tinham-lhe dito que morrera d'uma veia rebentada.

O baixito riu:

—Qual veia rebentada! Não lhe rebentou coisa nenhuma. O que lhe rebentou foi um rapagão pelo ventre... [658]

—Obra do snr. Joãosinho? perguntou o Seraphim, arregalando o olho bréjeiro.

—Não me parece, disse o outro com importancia. O snr. Joãosinho estava em Lisboa... Obra d'algum cavalheiro da cidade... Sabe vossemecê de quem eu desconfio, snr. Seraphim?...

Mas a Gertrudes, esbaforida, rompeu pela taberna gritando que o sahimento já ia ao pé do cemiterio, e que não faltavam senão «aquelles senhores»! Os lacaios abalaram logo, e alcançaram o enterro quando ia passando a pequena grade do cemiterio, ao ultimo versiculo do Miserere. João Eduardo agora levava uma vela na mão, ia logo atraz do caixão d'Amelia, tocando-o quasi, com os olhos ennevoados de lagrimas fitos no velludilho negro que o cobria. Sem cessar o sino na capella dobrava desoladamente. A chuva cahia mais miuda. E todos calados, no silencio fusco do cemiterio, com passos abafados pela terra molle, iam-se dirigindo para o canto do muro onde estava cavada de fresco a cova d'Amelia, negra e profunda entre a relva humida. O menino do côro cravou no chão a haste da cruz prateada, e o abbade Ferrão, adiantando-se até á beira do buraco escuro, murmurou o Deus cujus miseratione... Então João Eduardo, muito pallido, vacillou de repente, e o guardachuva cahiu-lhe das mãos; um dos criados de farda correu, segurou-o pela cinta; queriam-no levar, arrancal-o d'ao pé da cova; mas elle resistiu, e alli ficou, com os dentes cerrados, segurando-se desesperadamente á manga do criado, vendo [659] o coveiro e os dois moços amarrarem as cordas no caixão, fazerem-no resvalar devagar entre a terra esfarellada que rolava, com um ranger de taboas mal pregadas.

Requiem aeternam donna ei, Domine!

Et lux perpetua luceat ei, mugiu o sacristão.

O caixão bateu no fundo com uma pancada surda: o abbade espalhou em cima uma pouca de terra em fórma de cruz: e sacudindo lentamente o hyssope sobre o velludilho, a terra, a relva em redor:

Requiescat in pace.

Amen, responderam a voz cava do sacristão e a voz aguda do menino do côro.

Amen, disseram todos n'um murmurio, que ciciou, se perdeu entre os cyprestes, as hervas, os tumulos e as nevoas frias d'aquelle triste dia de dezembro.



XXVI



Nos fins de maio de 1871 havia grande alvoroço na Casa Havaneza, ao Chiado, em Lisboa. Pessoas esbaforidas chegavam, rompiam pelos grupos que atulhavam a porta, e alçando-se em bicos de pés esticavam o pescoço, por entre a massa dos chapeus, para a grade do balcão, onde n'uma taboleta suspensa se collavam os telegrammas da Agencia Havas; sujeitos de faces espantadas sahiam consternados, exclamando logo para algum amigo mais pacato que os esperára fóra:

—Tudo perdido! Tudo a arder!

Dentro, na multidão de grulhas que se apertava contra o balcão, questionava-se forte; e pelo passeio, no largo do Loreto, defronte ao pé do estanco, pelo Chiado até ao Magalhães, era, por aquelle dia já quente [662] do começo de verão, toda uma gralhada de vozes impressionadas onde as palavras—Communistas! Versailles! Petroleiros! Thiers! Crime! Internacional! voltavam a cada momento, lançadas com furor, entre o ruido das tipoias e os pregões dos garotos gritando supplementos.

Com effeito, a cada hora, chegavam telegrammas annunciando os episodios successivos da insurreição batalhando nas ruas de Paris: telegrammas despedidos de Versailles n'um terror dizendo os palacios que ardiam, as ruas que se aluiam; fuzilamentos em massa nos pateos dos quarteis e entre os mausoleus dos cemiterios; a vingança que ia saciar-se até á escuridão dos esgotos; a fatal demencia que desvairava as fardas e as blusas; e a resistencia que tinha o furor de uma agonia com os methodos d'uma sciencia, e fazia saltar uma velha sociedade pelo petroleo, pela dynamite e pelo nitro-glycerina! Uma convulsão, um fim de mundo—que vinte, trinta palavras de repente mostravam, n'um relance, a um clarão de fogueira.

O Chiado lamentava com indignação aquella ruina de Paris. Recordavam-se com exclamações os edificios ardidos, o Hotel de Ville, «tão bonito», a rua Royale, «aquella riqueza». Havia individuos tão furiosos com o incendio das Tulherias como se fosse uma propriedade sua: os que tinham estado em Paris um ou dois mezes abriam-se em invectivas, arrogando-se uma participação de parisiense na riqueza da cidade, escandalisados por a insurreição não ter respeitado monumentos em que elles tinham posto os seus olhos. [663]

—Vejam vossês! exclamava um sujeito gordo. O palacio da Legião d'Honra destruido! Ainda não ha um mez que eu lá estive com minha mulher... Que infamia! Que patifaria!

Mas espalhára-se que o ministerio recebera outro telegramma mais desolador: toda a linha do boulevard da Bastilha á Magdalena ardia, e ainda a praça da Concordia, e as avenidas dos Campos-Elyseos até ao Arco do Triumpho. E assim tinha a revolta arrazado, n'uma demencia, todo aquelle systema de restaurantes, cafés-concertos, bailes publicos, casas de jogo e ninhos de prostitutas! Então houve por todo o largo do Loreto até ao Magalhães um estremecimento de furor. Tinham pois as chammas aniquilado aquella centralisação tão commoda da patuscada! Oh que infamia! O mundo acabava! Onde se comeria melhor que em Paris? Onde se encontrariam mulheres mais experientes? Onde se tornaria a vêr aquelle desfilar prodigioso d'uma volta de Bois, nos dias asperos e seccos d'inverno, quando as victorias das cocottes resplandeciam ao pé dos phaetons dos agentes da Bolsa? Que abominação! Esqueciam-se as bibliothecas e os museus: mas a saudade era sincera pela destruição dos cafés e pelo incendio dos lupanares. Era o fim de Paris, era o fim da França!

N'um grupo ao pé da Casa Havaneza os questionadores politicavam: pronunciava-se o nome de Proudhon que, por esse tempo, se começava a citar vagamente em Lisboa como um monstro sanguinolento; e as invectivas rompiam contra Proudhon. A [664] maior parte imaginava que era elle que tinha incendiado. Mas o poeta estimado das Flôres e Ais acudiu dizendo «que, à parte as asneiras que Proudhon dizia, era ainda assim um estylista bastante ameno». Então o jogador França berrou:

—Qual estylo, qual cabaça! Se aqui o pilhasse no Chiado rachava-lhe os ossos!

E rachava. Depois do cognac o França era uma fera.

Alguns moços porém, a quem o elemento dramatico da catastrophe revolvia o instincto romantico, applaudiam a heroicidade da Communa—Vermorel abrindo os braços como o Crucificado, e sob as balas que o trespassavam gritando: Viva a humanidade! O velho Delecluze, com um fanatismo de santo, dictando do seu leito d'agonia as violencias da resistencia...

—São grandes homens! exclamava um rapaz exaltado.

Em redor as pessoas graves rugiam. Outras afastavam-se pallidas, vendo já as suas casas na Baixa a escorrer de petroleo e a mesma Casa Havaneza presa de chammas socialistas. Então era em todos os grupos um furor d'auctoridade e repressão: era necessario que a sociedade, atacada pela Internacional, se refugiasse na força dos seus principios conservadores e religiosos, cercando-os bem de baionetas! Burguezes com tendas de capellistas fallavam da «canalha» com o desdem imponente d'um La Tremouille ou d'um Ossuna. Sujeitos, palitando os dentes, decretavam a vingança. Vadios pareciam furiosos «contra o operario [665] que quer viver como principe». Fallava-se com devoção na propriedade, no capital!

D'outro lado eram moços verbosos, localistas excitados que declamavam contra o velho mundo, a velha idéa, ameaçando-os d'alto, propondo-se a derruil-os em artigos tremendos.

E assim uma burguezia entorpecida esperava deter, com alguns policias, uma evolução social: e uma mocidade, envernizada de litteratura, decidia destruir n'um folhetim uma sociedade de dezoito seculos. Mas ninguem se mostrava mais exaltado que um guarda-livros de hotel, que do alto do degrau da Casa Havaneza brandia a bengala, aconselhando á França a restauração dos Bourbons.

Então um homem vestido de preto, que sahira do estanco e atravessava por entre os grupos, parou, sentindo uma voz espantada que exclamava ao lado:

—Ó padre Amaro! ó maganão!

Voltou-se: era o conego Dias. Abraçaram-se com vehemencia, e para conversarem mais tranquillamente foram andando até ao largo de Camões, e alli pararam, junto á estatua:

—Então vossê quando chegou, padre-mestre?

Tinha chegado na vespera. Trazia uma demanda com os Pimentas da Pojeira por causa d'uma servidão na quinta, tinha appellado para a Relação, e vinha seguir de perto a questão na capital.

—E vossê, Amaro? Na ultima carta dizia-me que tinha vontade de sahir de Santo Thyrso.

Era verdade. A parochia tinha vantagens; mas [666] vagára Villa-Franca, e elle, para estar mais perto da capital, viera fallar com o senhor conde de Ribamar, o seu conde, que lá andava obtendo a transferencia. Devia-lhe tudo, sobretudo á senhora condessa!

—E de Leiria? A S. Joanneira, vai melhor?

—Não, coitada... Vossê sabe, ao principio tivemos um susto dos diabos... Pensavamos que lhe ia succeder como á Amelia. Mas não, era hydropesia... E alli o que ha é anasarca...

—Coitada, santa senhora! E o Natario?

—Avelhado. Tem tido seus desgostos. Muita lingua.

—E diga lá, padre-mestre, o Libaninho?

—Eu escrevi-lhe a esse respeito, disse o conego rindo.

O padre Amaro riu tambem: e durante um momento os dois sacerdotes pararam, apertando as ilhargas.

—Pois é verdade, disse emfim o conego. A coisa tinha sido realmente escandalosa... Porque emfim, repare o amigo que o pilharam com o sargento, de tal modo que não havia a duvidar... E ás dez horas da noite, na alameda! Já é imprudencia... Mas emfim a coisa esqueceu, e quando o Mathias morreu, lá lhe demos o logar de sacristão, que é bem boa posta... Muito melhor que o que elle tinha no cartorio... E ha de cumprir com zelo!

—Ha de cumprir com zelo, concordou muito sério [667] o padre Amaro. E a proposito, a D. Maria da Assumpção?

—Homem, rosnam-se coisas... Criado novo... Um carpinteiro que morava defronte... O rapaz anda no trinque.

—Palavra?

—No trinque. Charuto, relogio, luva! Tem pilheria, hein?

—É divino!

—As Gansosos na mesma, continuou o conego. Têm agora a sua criada, a Escolastica.

—E da besta do João Eduardo?

—Eu mandei-lhe dizer, não? Lá está ainda nos Poyaes. O Morgado está mal do figado. E o João Eduardo diz que está tisico... que eu não sei, nunca mais o vi... Quem m'o disse foi o Ferrão.

—Como vai elle, o Ferrão?

—Bem. Sabe quem eu vi ha dias? A Dionysia.

—E então?

O conego disse uma palavra baixo ao ouvido do padre Amaro.

—Deveras, padre-mestre?

—Na rua das Sousas, a dois passos da sua antiga casa. O D. Luiz da Barrosa é que lhe deu o dinheiro para montar o estabelecimento. Pois aqui estão as novidades. E vossê está mais forte, homem! Fez-lhe bem a mudança...

E pondo-se diante, galhofando:

—Ó Amaro, e vossê a escrever-me que queria [668] retirar-se para a serra, ir para um convento, passar a vida em penitencia...

O padre Amaro encolheu os hombros:

—Que quer vossê, padre-mestre?... N'aquelles primeiros momentos... Olhe que me custou! Mas tudo passa...

—Tudo passa, disse o conego. E depois d'uma pausa:—Ah! Mas Leiria já não é Leiria!

Passearam então um momento em silencio, n'uma recordação que lhes vinha do passado, os quinos divertidos da S. Joanneira, as palestras ao chá, as passeatas ao Morenal, o Adeus e o Descrido cantados pelo Arthur Couceiro e acompanhados pela pobre Amelia, que agora lá dormia, no cemiterio dos Poyaes, sob as flôres silvestres...

—E que me diz vossê a estas coisas de França, Amaro? exclamou de repente o conego.

—Um horror, padre-mestre... O arcebispo, uma sucia de padres fuzilados!... Que brincadeira!

—Má brincadeira, rosnou o conego.

E o padre Amaro:

—E cá pelo nosso canto parece que começam tambem essas idéas...

O conego assim o ouvira. Então indignaram-se contra essa turba de maçons, de republicanos, de socialistas, gente que quer a destruição de tudo o que é respeitavel—o clero, a instrucção religiosa, a familia, o exercito e a riqueza... Ah! a sociedade estava ameaçada por monstros desencadeados! Eram [669] necessarias as antigas repressões, a masmorra e a forca. Sobretudo inspirar aos homens a fé e o respeito pelo sacerdote.

—Ahi ó que está o mal, disse Amaro, é que nos não respeitam! Não fazem senão desacreditar-nos... Destroem no povo a veneração pelo sacerdocio...

—Calumniam-nos infamamente, disse n'um tom profundo o conego.

Então junto d'elles passaram duas senhoras, uma já de cabellos brancos, o ar muito nobre; a outra, uma creaturinha delgada e pallida, d'olheiras batidas, os cotovêlos agudos collados a uma cinta d'esterilidade, pouff enorme no vestido, cuia forte, tacões de palmo.

—Caspitè! disse o conego baixo, tocando o cotovêlo do collega. Hein, seu padre Amaro?... Aquillo é que vossê queria confessar.

—Já lá vai o tempo, padre-mestre, disse o parocho rindo, já as não confesso senão casadas!

O conego abandonou-se um momento a uma grande hilaridade; mas retomou o seu ar ponderoso de padre obeso, vendo Amaro tirar profundamente o chapéo a um cavalheiro de bigode grisalho e oculos d'ouro, que entrava na praça, do lado do Loreto, com o charuto cravado nos dentes e o guardasol debaixo do braço.

Era o senhor conde de Ribamar. Adiantou-se com bonhomia para os dois sacerdotes; e Amaro, descoberto e perfilado, apresentou «o seu amigo, o senhor conego Dias, da Sé de Leiria». Conversaram um momento [670] da estação, que já ia quente. Depois o padre Amaro fallou dos ultimos telegrammas.

—Que diz vossa excellencia a estas coisas de França, senhor conde?

O estadista agitou as mãos, n'uma desolação que lhe assombreava a face:

—Nem me falle n'isso, senhor padre Amaro, nem me falle n'isso... Vêr meia duzia de bandidos destruir Paris... O meu Paris!... Creiam vossas senhorias que tenho estado doente.

Os dois sacerdotes, com uma expressão consternada, uniram-se á dôr do estadista.

E então o conego:

—E qual pensa vossa excellencia que será o resultado?

O senhor conde de Ribamar, com pausa, em palavras que sabiam devagar, sobrecarregadas do peso das idéas, disse:

—O resultado?... Não é difficil prevel-o. Quando se tem alguma experiencia da Historia e da Politica, o resultado de tudo isto vê-se distinctamente. Tão distinctamente como os vejo a vossas senhorias.

Os dois sacerdotes pendiam dos labios propheticos do homem de governo.

—Suffocada a insurreição—continuou o senhor conde olhando a direito diante de si com o dedo no ar, como seguindo, apontando os futuros historicos que a sua pupilla, ajudada pelos oculos d'ouro, penetrava—suffocada a insurreição, dentro de tres mezes temos de novo o imperio... Se vossas senhorias [671] tivessem visto como eu uma recepção nas Tulherias ou no Hotel de Ville, nos tempos do imperio, haviam de dizer, como eu, que a França é profundamente imperialista e só imperialista... Temos pois Napoleão III: ou talvez elle abdique, e a imperatriz tome a regencia na menoridade do principe imperial... Eu aconselharia antes, e já o fiz saber, que era esta talvez a solução mais prudente. Como consequencia immediata temos o Papa em Roma outra vez senhor do poder temporal... Eu, a fallar a verdade, e já o fiz saber, não approvo uma restauração papal. Mas eu não lhes estou aqui a dizer o que approvo, ou o que reprovo. Felizmente não sou o dono da Europa... Seria um encargo superior á minha idade e ás minhas enfermidades. Estou a dizer o que a minha experiencia da Politica e da Historia me aponta como certo... Dizia eu...? Ah! a imperatriz no throno de França, Pio Nono no throno de Roma, ahi temos a democracia esmagada entre estas duas forças sublimes, e creiam vossas senhorias um homem que conhece a sua Europa e os elementos de que se compõe a sociedade moderna, creiam que depois d'este exemplo da Communa não se torna a ouvir fallar de republica, nem de questão social, nem de povo, n'estes cem annos mais chegados!...

—Deus Nosso Senhor o ouça, senhor conde, fez com unção o conego.

Mas Amaro, radiante de se achar alli, n'uma praça [672] de Lisboa, em conversação intima com um estadista illustre, perguntou ainda, pondo nas palavras uma anciedade de conservador assustado:

—E crê vossa excellencia que essas idéas de republica, de materialismo, se possam espalhar entre nós?

O conde riu: e dizia, caminhando entre os dois padres, até quasi junto das grades que cercam a estatua de Luiz de Camões:

—Não lhes dê isso cuidado, meus senhores, não lhes dê isso cuidado! É possivel que haja ahi um ou dois esturrados que se queixem, digam tolices sobre a decadencia de Portugal, e que estamos n'um marasmo, e que vamos cahindo no embrutecimento, e que isto assim não póde durar dez annos. etc. etc. Babuseiras!...

Tinha-se encostado quasi ás grades da estatua, e tomando uma attitude de confiança:

—A verdade, meus senhores, é que os estrangeiros invejam-nos... E o que vou a dizer não é para lisonjear a vossas senhorias: mas emquanto n'este paiz houver sacerdotes respeitaveis como vossas senhorias, Portugal ha de manter com dignidade o seu logar na Europa! Porque a fé, meus senhores, é a base da ordem!

—Sem duvida, senhor conde, sem duvida, disseram com força os dois sacerdotes.

—Senão, vejam vossas senhorias isto! Que paz, que animação, que prosperidade!

E com um grande gesto mostrava-lhes o largo do [673] Loreto, que áquella hora, n'um fim de tarde serena concentrava a vida da cidade. Tipoias vazias rodavam devagar; pares de senhoras passavam, de cuia cheia e tacão alto, com os movimentos derreados, a pallidez chlorotica d'uma degeneração de raça; n'alguma magra pileca, ia trotando algum moço de nome historico, com a face ainda esverdeada da noitada de vinho; pelos bancos da praça gente estirava-se n'um torpôr de vadiagem; um carro de bois, aos solavancos sobre as suas altas rodas, era como o symbolo de agriculturas atrazadas de seculos; fadistas gingavam, de cigarro nos dentes; algum burguez enfastiado lia nos cartazes o annuncio d'operetas obsoletas; nas faces enfezadas de operarios havia como a personificação das industrias moribundas... E todo este mundo decrepito se movia lentamente, sob um céo lustroso de clima rico, entre garotos apregoando a loteria e a batota publica, e rapazitos de voz plangente offerecendo o Jornal das pequenas novidades: e iam, n'um vagar madraço, entre o largo onde se erguiam duas fachadas tristes de igreja, e o renque comprido das casarias da praça onde brilhavam tres taboletas de casas de penhores, negrejavam quatro entradas de taberna, e desembocavam, com um tom sujo d'esgoto aberto, as viellas de todo um bairro de prostituição e de crime.

—Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento... Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa! [674]

E o homem d'estado, os dois homens de religião, todos tres em linha, junto ás grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu paiz,—alli ao pé d'aquelle pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta, erecto e nobre, com os seus largos hombros de cavalleiro forte, a epopeia sobre o coração, a espada firme, cercado dos chronistas e dos poetas heroicos da antiga patria—patria para sempre passada, memoria quasi perdida!

Outubro 1878—Outubro 1879.




Lista de erros corrigidos

Aqui encontram-se listados todos os erros encontrados e corrigidos:


Original Correcção
#pág. 81 ?uz ... luz
#pág. 88 arcepispo ... arcebispo
#pág. 95 branços ... braços
#pág. 152 elle ... ella
#pág. 344 demolissse ... demolisse
#pág. 357 religão ... religião
#pág. 357 Infelimente ... Infelizmente
#pág. 357 podia ter ter ... podia ter
#pág. 360 tataruga ... tartaruga
#pág. 372 patite ... patife
#pág. 396 exemplicar ... exemplificar
#pág. 397 cebeça ... cabeça
#pág. 425 installado-se ... installando-se
#pág. 428 encondo ... encontrado
#pág. 430 iria em em ... iria em
#pág. 436 enconder ... esconder
#pág. 460 atravessassse ... atravessasse
#pág. 463 malacia ... malicia
#pág. 478 grades ... grandes
#pág. 489 necesario ... necessario
#pág. 489 viessa ... viesse
#pág. 492 entercimento ... enternecimento
#pág. 558 appareeeu ... appareceu
#pág. 634 cruxifico ... crucifixo

O original não tem capítulo XI, no entanto, a numeração das páginas não apresenta quebra na narração. Optámos por não corrigir a numeração dos capítulos.






End of the Project Gutenberg EBook of O crime do padre Amaro, by 
José Maria Eça de Queirós

*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK O CRIME DO PADRE AMARO ***

***** This file should be named 31971-h.htm or 31971-h.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
        http://www.gutenberg.org/3/1/9/7/31971/

Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)


Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.

Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties.  Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark.  Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission.  If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy.  You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research.  They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks.  Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.



*** START: FULL LICENSE ***

THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK

To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.net/license).


Section 1.  General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works

1.A.  By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement.  If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.

1.B.  "Project Gutenberg" is a registered trademark.  It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement.  There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement.  See
paragraph 1.C below.  There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works.  See paragraph 1.E below.

1.C.  The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works.  Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States.  If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed.  Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work.  You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.

1.D.  The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work.  Copyright laws in most countries are in
a constant state of change.  If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work.  The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.

1.E.  Unless you have removed all references to Project Gutenberg:

1.E.1.  The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever.  You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.net

1.E.2.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges.  If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.

1.E.3.  If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder.  Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.

1.E.4.  Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.

1.E.5.  Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.

1.E.6.  You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form.  However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.net),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form.  Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.

1.E.7.  Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.

1.E.8.  You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that

- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
     the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
     you already use to calculate your applicable taxes.  The fee is
     owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
     has agreed to donate royalties under this paragraph to the
     Project Gutenberg Literary Archive Foundation.  Royalty payments
     must be paid within 60 days following each date on which you
     prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
     returns.  Royalty payments should be clearly marked as such and
     sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
     address specified in Section 4, "Information about donations to
     the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."

- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
     you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
     does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
     License.  You must require such a user to return or
     destroy all copies of the works possessed in a physical medium
     and discontinue all use of and all access to other copies of
     Project Gutenberg-tm works.

- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
     money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
     electronic work is discovered and reported to you within 90 days
     of receipt of the work.

- You comply with all other terms of this agreement for free
     distribution of Project Gutenberg-tm works.

1.E.9.  If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark.  Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.

1.F.

1.F.1.  Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection.  Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.

1.F.2.  LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees.  YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3.  YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.

1.F.3.  LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from.  If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation.  The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund.  If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund.  If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.

1.F.4.  Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.

1.F.5.  Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law.  The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.

1.F.6.  INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.


Section  2.  Information about the Mission of Project Gutenberg-tm

Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers.  It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.

Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need are critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come.  In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.


Section 3.  Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation

The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service.  The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541.  Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising.  Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.

The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations.  Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
business@pglaf.org.  Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org

For additional contact information:
     Dr. Gregory B. Newby
     Chief Executive and Director
     gbnewby@pglaf.org


Section 4.  Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation

Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment.  Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.

The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States.  Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements.  We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance.  To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org

While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.

International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States.  U.S. laws alone swamp our small staff.

Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses.  Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations.  To donate, please visit: http://pglaf.org/donate


Section 5.  General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.

Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone.  For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.


Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included.  Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.


Most people start at our Web site which has the main PG search facility:

     http://www.gutenberg.net

This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.